A história da minha vida

Eu sempre fui um garoto muito solitário. Meu pai eu nunca conheci e minha mãe sempre foi muito ausente. Não digo dentro de casa, porque ela sempre foi muito carinhosa comigo, compreensiva, mas ela simplesmente não saía de dentro de casa.

Minha mãe nunca foi a uma reunião de pais minha. Quando chegava o dia das mães, todos meus amigos tinham suas mães na plateia durante as homenagens da escola. Menos eu. Eu era o único que sobrava com o botão de rosa na mão enquanto todos corriam de braços abertos em direção às suas mães que os aguardavam ajoelhadas, de braços abertos, com lágrimas nos olhos. Mas ela nunca deixou de receber nenhum desses botões. Eu sempre os trazia de coração cheio. Eu via ela sorrir quando recebia a florzinha, mas depois as vezes a via a chorando em um canto com o botão de rosa no colo.

A solidão da minha mãe naturalmente se estendeu a mim. Eu me tornei uma criança introspectiva, reservada e, segundo aos olhos dos outros, amargurada. Não tinha amigos. Minhas festinhas de aniversário consistiam em minha mãe cantando parabéns pra mim com um bolinho que ela fazia e uma velinha em cima. Nunca questionei a ausência do meu pai, como se eu simplesmente houvesse nascido exclusivamente dela. Eu nunca tive curiosidade também. Muitos dos colegas de sala eram filhos de pai divorciados ou de mães solteiras, então eu encarava com naturalidade.

Não foram poucas as vezes que pedi a minha mãe para que ela saísse um pouco comigo. Mas ela sempre arranjava alguma desculpa, dizia que não podia, que estava cansada, que locais cheios a esgotavam. Quando me via no canto chorando, me abraçava, secava minhas lágrimas e me pedia desculpas. Jurava que na próxima festinha da escola ela iria me ver. Mas sempre foi mentira. Ela nunca foi. Eu era muito jovem pra saber o que era a depressão ou ansiedade para cogitar que minha mãe sofresse de tal. E nós só tínhamos a nós mesmos ali.

Se eu ficava doente, minha mãe se negava a me levar ao medico. Nunca tive nada grave, nada muito além de uma gripe. Mas ela dizia que os fármacos eram veneno e o médicos loucos diplomados. Ela acabava por fazer algum chá ou xarope com algumas das hortaliças que cultivávamos no fundo do quintal. No outro dia eu estava ótimo de novo, o que era muito estranho levando em conta que meus colegas ficavam por dias gripados, semanas com resquícios.

A medida com a qual fui crescendo, de certa forma fui me acostumando ao jeito dela. Até porque eu via a tristeza em seu coração quando me via irritado ou chateado por conta de sua ausência e isso me deixava mais triste ainda. Compreendi que era mais forte do que ela. Eu comecei a pensar que talvez o fato dela ser mãe solteira a constrangia e ela não queria ser julgada por isso. Ás vezes eu ouvia buchichos pela escola sobre minha mãe ser preguiçosa e aceitar viver somente com a pensão que meu pai, que nunca vi na vida, mandava com medo de ser preso caso não o fizesse. Diziam que eu não tinha mãe, que eu havia nascido de chocadeira, que eu era um péssimo filho a ponto de minha mãe se quer tomar conhecimento sobre minha vida, que minha mãe era usuária de drogas, que ela se prostituía. No começo eu ficava muito triste. Caía aos prantos, o que só aumentava o gosto e prazer de quem me ofendia. Depois, com o tempo, eu fui passando a ignorar, quando não eu entrava na conversa deles e fazia historias absurdas, como por exemplo, que minha mãe era chefe de um facção mundialmente conhecida e como era procurada pelo mundo todo, não podia sair de casa, mas que sempre havia agentes da facção camuflados ao meu redor para me proteger . Era engraçado ver o horror nos rostos deles depois

Os professores sentiam pena de mim. Não foram poucas ás vezes em que ouvi eles lamentando minha solidão, ou ainda, fazendo perspectivas sombrias sobre meu futuro. “Tinha tudo pra ser um menino doce, mas a mãe não cuida e o pai não existe. Imagina quando crescer”; “Com a família ausente que tem, esse menino é um milagre” . Como a medida qual o tempo foi passando e eu fui crescendo as previsões deles sobre meu futuro se mostraram equivocadas, o meu “problema” foi sendo esquecido. Eu era um aluno tranquilo, de boas notas, então os professores passaram a não se importar com a ausência da minha mãe. Afinal, não havia necessidade dela comparecer as reuniões de pais e mestres porque os professores não tinham nada para falar de mim a ela. Talvez até quisessem dizer algo, mas quem chega a uma mãe e diz “Seu filho é solitário porque a senhora é negligente na criação dele”?

Mas, apesar desse jeito dela, minha mãe tentava suprir sua ausência em minha vida social dentro casa, na medida do possível . Sempre me ajudou a fazer minhas tarefas de casa, ouviu meus dramas, consolou minhas lágrimas, festejou minhas alegrias. Passavamos as tardes assistindo filmes, comendo pipoca. Ela me apresentou a literatura e nossos debates sobre as tramas que líamos eram extensos. Minha mãe me mostrou as boas músicas, tentou me ensinar a dançar, mas eu não levava jeito para isso. No fim, dentro da minha ausência de amigos, minha mãe era minha melhor amiga e eu era o melhor amigo dela. Isso me deixava profundamente orgulhoso. A maior partes dos colegas de sala tinham relações tumultuadas com seus pais, pontuadas entre crises de rebeldia e discussões fúteis. Nós não. Nós sempre estávamos bem um com um outro.

E no fim, em meio a tudo isso eu cresci. Amparado por tudo de bom que minha mãe havia me ensinado, em sempre amar as pessoas e tentar ao máximo perdoar aqueles que me ofendiam e, acima de tudo, compreender que cada ser humano tem sua dor para carregar e sua maneira de lidar com o mundo. Eu não sabia qual era a dor dela, mas sabia que ela havia escolhido se isolar do mundo para lidar com ela e isso bastava para que eu fizesse o meu melhor em torna-la feliz.

Quando finalmente cheguei ao ultimo ano da escola, minha mãe começou a se tornar uma mulher deprimida. Eu vi ela definhar dia após dia. Perguntava a ela o que sentia, o que estava acontecendo, se ela estava doente, mas ela apenas chacoalhava a cabeça e dizia que não era nada.

Ouvia choros fraquinhos cada vez mais frequentes vindos do quarto dela, principalmente ao anoitecer. Ia nas pontas dos pés até o quarto ver se descobria algo, mas ela logo notava eu me aproximando e fingia estar lendo algo ou fazendo qualquer outra coisa.

Quando meu ultimo dia de aula finalmente chegou, ela, pela primeira vez em todos aqueles anos, não levantou da cama pela manhã. Disse-me que estava indisposta, provavelmente uma gripe, e que ficaria deitada para se recuperar melhor. Pensei em faltar para cuidar dela, mas ela me repreendeu duramente dizendo que não havia motivos para eu faltar e que ela ficaria muito bem. Apesar dos meus protestos, fui a escola mesmo assim.

Os professores perguntaram a mim se eu iria na formatura da minha turma. Eu agradeci a preocupação e disse que infelizmente minha mãe estava com uma gripe forte e não poderia ir. Era obvio que minha mãe não iria nem que estivesse bem e eu também não tinha nenhuma ligação com as pessoas que estudavam comigo que justificasse minha ida. Era óbvio também que os professores sabiam que eu estava arranjando uma desculpa esfarrapada. Mas eu menti e eles fingiram que acreditaram. Me desejaram tudo de bom na vida e me aconselharam de forma sutil a chamar um médico para minha mãe. Eu agradeci, saí e fui embora sem olhar para trás.

Quando cheguei em casa, chamei por ela, mas não obtive resposta. A principio pensei que não tivesse ouvido e chamei novamente. Nenhuma resposta. Era a primeira vez em todos esses anos que isso acontecia. Não era normal. Meu coração disparou. Corri ao quarto dela para ver se estava tudo bem, se estava apenas dormindo. Mas ela não estava lá. Nem no banheiro, nem na cozinha, nem na varanda. Pela primeira vez em 18 anos minha mãe não estava em casa e eu não sabia o que fazer. Fui até o meu quarto e sentei-me na cama tentando imaginar o que eu deveria fazer. Não havia ninguém para pedir ajuda, para pedir informações. Pensei que talvez devesse ir aos hospitais. As vezes ela havia passado tão mal que precisou ser internada, mas isso não fazia nenhum sentido porque ela odiava médicos. Eu estava completamente perdido. Como se lida quando alguém que praticamente nunca saía de casa sumia?

Estava me levantando para sair de casa em busca dela quando algo me chamou atenção. Havia uma página de jornal em cima da minha escrivaninha. Achei estranho porque nós não assinávamos jornais. Peguei-o aflito, pensando que ela havia rascunhado um bilhete em algum canto ali, mas não havia nada além de uma noticia:

“ HOMEM MATA ESPOSA A GOLPES DE FACÃO E DEPOIS SE SUICIDA. FILHO DO CASAL ESTÁ DESAPARECIDO”.

“ A noite desta quarta feira foi marcada por sangue e mistério na Rua dos Alámos no bairro Cascalhos. Vizinhos acionaram a polícia após ouvirem gritos de socorro vindos do número 1040, além do barulho de objetos sendo quebrados.

Ao chegar ao local, a policia precisou arrombar a porta da sala que dava acesso à casa, pois a mesma se encontrava trancada e ninguém apareceu para abri-la. Ao adentrarem na casa, depararam com o cadáver de Ana Maria Farias de Souza, 30 anos, com diversos golpes de facão pelo corpo dentro do quarto do filho do casal. A poucos metros dali, Rubens de Souza, 33 anos, encontrava-se morto também com os pulsos cortados. A príncipio estava evidente o que havia ocorrido naquele local: um assassinato seguido de suicídio.

Porém, o filho o casal, Pedro Farias de Souza de apenas um ano está desaparecido. A perícia não conseguiu achar provas de uma terceira pessoa na cena do crime, que pudesse ter pego o filho do casal e fugido.

A investigação segue tentando desvendar o mistério que permeia um crime tão bárbaro.”

O jornal era de 16 de março de 1995.

Quando terminei de ler, a tinta do jornal manchava minha minhas mãos que estavam frias e tremulas.

Aquele era meu nome. Meu bairro. Minha rua. Minha casa. Aquele era o nome da minha mãe. Aquela era minha história.

Foi então que eu entendi algo muito mais simples a cerca de todos aqueles meus anos de vida. Minha mãe nunca foi uma mãe ausente como sempre, amargamente, considerei. Pelo contrário: minha mãe era tão presente em minha vida que assim o fez até mesmo após sua morte. Ela negou o paraíso afim de cuidar de mim.

Minha cabeça zumbia. Sei que parece um pensamento muito ilógico, mas naquele momento, naquela hora, pareceu tão natural, tão simples, tão óbvio. Provavelmente foi ela que sussurrou em meu ouvido.

Com os olhos marejados olhei ao meu redor. A casa na qual havia vivido todos aqueles anos não passava agora de ruínas e um monte de entulho empoeirado.

Minha mãe havia finalmente partido.