O Cãozinho
O filhotinho veio dentro duma caixa, as crianças pulavam de alegria.
— Você comprou, mãe! Obrigado!
Mas Susana deixou bem claro aos filhos:
— São vocês que vão cuidar dele.
Batizaram o cãozinho de Lúcio, um vira-lata preto. Lúcio era carinhoso, lambia as orelhas dos meninos, corria trôpego pela sala.
Crescia, e foi aí que começaram os problemas. O temperamento de Lúcio mudava, já não era mais tão carinhoso, latia o dia inteiro e rosnava para as visitas. Um dia, mordeu a mão de Susana quando ela tentava tirar um osso de galinha da boca dele.
As crianças o defendiam:
— É só um cachorro, mãe.
Porém, quando elas saíam para a escola, Lúcio se transformava; seguia Susana pela casa, intimidando-a; se ela lhe desse uma ordem, ele desobedecia; se ela queria assistir TV, ele se deitava no sofá (havia crescido bastante) e mostrava os dentes; se ela tentava enxotá-lo para o quintal, ele avançava contra ela e, se a agarrasse em suas presas, o estrago seria grande.
— Temos de dar o Lúcio — ela insistia, mas, sob apelos desesperados das crianças, Susana acabava mudando de idéia, mesmo sabendo que suas tardes seriam um inferno, com Lúcio a seguindo e a ameaçando o tempo todo.
Susana temperava um bife para o jantar, Lúcio deu o bote e o arrancou de Susana, ferindo-a no pulso. Assustada, enquanto o cão devorava a posta, ela o trancou na cozinha e correu para o quarto. Refletia um modo para se livrar do cachorro, sem que as crianças sofressem com isto. Lúcio, confinado à cozinha, uivava.
Exausta e com medo, Susana se deitou, tentava cochilar. Os uivos cessaram, porém, ela ouvia outra espécie de ruídos, algo arranhava a porta do quarto. Lúcio havia escapado. As arranhadas se converteram em patadas, o animal queria entrar de qualquer maneira. Rosnava.
— Sai daqui! — Susana gritava, mas, ao invés de acalmar a fera, seus gritos apenas o estimulavam mais, seu medo o alimentava.
Inesperadamente, as investidas de Lúcio pararam; som nenhum se podia ouvir. Trêmula, crente de que Lúcio havia encontrado outra diversão, Susana entreabriu a porta, apenas para encontrar os olhos flamejantes da besta, dentes afiados à mostra. Ele se precipitou sobre ela, jogando-a no chão. Com as patas sobre o tórax de Susana, Lúcio a dominava, baba escorrendo sobre o rosto dela, presas a poucos centímetros de seus olhos, com fúria de quem estava disposto a trucidá-la.
Risos na sala de estar dissiparam a ira de Lúcio que correu, rabo abanando, para saudar as crianças que retornavam do colégio.
No dia seguinte, Susana preparou a comida de Lúcio, que se refestelou, sem nunca tirar os olhos enfurecidos da mulher, depois, ele se deitou no sofá. Durante horas, ficou lá, sob a vigilância de Susana, que aguardava o efeito do veneno de rato. No entanto, Lúcio continuava vivo, muito vivo.
— Veja, mamãe, tem uma coisa no pescoço do Lúcio! — um dos meninos havia encontrado uma marca, um símbolo, gravado na garganta do cachorro. Susana se aproximou e viu um pentagrama, invertido, como uma cicatriz.
— O que isto significa? — as crianças perguntaram.
Susana não sabia, mas ao vasculhar, na Biblioteca, um tratado de simbologia, ela descobriu que o pentagrama invertido havia sido adotado como o símbolo de Satanás.
Mais do que nunca, livrar-se de Lúcio se tornava crucial.
Religiosidade não era o forte de Susana, mas ela entrou numa igreja antes de voltar para casa. A igreja estava vazia; ela procurou pelo padre, mas não o encontrou. Porém, na sacristia, um crucifixo dourado chamou sua atenção; apesar do sacrilégio, Susana o retirou da parede e o guardou na bolsa.
Em casa, logo ao entrar, Susana se armou com o crucifixo. Deparou-se com Lúcio na cozinha e, quando o animal avistou o símbolo sagrado, começou a urrar, não como um cão, mas como um homem em agonia. Susana se aproximava dele, brandindo o artefato. Lúcio recuava para um canto, presas à mostra, olhar enfurecido.
— Afasta isto de mim, mulher! — uma voz rouca brotou de Lúcio.
A mão de Susana tremia, ela fraquejava, mas este confronto era necessário.
— Vai embora! — ela gaguejava.
— Não, não! Eu vou ficar — a voz rouca retrucou.
— Vai embora, demônio! — Susana berrava, quase encostando o crucifixo na testa de Lúcio.
A batalha esta perdida para a criatura, o cão se desvencilhou, estilhaçou uma vidraça e abandonou a casa de Susana.
As crianças ficaram tristes com a fuga de Lúcio, puseram cartazes de “Cão perdido” nos postes, mas não o encontraram.
Numa noite, Susana voltava da casa duma vizinha e teve a sensação de estar sendo vigiada. Olhou para trás e avistou uma sombra, esgueirando-se por entre os carros estacionados. Ela se apressou, mas, antes de cruzar o portão, viu um cão negro, olhos de fogo, rondando-a.
Por isto, apenas por garantia, o crucifixo roubado se tornou enfeite sobre a mesa de jantar. Deus certamente a perdoaria por este pecado.