Caça e Caçador
Era apenas mais uma noite de inverno fria e com muita chuva, não daquelas torrenciais causadoras de enchentes e sim daquelas que servem apenas para atrapalhar o transito nas ruas e molhar os pés dos transeuntes nas calçadas.
Alheio a todo aquele transtorno urbano, das pessoas que acotovelam como formigas disputando os ínfimos espaços embaixo das marquises e ameaçando os olhos uns dos outros com os guarda-chuvas, um homem caminhava impassível pela chuva. Suas vestes negras, recobertas por um pesado casaco de couro, contrastavam com sua pele alva, emoldurada por longas madeixas castanhas. Seu olhar era frio e seus passos decididos.
Poucos homens reconheceriam aquele homem naquela cidade. Seu nome era ou havia sido Jean Quebaud, francês, que há muitos anos atrás levara uma vida normal e pacata como professor de uma escola secundária nos arredores de Paris, casado com sua esposa, Marie.
A vida deste simples professor mudou quando ele e sua esposa resolveram caminhar à noite por um parque próximo de casa. Era tarde, quando em uma área mais deserta do parque, eles se depararam com o corpo de um homem caído no chão. Em um ímpeto de solidariedade ambos correram para perto, de modo a verificar o que teria acontecido com o homem. Ele pegou o celular e tratou logo de ligar para o número de emergência, enquanto ela se aproximou e tocou o rosto do sujeito. Subitamente a figura caída se levantou com uma velocidade sobre-humana, e duas presas brilhantes foram cravadas no pescoço da moça.
Jean que assistia a cena ficou paralisado. Era algo surreal assistir aquela figura pálida como um cadáver sugando o pescoço de sua esposa. Levaram alguns poucos segundos, que mais tarde se mostrariam fatais, para que ele se recuperasse e atacasse a criatura, que com a mesma velocidade o arremessou e o atirou para longe onde caiu inconsciente no chão.
No dia seguinte ambos foram encontrados no parque e levados para o hospital; ela com praticamente morta e ele gravemente ferido. Os policiais fizeram várias perguntas a Jean, cujas respostas foram recebidas como alucinações de uma mente traumatizada. Ele, porém sabia o que havia visto. Aquela pálida criatura sugadora de sangue não podia ser outra coisa além de um vampiro, e sua mente febril aceitava aquela conclusão perfeitamente.
Os dias se passaram e a notícia da morte de Marie chegou aos ouvidos de Jean. Lágrimas foram roladas e um juramento de vingança fora proferido. Dias depois, esse mesmo juramento fora repetido com veemência no túmulo de sua esposa.
Já tendo recebido alta do hospital, Jean se afastou de sua vida, emprego, família, amigos, e tratou de fazer todos os preparativos para sua missão. Muitas pesquisas foram feitas, afinal era preciso conhecer o inimigo. Infelizmente, apesar da quantidade absurda de informações encontradas, muitas se tratavam apenas de fantasia e ficção, criada para entreter as pessoas e não de informações verificadas a respeito dos malditos. Livros e mais livros de magia e ocultismo passaram a brotar em sua casa, juntamente com tablóides que Jean comprava diariamente em busca de casos estranhos e pouco noticiados, que pudessem fornecer alguma pista sobre o paradeiro da criatura.
Meses se passaram, Jean era outro homem, imbuído de conhecimento místico e de uma excepcional força física, ele passava seus dias abrindo caminho por entre o submundo em busca do sugador de sangue. Foram necessários muitos murros e queixos quebrados até que Jean chegasse ao refugio de sua caça, porém tarde demais, ela já não estava mais lá. Ainda assim ali ele conseguiu mais informação que o levou de Paris ao mundo e ampliou a sua missão de uma simples vingança contra um vampiro a uma guerra santa contra todas aquelas criaturas.
Dez anos se passaram. Muitas daquelas criaturas já haviam cruzado o seu caminho e haviam sido eliminadas da face do mundo. Agora ele estava atrás de uma nova presa, em uma nova cidade, novos ares. Suas fontes diziam que era um dos mais antigos e vivia em um prédio de luxo próximo ao centro, cercado de seguranças particulares. Uma coisa que ele aprendera durante esse tempo é que diferente dos filmes e livros, os vampiros não gostam de tumbas malcheirosas, esgotos e cemitérios. Sua caça vivia era um exemplo.
Se esgueirando com uma habilidade felina, Jean deslizou por entre as frestas e cantos mais escuros do edifício sem grandes contratempos, e logo chegou a cobertura. Se aproximando furtivamente pelas costas do segurança que guardava os aposentos do vampiro, ele o neutralizou rapidamente com uma arma com silencioso, e pegando seu cartão de passagem, adentrou o apartamento.
Sinistro, era a melhor palavra para definir a decoração do apartamento. Com temas que variavam do vitoriano ao renascentista. Uma sala grande, repleta de esculturas distintas, onde no final uma lareira queimava e em sua frente uma poltrona onde um velho se recostava.
Sorrateiramente ele se aproximou. Em sua mão esquerda uma estaca (que ele descobrira ser muito útil contra essas criaturas) repleta de signos arcanos, esperava em posição de ataque. Sem demora, ele chegou por de trás da poltrona, agarrou o pescoço do velho com sua mão direita e aproximou a estaca.
“Maldito sugador de sangue! Cria do inferno!”, ele exclamou.
O velho olhava impassível para ele. Sua respiração era serena e seu olhar calmo não mostrava qualquer sinal de surpresa. Muito estranho afinal nenhum vampiro haveria de se deixar capturar e aquele não seria o primeiro. Seria aquele um engano ou seria uma armadilha?
“Finalmente você chegou”, disse o velho enquanto suas presas cresciam, demonstrando sua verdadeira natureza. “Se você pensava em me surpreender, esqueça! Meus olhos estão em toda parte. Sabia der sua presença ainda quando cruzava o quarteirão. Permiti a você se aproximar, pois é meu desejo me livrar desta vida ou sobrevida. Quero, porém lhe dar um presente antes que você me livre do peso da existência...”
Os olhos do velho vampiro brilharam e com uma velocidade impressionante ele se livrou das mãos do caçador, fazendo com que ambos ficassem frente a frente. Aturdido com tamanha velocidade, o franco abriu sua guarda, permitindo com que o vampiro lhe mordesse a jugular.
As velhas histórias de pessoas que são mordidas por vampiros são falsas. Em anos, Jean nunca conhecera alguém que houvesse sido transformado em sugador, porém ele bem sabia que através do sangue os vampiros encontravam o caminho mais fácil para transmitir seus pensamentos. E assim foi, pois subitamente cenas alienígenas começaram a borbulhar sua cabeça junto com perguntas até então inéditas que fomentavam em sua mente. Seriam os vampiros, os verdadeiros anjos enviados pelo céu para vigiar a humanidade? Ou seriam eles seres puros que se alimentam da essência mais pura dos seres? Seriam eles os vingadores da natureza, responsáveis por aniquilar os maiores causadores de destruição do planeta? Fossem os vampiros verdadeiros demônios ou seres das trevas, seria a vingança um motivo sublime o bastante para se justificar tal guerra santa? Seria a humanidade pueril o bastante para deixá-lo sozinho em sua valorosa empreitada? A cena da morte do segurança e de vários outros humanos que ele eliminara para chegar aos vampiros... aquilo era correto?
Sua mente estava em torpor, porém seus braços foram fortes o bastante para prender o velho demônio novamente e lhe cravar uma estaca em pleno peito. Litros e litros de sangue escorreram e Jean se viu livre daquele turbilhão mental.
Não fora difícil sair despercebido do prédio. Suas roupas traziam marcas de sangue ainda fresco. A chuva dera uma trégua e ele caminhava rapidamente pelas ruas tentando não chamar muita atenção para si. Durante o percurso sua mente pensava o quão eficiente havia sido o ataque daquele vampiro, pois fermentara nele a dúvida: afinal, matara ele um monstro ou apenas garantira a sobrevivência de outro ainda pior?