Noites de Lua Cheia

Já faz algum tempo desde a ultima vez em que me encontrei com o conhecido professor Van Helsing, no que eu poderia descrever como sendo o mais sórdido e aterrorizante episódio de minha vida.

Estava eu aproveitando um curto período de férias em que me afastei da metrópole londrina sempre agitada e de meus deveres no sanatório, viajando pelo velho continente, quando recebi um telegrama de meu velho professor de medicina psicológica e resolvi encontrá-lo pessoalmente na cidade de ****, aproveitando assim para colocar em dia nossa discussão sobre os vários casos de pacientes sob a nova ótica da psicologia recente.

O dia estava claro exceto por algumas nuvens negras que se aproximavam como um presságio quando desci do ônibus ainda puxado por cavalos, ao contrário dos ônibus londrinos a motor de combustão, em frente ao hotel em que se hospedava Van Helsing.

A recepção por parte dele foi calorosa.

- Jack, meu bom amigo, que bom ver você. Recebi sua resposta a meu telegrama e estava ansioso por tê-lo por perto.

- Estou a passeio, nada como umas férias depois de um prolongado período de trabalhos psicológicos que me consumiram boas noites de sono, e não poderia deixar de vê-lo meu velho amigo.

- Sim, sim. Estou feliz em vê-lo também meu bom Jack.

Alguma coisa no olhar do meu amigo me fez acreditar que ele estava fazendo mais do que apenas ser gentil, mas também apreciaria minha companhia. Após esta calorosa recepção, ele me convidou para acompanhá-lo até a casa de um velho amigo, pois tratava-se de um caso interessante em que eu poderia contribuir com minha experiência. E, após me registrar no hotel, saímos a pé pela rua principal logo passando por ruas estreitas onde se podiam ver várias casas de dois andares de arquitetura tipicamente teutônica, até que depois de não mais que dez minutos de caminhada o professor e eu chegamos a uma casa comum que preservava a arquitetura de séculos atrás como muitas casas daquele bairro, e sem cerimônia van Helsing abriu um portão já enferrujado me convidando a segui-lo.

Um homem já passando da meia idade, trajando um surrado terno de verão, nos recepcionou e nos convidou a entrarmos em sua casa. Uma vez dentro da casa pude vislumbrar o teto baixo de madeira de carvalho segurando o que parecia ser um telhado bem simples, mas nada frágil. Em um cômodo modestamente mobiliado com móveis antigos, usado para receber as visitas, o homem de modos comedidos, olhou com certa curiosidade para mim, ao que o professor iniciou as apresentações.

- Este é um velho amigo, meu antigo aluno, doutor John Seward de Londres. – apresentou-me o professor, e diante de certo desconforto do anfitrião, prosseguiu. – O senhor pode confiar nele. Jack este é o burgomestre Hans Keler, e se nos concede a honra, poderia narrar sua estória senhor burgomestre.

A principio o burgomestre pareceu indeciso diante de nós, até que deu de ombros e prosseguiu com sua narrativa.

- Foi a dois dias que encontramos a última carcaça de cordeiro morto no pasto. Parece que todos acreditam que foi atacado por um animal selvagem, mas simplesmente não há por aqui nenhum animal, qualquer fera conhecida, que pudesse cometer tamanho atentado. Parece que foi um ataque brutal, de alguma coisa que matou apenas por matar. E não é de agora, muitos outros animais já apareceram mortos.

O professor Van Helsing, pensativo, mexe em seus óculos por um instante, gesto que já aprendi a bastante tempo que significa estar ele raciocinando.

- Por acaso estes atentados aconteceram sob influencia de alguma coisa anormal? Tipo, lua cheia?

- Bem... – os olhos do burgomestre pareceram quase saltar das órbitas. – Acho que sim.

- Não está dizendo tudo não é mesmo, senhor Keler. - interroga o professor olhando direto nos olhos do burgomestre, que, por um instante com seu lábio a tremer, prossegue.

- Já houve pelo menos duas vitimas humanas. – o burgomestre parece soltar a respiração com dificuldade, como que desabafando uma grande carga emocional. - O senhor entende que se os ataques se limitassem a simples carneiros, nunca iríamos incomodá-lo, mas levando em conta seus conhecimentos científicos e o acaso de estar aqui perto, pode ser a nossa ultima esperança de resolver esse mistério, cujo autor deve ser algum velho açougueiro ensandecido passando-se por animal feroz.

- O que me diz disso, Jack? Doentes mentais são sua especialidade. – indaga Van Helsing, fixando- me um olhar penetrante.

- O senhor bem que poderia estar certo em suas suposições senhor burgomestre, já vi casos semelhantes onde o enfermo parece acreditar ser tomado pela consciência de uma fera, mas precisaria de informações a mais para afirmar qualquer coisa. – respondo diante do proprietário da casa, ao que Van Helsing toma a palavra.

- Muito bem, vamos investigar a situação. Mas é meu dever deixar bem claro senhor Keler, que existem casos inexplicáveis em nossos tempos. – argumenta o professor. – Como o doutor Seward aqui pode atestar, ainda existem muitos mistérios em se tratando de assassinatos incomuns por todo o mundo.

- Doutores, eu gostaria que suas investigações a este respeito pudessem se limitar apenas ao nosso conhecimento. Não gostaria de ver o turismo afetado por suposições errôneas. O povo daqui é muito supersticioso e não gostaria que acreditassem que nossa cidade é o lar de alguma criatura sobrenatural.

- Fique tranquilo meu bom homem, seremos de uma discrição total no tocante a estes incidentes. E para começar gostaria de ver os corpos atacados.

- Bem, quanto aos homens brutalmente atacados já cremamos seus corpos. – e pude ver certo desapontamento nos olhos de meu mentor, diante das palavras do burgomestre. – Mas talvez a ultima carcaça de carneiro possa ser de alguma utilidade para os senhores.

...

A carcaça do que sobrara do carneiro não nos deixava muito animados quanto à origem do ataque, mas naquele galpão fechado, com o odor quase insuportável da carne que começava a se putrefar, Van Helsing conseguiu algumas informações de utilidade graças a seus conhecimentos sobre a anatomia de diversos animais.

- Veja só isso, Jack. – chamou-me a atenção segurando a cabeça e o pescoço do cordeiro. – Há diversas lacerações pelo corpo, mas acredito que a causa da morte foi por estrangulamento, como muitos predadores costumam fazer com suas presas, prendem o pescoço com suas mandíbulas e esperam até que morra.

- De que tipo de predador estaríamos falando? Lobos? – acrescentei com certa curiosidade.

- Pelo tamanho das presas... – e, segurando um fórceps, ele abre uma das cavidades que escorrem sangue. – Veja, realmente parece ter sido uma mordida de um lobo, mas nunca vi dentes tão grandes para fazer tamanho estrago.

- Em que está pensando? – aludi me aproximando mais e fixando meu olhar no pescoço do animal abatido.

- Não sei meu amigo, dentes grandes, garras compridas e afiadas, eu diria que se trata de um predador feroz com cerca de dois metros de comprimento.

Espantei-me com as dimensões calculadas pelo professor

- Um urso talvez? – Parecia-me impossível um ataque de urso naquela região da Europa, mas eu estava aberto a toda e qualquer possibilidade.

- Não creio meu amigo.

- Resta uma dúvida professor: Por que o predador não comeu a carne do animal?

- Não sei, talvez tenha caçado apenas por instinto, você sabe, como alguns gatos domésticos que caçam só por caçar e não porque tenham fome. Novas teorias de naturalistas proeminentes nos falam de que muitos animais agem apenas por instinto. Certamente não se trata de acasalamento, nem de sobrevivência, talvez o predador tenha atacado apenas para proteger o que acredita ser seu território.

- Obviamente trata-se de uma criatura de hábitos noturnos, deve atacar a noite e dormir durante o dia. Onde iríamos encontrar tal criatura? – aludo com certo receio de que o professor quisesse pôr a prova suas teorias perseguindo o animal durante o dia.

- Tem razão, Jack, agora são duas da tarde, ele deve estar dormindo em algum lugar. – alguma coisa no olhar de meu amigo me fez pensar que ele suspeitasse de mais alguma coisa que não quis compartilhar comigo.

- O que vamos fazer em seguida, professor? Não acho que seja fácil encontrar uma criatura de dois metros facilmente. Se esta fera existir não gostaria de encontrá-la cara a cara.

- Como você disse Jack, durante o dia não precisamos nos preocupar em sermos atacados, por isso sugiro que vasculhemos as imediações onde este carneiro e as demais vítimas foram atacadas, talvez encontremos novas pistas que nos levem ao seu covil.

Depois de nos desvencilharmos dos aventais de açougueiro, alugamos os serviços de um carro, que nos levou até uma extensa pradaria. O cocheiro, com instruções de nos esperar, ainda nos avisou para termos cuidado porque aquelas terras eram perigosas, sem desconfiar de nossas intenções.

Um tapete verde se estendia até onde a vista podia alcançar, pontilhado de árvores à esquerda e a direita, uma floresta de pinheiros se erguia a esquerda, e Van Helsing achou uma boa ideia começarmos naquela direção. Passamos uma hora procurando por animais mortos, pêlos nos arbustos, ou qualquer outra evidência da passagem e do paradeiro do animal que procurávamos, até que a beira de um riacho avistamos uma casa. À primeira vista era uma casa bonita de dois andares com o teto alto e uma roda de moinho d’água que girava devagar na encosta de um riacho, ao lado alguns animais domésticos e um galpão de fazenda.

Aproveitando para descansar de nossa busca, fomos até a casa onde pretendíamos obter alguma informação sobre coisas estranhas na região. Um homem alto e magro com cara de poucos amigos e rosto macilento nos recepcionou com um balde de leite em uma das mãos. Obviamente devia ser o caseiro do que parecia ser uma pequena chácara alto sustentável.

- Olá amigo. – saudou-o Van Helsing – poderia nos ceder um pouco de seu tempo e também um pouco de água fresca para dois viajantes cansados?

Com uma expressão de quem não estava nem aí, o homem apontou com a cabeça para um poço ali perto, onde nos refrescamos. Em seguida Van Helsing tentou entabular um diálogo com o camponês que ainda estava desconfiado com os repentinos visitantes.

Estendendo a mão para o camponês que apenas cuspiu para o lado e nos ignorou retomando seus afazeres, ficamos sem jeito.

Como não soubéssemos mais o que fazer para obter informações sem perturbar o camponês, nos viramos para ir embora quando avistamos na porta dos fundos da casa uma velha senhora de espingarda nas mãos.

- Horácio, quem está aí com você?

O camponês olhou de soslaio para a senhora, e acrescentou.

- São dois doutores da cidade, dona. - e ignorando tudo o mais, pegou de um tridente e começou a passá-lo pelo solo raspando a palha caída. A velha senhora veio até nós, nos contemplou por alguns instantes com desconfiança nos deixando constrangidos, em seguida se desculpando.

- Ah, por favor, cavalheiros, não dêem atenção ao Horácio. Venham, não é todo dia que aparecem visitantes por aqui. – e nos levou para dentro da casa, pegou uma caneca de água numa vasilha e nos ofereceu. Ao que recusamos a oferta.

- Muito obrigado cara senhora, mas já satisfizemos nossa sede no poço.

Depois das apresentações, Van Helsing resolveu tocar no assunto que nos levara até ali. Mas antes que pudesse começar entrou ali no recinto uma linda jovem em trajes comuns de simples moça do campo.

- Tia Helga, tem alguém aí? Ouvi vozes...

Ela parou num instante, sobressaltada. Sua voz era quase musical, seus cabelos louros caindo-lhe pelas costas e seus lindos olhos castanhos me deixaram fascinado. Somente uma vez há muito tempo atrás eu lembrei de ter visto tamanha beleza em uma mulher, que fora enfeitiçada por uma criatura das trevas. De certo modo ela me lembrou Lucy.

- Oh, sim, minha querida. – prosseguiu a velha senhora com um sorriso. - Temos visitantes da cidade. Cavalheiros esta é Julia, minha sobrinha. Vivemos aqui, nós duas e Horácio desde que meu marido morreu.

Enquanto eu permanecia mudo de espanto com a beleza da jovem Julia, Van Helsing tomou-lhe a mão beijando-lhe, ao que me chamou a atenção e eu fiz o mesmo mecanicamente.

- Disse que seu marido morreu minha cara senhora? – prosseguiu o professor, deixando Helga levemente abalada com a lembrança do marido.

- Sim, foi há dois anos.

- E por acaso ele foi atacado por uma fera selvagem?

De repente as duas mulheres foram tomadas por uma palidez anormal, sendo que Julia até perdeu o equilíbrio sendo amparada por mim.

- Oh, não, não, meu bom Helmut morreu de um surto de gripe, caro senhor.

O professor retirou seus óculos por um instante fazendo silêncio.

- Senhora, estamos a caça de um animal de grande porte, um predador feroz que já fez várias vitimas. Por acaso, não sabe nada que possa nos ajudar? – continuou o professor apesar do espanto geral que suas palavras pareciam causar.

Por uns instantes a velha senhora parou e pareceu refletir sobre o que dizer, enquanto Van Helsing olhava em torno da sala de visitas, modesta, mas aconchegante, onde nos encontrávamos, parecendo encantado com a estranha decoração. Parecia haver vários amuletos celtas e nórdicos de difícil interpretação, mas o velho professor deixou escapar um olhar de admiração.

- Como já disse, eu e minha sobrinha vivemos sós por aqui, e sim já ouvimos falar de alguns ataques a cordeiros nas proximidades. Mas não mantemos contato com outros fazendeiros, vivemos em um mundo a parte do resto da humanidade em nossa propriedade.

- Mas senhora, acredito que seria perigoso para vocês caso esta criatura decidisse atacar sua chácara. – completo eu, tentando não imaginar aquela bela jovem nas garras de uma fera.

- Os animais não são perigosos nesta parte da região, somente temos medo é de ladrões e assassinos, e acho que isto que você está procurando meu bom senhor não deve passar de algum foragido da polícia se escondendo no bosque.

- E neste caso, a senhora não concorda que é perigoso para duas mulheres vivendo sozinhas...

- Sei o que quer dizer senhor Van Helsing, mas não estamos desprotegidas, nunca saímos a noite e Horácio tem ordens de atirar em qualquer um que se aproxime sem se identificar.

Desistindo de convencer a velha de algum perigo iminente, o professor finalmente se dá por derrotado, e depois de algum tempo de conversa trivial, nos despedimos e partimos de volta para o local onde o cocheiro do carro de aluguel nos esperava. Enquanto caminhávamos, Van Helsing aludiu ao comportamento da velha senhora quando tocamos no assunto da fera.

- Não acha estranho estas duas vivendo praticamente sozinhas neste fim de mundo, Jack?

Eu ainda estava com meus pensamentos em Julia, e com algum esforço me concentrei novamente em nossa tarefa.

- Acha que deveríamos avisar o burgomestre sobre esta propriedade e estas mulheres?

- Não meu amigo, não acho que deveríamos importunar mais estas senhoras e seu estranho criado, mas uma coisa me chamou a atenção lá na casa. Aqueles estranhos amuletos de proteção por toda a parte, principalmente nas portas e janelas. Acho que estas mulheres sabem mais do que deixaram escapar.

Novamente me vi aterrorizado diante da perspectiva da bela Julia ser atacada por uma fera, e deixei transparecer meu medo diante de meu mentor, de maneira que tentei disfarçar.

- Não encontramos nada que pudesse nos indicar o paradeiro da fera, o que faremos a seguir?

Acredito que devemos visitar um local específico esta noite, mas antes pretendo obter mais algumas informações nos registros de cidadãos da cidade.

...

Já passava da meia noite no cemitério e o professor e eu, depois de uma busca cansativa iluminando diversas sepulturas com a luz de nossas lanternas a querosene, estávamos esgotados. Finalmente Van Helsing encontrou o que procurava.

- Aqui está Jack, a cova que procurávamos. – e na lápide pude ler o nome de Helmut Bergerman.

- Mas é o túmulo do marido da velha Helga. – constatei espantado.

- Sim, depois de passar o resto desta tarde entre os registros de óbito do cartório municipal, pude constatar que o velho Helmut não morreu de gripe. Na verdade não houve sequer uma única vitima de gripe nos últimos trinta anos.

- Então a velha Helga estava mentindo sobre a morte de seu marido. Mas por quê?

- Isto Jack é o que vamos descobrir. – e dizendo isto Van Helsing me atirou uma pá, enquanto pegou outra e se pôs a cavar o túmulo.

Depois da extenuante tarefa de escavar no cemitério a noite, finalmente tocamos o caixão de madeira de carvalho com nossas pás, e, com cuidado, o velho professor calçando um pé de cabra sobre a tampa, abriu a tumba. Um cheiro nauseante saiu de dentro e pudemos contemplar à luz da lanterna o cadáver. Já estava em adiantado estado de putrefação, uma caveira com as órbitas dos olhos vazias vestido com trapos, com os vermes a correrem pelo que sobrara da face carcomida. Com cuidado, o professor, usando de seus instrumentos cuidadosamente carregados em uma maleta, verificou que Helmut teve como motivo da morte alguns disparos de tiros próximos ao coração.

- Como imaginei, Jack. De agora em diante vamos andar sempre armados em nossas buscas. – e dito isto nos pusemos a deixar tudo como encontramos antes.

Enquanto meu amigo fazia os últimos preparativos para nos despedirmos do cemitério, me entregou um amuleto celta, que ele disse poderia ser útil carregar comigo.

Antes de sair do cemitério, resolvi dar uma olhada mais detida naquele lugar, me distanciando do professor sem perceber. Depois de caminhar um pouco entre as lápides, algumas recentes, outras caindo pelo peso dos anos, pude sentir uma presença a me vigiar. Algo que me deu um arrepio na espinha.

Olhei em volta a procura de Van Helsing com minha lanterna. Depois de ouvir um leve rosnado, percorri com o olhar em todas as direções. Vi um vulto se esgueirar ao longe, e levei um susto quando senti uma mão pousar sobre meu ombro.

Felizmente era o professor.

E antes de irmos embora daquelas catacumbas, ouvimos um uivo assustador de gelar o sangue.

...

Após nossas atividades noturnas voltamos para o hotel. Solicitei a meu amigo que me elucidasse sobre suas conclusões, mas ele apenas respondeu que estávamos cansados e sob a má influência da noite, e que no outro dia iria me colocar a par de suas teorias. Como o dia transcorreu sob intensa atividade de Van Helsing que passou a maior parte do tempo consultando velhos livros empoeirados de seus pertences, somente à tardinha voltei a encontrá-lo.

- Boas notícias, Jack, falei com o burgomestre e esta noite mesmo vamos encontrar a fera e acabar com toda esta estória.

- Esta noite? Mas como decidiu-se assim tão rápido?

- O tempo urge, hoje à noite teremos a última lua cheia do mês, e nós não podemos ficar esperando a próxima lua favorável.

Neste ponto fiquei irritado com o professor e num acesso de fúria repentina coloquei-o contra a parede.

- Lua cheia? Por acaso estamos caçando uma criatura sobrenatural?

- Sim, tem razão meu bom Jack, devo colocar-lhe a par de minhas descobertas antes de perseguirmos a fera. – e por um instante que pareceu uma eternidade para mim, ele refletiu antes de retomar a palavra. - Estamos no novo século Jack, o século da ciência, onde muitas superstições antigas estão dando lugar a um novo entendimento sob a ótica da ciência, mas ainda existe muita coisa não compreendida pelos microscópios da ciência. Melhor prevenir. - e dizendo isto, me mostrou um revólver que retirara de sua maleta, o que me deixou aturdido. - Já ouviu falar de licantropia?

Titubiei um pouco antes de responder.

- Sim, claro, é uma lenda sobre lobisomens. Se alguém for atacado por um lobisomem também acaba por se tornar outro lobisomem. Mas isso é apenas uma lenda relacionada com hidrofobia, ou raiva, que pode ser passada adiante por um arranhão ou mordida da fera contaminada.

- Quisera fosse tão simples, meu amigo. – e antes que eu repelisse qualquer argumentação, Van Helsing levantou a mão com um olhar sério, continuando. – Desde sempre os lobisomens estiveram em nosso meio. Como surgiram? Talvez uma maldição decretada pelo próprio demônio... Existem registros sobre esta espécie já na renascença, como o caso do julgamento de Stub Peter Sumpt, acusado por cidadãos dignos de sua comunidade de se transformar em uma criatura semelhante a um lobo, em Colônia na Alemanha.

- Isso parece coisa da Santa Inquisição professor. – comentei entre um sorriso e outro.

- “Intrabunt lupu rapaces in vos, non partences gregi.”

- Reconheci a citação como latim. Rememorando meu conhecimento sobre esta língua morta, traduzi: - Esfomeados lobos então entre vós, e não perdoarão o rebanho.

- Esta, Jack, é uma citação da própria Bíblia, atos dos apóstolos, capitulo vinte e um, versículo vinte e nove.

- Mas o que tem tudo isso a ver com a fera que estamos perseguindo? Não acredita que estamos atrás de um lobisomem, não é?

- A criatura que procuramos só ataca a noite e somente aparece em noites de lua cheia, como pude registrar por todos os ataques efetuados até agora. E em toda a literatura que consultei a respeito, só é registrado um meio de acabar com tal monstruosidade, com balas de prata. Qualquer outro meio pode apenas ferir temporariamente a criatura, que se recupera logo.

- Mas se existe um lobisomem, isto significa que ele é uma pessoa comum durante o dia...

- Meu bom Jack, a licantropia é como uma doença como você mesmo disse, e em toda doença infecciosa há sempre um paciente zero, alguém que contraiu a doença primeiro e depois a espalhou. – falou o professor com autoridade de especialista. – Acredito que Helmut Bergerman é nosso paciente zero. De alguma forma ele contraiu esta doença e foi morto com tiros de balas de prata nos órgãos vitais, mas parece que antes de morrer, passou adiante sua enfermidade.

Fiquei aturdido, pois a julgar pelos anos que eu conhecia o velho professor, sabia que ele estava falando sério, e não estava a me pregar alguma peça, concordei finalmente com sua teoria do lobisomem.

- E como vamos pegá-lo?

- Como eu já disse falei com o burgomestre e ele nos cedeu alguns homens, experientes caçadores, para patrulharmos os arredores durante esta noite, e com sorte pretendo matar esta criatura demoníaca.

Fiquei perturbado com as palavras de meu mentor, mal conseguindo esconder meu nervosismo, e à noite, quando nos reunimos com os caçadores, eu estava empunhando uma espingarda de repetição automática, quando Van Helsing depositou em minhas mãos alguns cartuchos que pude perceber traziam projéteis de prata, e assim começamos a caçada.

A lua despontava no céu límpido e sem nuvens, quando todos nós, Van Helsing, eu e mais oito caçadores, chegamos às proximidades do bosque. Os caçadores logo começaram a percorrer o lugar em busca de vestígios da passagem da besta, deixando os cães farejarem o terreno. Depois de algum tempo de busca infrutífera, os cães começaram a ficar inquietos diante de um vulto que se projetava no escuro. Alguns caçadores tentaram iluminar com as lanternas de querosene, enquanto soltavam os cães para perseguir a criatura, segurando suas espingardas. Um uivo se fez ouvir, os cães, depois de alguns ganidos, permaneceram em silêncio absoluto. Bem atrás dos caçadores, que se aproximaram com cuidado apontando para frente e para os lados, Van Helsing, fez um gesto para mim, sussurrando logo em seguida com certa animação:

- Parece que o encontramos, Jack. – ao que permaneci calado sem esconder meu nervosismo, pois nunca estivera antes em uma caçada.

Logo depois ouvimos alguns tiros e corremos de arma em punho para onde alguns dos caçadores gritavam feito loucos. No chão pudemos contemplar o que sobrara dos cães, e de dois perseguidores, cujas vísceras estavam espalhadas pelo solo. Lutei para manter o foco e refreei uma vontade louca de sair correndo dali, quando um dos caçadores gritou para seguirmos em frente.

Enquanto avançávamos, tropecei numa raiz e cai como um saco de batatas, esfolando minhas mãos e deixando cair longe a minha arma. Aturdido, tentei recuperar as forças o mais rápido possível me levantando e procurando minha espingarda, tomado pelo medo, quando senti aquela mesma presença novamente ao meu redor. Lutando contra meu próprio terror, e iluminando o bosque a minha volta, deparei-me com a besta a não mais que uns dez metros, saindo dos arbustos, caminhando sobre as patas traseiras. Seu rosnado me enchia de terror e seus dentes afiados por onde escorria uma saliva cheia de sangue, me ficaram eternamente guardados na memória. Paralisado pelo medo, quase sem conseguir respirar, senti a criatura se aproximando com cautela de mim, pronta para o ataque, mas no momento decisivo em que parecia que ia me despedir de minha vida, e fechei os olhos esperando pelo ataque final, ouvi um tiro. Era Van Helsing, que acertou a criatura. Com um rugido de dor e assustada, a besta desatou a correr na direção oposta.

- Jack, você está bem? – perguntou-me o professor, sacudindo-me para me tirar de meu torpor, ao que pude aos poucos retomar o controle sobre minhas faculdades. – Desta vez foi por pouco meu amigo.

Os caçadores que se aproximaram notaram o rastro de sangue deixado pela besta e decidiram que a melhor coisa a se fazer seria seguir o rastro e apanhar a criatura quando estivesse indefesa.

Desta forma, seguimos o rastro por um bom tempo até nos aproximarmos da casa da velha Helga, por onde parecia que o rastro de sangue levava. Obviamente, concluiu o professor, a criatura estava desorientada pelo ferimento, e talvez quisesse se esconder por ali. Tremi, pois de repente imaginei a doce Julia atacada por aquela monstruosidade e senti crescer em mim uma nova força que até então desconhecia.

Nos aproximamos da casa devagar e com muita cautela. Na medida em que nos aproximávamos, porém, notamos que a porta do galpão estava aberta, escancarada. Deduzimos que a fera fora se esconder ali dentro. Dois caçadores fizeram a volta por trás do galpão, enquanto chegamos, todos os restantes, pela porta. Repentinamente a besta em forma de lobo apareceu e, entre os tiros dos caçadores, passou por todos correndo com fúria avassaladora. Mas, tropeçando, se viu entre vários oponentes bem armados. Foi quando começou a luta feroz do animal pela própria sobrevivência, pois encurralado e ferido, pareceu duplicar sua força e arrancou, com as garras, a cabeça de mais um caçador, e chegou perto de Van Helsing. Foi quando um tridente manipulado por alguém atingiu o tórax da fera por trás e pude ver que quem atacou a criatura não era outro senão o caseiro Horácio.

O animal, ainda entre tiros dos caçadores que haviam sobrevivido, arrancou o tridente soltando um grito que arrepiou a espinha e deixou de cabelos em pé todos ali presentes, enterrando-o no corpo do caseiro. Van Helsing, com seu revolver carregado com balas de prata, fez mira no lobisomem, e conseguiu disparar um tiro certeiro no que posso acreditar fosse o fígado da fera que ganiu como um cão ferido.

Olhando para o professor e depois para mim, a fera parecia compreender que chegara o seu fim. Caiu ao chão, e aos poucos começou sua metamorfose, transformando-se em um ser humano.

Ao final da metamorfose me sobressaltei e soltei um grito de pavor, pois estava a minha frente ninguém menos que Julia, toda nua e completamente morta, com seus cabelos espalhados entre o sangue que escorria.

...

O professor e eu nos preparamos para ir embora daquela cidade depois de nos despedirmos do burgomestre e nos comprometermos a nunca contar a ninguém sobre o que vimos por ali.

A velha Helga ficou desolada com a morte da sobrinha e nos contou que seu marido, um velho caçador, se transformou na fera depois de voltar de uma de suas caçadas e nunca mais foi o mesmo. Ela própria acabara com sua maldição depois de uma de suas transformações, porém, antes do fim inexorável, ele havia atacado sua sobrinha, que sobreviveu, mas passou a carregar a maldição para sempre. A velha senhora tentou protegê-la da melhor maneira que pôde, mas não aguentava mais aquele tormento.

Quando estávamos a caminho da estação de trens na cidade vizinha viajando para tanto numa charrete fornecida pelo burgomestre, eu estava completamente desolado, sem ânimo nem para manter uma conversa com meu mentor de tantos anos. Percebendo meu estado deprimente, Van Helsing se dirigiu a mim.

- Ânimo, Jack, meu velho amigo. Fatalidades acontecem, a vida continua.

Ouvindo as palavras de consolo de Van Helsing, lembrei de outra mulher dominada por um demônio, a boa Lucy, e, assim, forçando um sorriso para o professor, assenti com a cabeça. De volta a Londres, mergulhei profundamente no trabalho com meus pacientes e pude aos poucos esquecer o que se havia passado naquela cidade longínqua, mas sempre permanecerá a lembrança e o horror que desde então a lua passou a exercer sobre meus humores.

Fim

Paulo Salgueiro
Enviado por Paulo Salgueiro em 06/06/2017
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