Madrilenial
Soberana sobre o descampado, se erguendo a uns metros da terra seca, nada ao seu redor a não ser lembranças, imagens nem um pouco vagas de um passado que o cutucava como a ponta afiada de uma lança. Destino, sorte, carma... Quem vai saber. Mas absorto em seus fúnebres pensamentos decidiu mudar um capítulo de sua existência, colocar, enfim, um ponto nessa história.
...
Henry Ziegland enganou a morte. Estufava o peito nas reuniões de família para contar o feito, e prosava como se fosse um herói, gesticulava, corria de um lado para o outro, fazia o som do tiro, subia no banco e com os braços abertos imitava a árvore em que a bala se alojou... No fim, exibia, como um troféu, a cicatriz em sua cabeça, um caminho fundo e rosado que não mais crescia cabelo. Parecia orgulhoso em revelar a ferida de guerra, mas as marcas mais profundas ele escondia dos olhos alheios.
Sozinho no quarto escuro observava a figura grotesca parada ao lado de sua cama, era o demônio em forma de galhos e ramos que vinha lhe buscar, e via o cano de metal gelado esquentar até derreter e então a bala disparava ao seu encontro... Ela sempre estava lá, o perseguia, tomava formas diferentes. Ela o queria.
No meio da noite se levantava para um copo d’água sem sentir sede, queria matar o medo dentro de si, pela janela entreaberta via as folhas chacoalhando ao sabor do vento, sussurravam sua condenação.
Os olhos abertos revelavam a sobriedade, mas confundia seus sentidos, queria gritar, mas sua voz era inaudível, ele a amava, Lenore era a mulher mais linda do mundo, seus olhos azuis celestes mais brilhantes que as galáxias, mas como uma maldição, cada minuto ao lado dela era um a menos de sanidade, o relógio o condenava com seus tique-taques compassados.
Se debatia sobre a cama velha, a madeira reclamando pelo peso sobre si, parecia mergulhado em águas turvas ou preso no topo de uma montanha, silenciosa, branca e vazia, o ar rarefeito lhe ferindo o corpo. O relógio marcava o tempo, as horas infinitas. E o baque o mantinha em alerta.
Os sonhos começaram numa noite qualquer, e não mais o abandonaram, assim que o sol sumia no horizonte, recebia a visita do demônio. Em sonho ele lambia o rosto frio de sua amada inerte com olhos de vidro, e sorria revelando seus dentes de agulha enquanto a árvore ria alto do lado de fora. Fez tudo o que estava ao seu alcance para poupa-la, porém não alcançou as mãos estendidas da sua alma sendo arrastada para o inferno.
Foi em uma aposta, uma noite de bebedeira. Com uma palavra a sentenciou. “Eu tive que me afastar” repetia no suor do delírio deitado em sua vida, unido pela realidade por uma fina linha induzindo a luta. Mas em sua loucura, estava errado, assim que deixou seu pequeno anjo a profecia se concretizou, dez anos de noivado não suportavam uma separação brusca como aquela e a mulher fragilizada pelo abandono não viu outra saída. Suicídio.
Os galhos rangiam e a folhagem densa chacoalhava mais do que o normal, um gemido longo e agonizante invadiu os sonhos do homem e o trouxe para a realidade, da janela viu a cena que lhe tiraria a paz para o resto da vida. Pendurada num galho pelo pescoço permanecia inerte como uma estátua suspensa... Como um anjo.
Leon era o xerife da cidadezinha, também irmão de Lenore. E era bronco o matuto, nunca se conformaria com a morte de sangue do seu sangue, carregou a pistola com esmero, precavendo-se nos detalhes como se faz na última vez, na despedida.
Da neblina densa ela veio cavalgando, o tambor rodava a cada martelada, ele veio com fogo nos olhos, enquanto Henry tentava colher a amada nas ramas da morte. O irmão a amava, a dor da perda dilacerou seu coração e fez com que o revólver tomasse vida em suas mãos, a culpa pela sua perda caiu sobre o noivo desamparado e a bala foi ao seu encontro.
A luz branca lhe feria os olhos acostumados com a escuridão, atordoado observava a movimentação de pessoas a sua volta, trajes alvos iluminados. A morte, enfim, veio lhe defraudar do benefício da vida, pensou ele.
No quarto pequeno a noite entrava sem pedir licença, preenchia os espaços vagos e o sufocava. Se perguntava todos os dias o porquê de sua existência. Naquela tarde improvável, duas pessoas morreram, perdera a mais importante de sua vida para uma forca, e o irmão... que só queria justiça, apertou o gatilho. O estampido. O tambor rodou. Ao constatar, erroneamente, a morte do inimigo Leon meteu o cano entre os dentes e fez seu julgamento. Culpado. A cidade seguiu o cortejo dos irmãos no dia seguinte, mas Henry não.
Espremido pelas quatro paredes, no escuro, o demônio lhe fazia companhia. Estalava o tronco lenhoso, que se movia como as vértebras do corpo humano, curvando-se sobre o homem deitado. O cheiro de clorofila e sangue tomava conta do cômodo. A criatura o visitava todas as noites.
Não podia mais. Não podia mais suportar aquele destino, sob a sombra dominadora observava o exato local em que a bala penetrou, passou raspando em seu crânio e se alojou no coração do velho carvalho, agora, depois de tanto tempo, como um punho cerrado a árvore parecia ter se apropriado por completo do metal. Apalpou a cicatriz que a bala deixará em sua cabeça, sentiu uma coceira na pele sensível e uma fisgada no peito.
Os primeiros raios de sol apontavam no leste enchendo o céu, a pouco negro, de cores quentes, as dinamites posicionadas ao redor da planta imóvel previam seu destino. Estava obstinado a acabar com sua dor e no silêncio do alvorecer a chama foi acesa, o pavio queimava a cada centímetro com a excitação do homem boquiaberto. Ela veio em sua direção. Como se a morte lhe pregasse uma peça, a explosão propeliu a bala há anos alojada no carvalho direto em sua cabeça. E dessa vez, foi certeira.
À medida que o sol avançava iluminava o corpo inerte, a luz trazia consigo vidas. As pequenas borboletas alaranjadas flutuavam levemente no céu azul turquesa, pousavam, uma a uma, no sangue fresco e ali permaneciam alimentando-se do néctar da morte.
16/06/2015
Conto baseado na história de Henry Ziegland