Quando seu Osvaldo, o coveiro daquele cemitério, viu o sujeito entrando com uma pá e uma picareta nas costas, não teve dúvida. O cara estava tramando alguma coisa de ruim. Afinal, eram quase seis horas da tarde, o cemitério ia fechar, e nenhum enterro estava sendo realizado naquela hora. E se estivesse, ele não poderia estar ali, encostado no balcão daquele bar, tomando a sua cachacinha diária.
Ninguém entraria no cemitério naquela hora, ainda mais portando uma pá e uma picareta. A não ser que fosse para roubar. Isso não era uma coisa incomum. Ele já vira isso acontecer várias vezes. Saqueadores de túmulos era coisa normal, dissera uma vez o delegado, desde os tempos dos faraós egípcios. É que o tempo passa, mas as pessoas continuam as mesmas. Idiotas, vaidosas, imbecis. Ás vezes enterram seus mortos com seus pertences. Joías, relógios, anéis, o ouro dos dentes, roupas caras, etc. Ele já vira muito defunto ser desenterrado para ser despojado do ouro dos dentes. Coisa feia era ver defunto depois de alguns dias enterrado, e banguela então...
O bar ficava em frente ao portão do cemitério. E ele, depois da jornada diária, em que despachava os defuntos para sua última morada, ia ali para relaxar um pouco, fazer o “descarrego” daquelas “zinquiziras” infaustas que ele acumulava durante o dia, manipulando cadáveres e guardando-os nos escaninhos, ou então simplesmente depositando-os no fundo de uma vala úmida e malcheirosa, cuja terra, já contaminada pela decomposição dos vizinhos, aderia no seu corpo como os vermes que consumiam aqueles defuntos que ele enterrava.
Ele viu o sujeito desaparecer por trás das tumbas. Seguiu-o até que ele parou junto á uma cova fresca, de um corpo que fora enterrado no dia anterior. Então não teve dúvidas. O sujeito era mesmo um ladrão de cemitério. De certo sabia que aquele defunto tinha sido enterrado com algo de valor. Saiu correndo em direção á portaria, avisar seu Geraldo, o administrador. Tinha que chamar a polícia.
Mas já havia passado das seis horas. Seu Geraldo já fora embora. Só o porteiro, seu Fabrício, estava lá. E agora? A portaria não tinha telefone. O telefone do cemitério ficava trancado dentro da sala do seu Geraldo.
̶ Corra até a delegacia, Osvaldo! Foi a ordem do porteiro. ̶ Anda, chama a polícia, homem!
A delegacia ficava perto do cemitério, mas nem tanto. Correndo, daria uns dez minutos. Seu Osvaldo correu que nem um maratonista. Chegou suado, ofegando e espavorido na recepção da delegacia, onde um soldado fardado estava de plantão.
̶ Estão roubando o cemitério!, disse ele, de sopetão, sem se anunciar nem fazer pausa para explicar nada. ̶ Vim chamar seu delegado.
̶ Ei, calma! Pediu o soldado. ̶ Fique calmo e explique isso direito.
̶ Tem um sujeito desenterrando um defunto que eu enterrei ontem, para roubar ele.
̶ Roubar o corpo? Perguntou o soldado.
̶ O corpo não. Alguma coisa que o defunto tem.
̶ E defunto tem alguma coisa? Perguntou, com algum sarcasmo, o soldado.
̶ Tem gente que enterra defunto com coisas de valor. Relógio, anel, ouro nos dentes, ternos e sapatos caros...
̶ Ah? Agora entendi ̶ disse o soldado. Espera que vou chamar o sargento.
̶ Depressa, senão o cara foge.
Em menos de dez minutos estavam no cemitério. Seu Osvaldo, o sargento e um soldado. De armas empunhadas, apontadas para o sujeito. Ele estava em pé, em cima do monte de terra que havia tirado da cova que abrira. Seu Osvaldo ficara longe, escondido atrás de uma lápide, pois tinha medo que houvesse briga e alguma bala perdida o atingisse. Assim, não pode ver que o sujeito não havia aberto uma cova já ocupada, mas sim uma cova nova, ao lado do defunto que ele havia enterrado no dia anterior.
̶ Você está preso! Gritou o sargento. ̶ Levante as mãos e fique de joelhos.
O sujeito olhou para os policiais e viu o brilho mecânico das armas. Estava escuro, mas o sargento ainda pode perceber, no rosto do individuo, uma fileira de dentes brancos se abrir em um sorriso sinistro e assustador. E foi graças ao seu treinamento é a sua intuição de policial que pode perceber, também, que a mão direita dele empunhava uma arma. E ele o viu levantar o braço, como se fosse dispará-la.
Foram dois estampidos que se ouviram dentro do cemitério. Um do sargento, outro do soldado que o acompanhara. O ladrão não fora rápido o suficiente, ou vacilou no momento de atirar. Caiu morto dentro da cova que ele mesmo abrira.
Ao pegar a arma do ladrão o sargento viu que ela estava descarregada. Ao procurar nos bolsos do morto por alguma identificação, os policiais encontraram a carteira de identidade. O nome do sujeito era Carlos Alberto Batista. Tinha cinqüenta e dois anos. Junto com o documento encontraram também um bilhete que dizia: “ A minha vida deixou de ter sentido depois que você morreu, minha querida Elza. Quero morrer também e ser enterrado ao seu lado. Só não tenho coragem de me suicidar. Mas vou achar um jeito de ir ao seu encontro. Me espere, meu amor.”
Na cova ao lado, em uma lápide que havia sido recentemente colocada havia um nome, com uma data de nascimento e o dia da morte. Elza Dias Batista era o nome do defunto. Ela falecera há três dias atrás e fora enterrada ali no dia anterior.