Pesquisadora dos Arcanos
PESQUISADORA DOS ARCANOS
Miguel Carqueija
Naquela manhã de outono, às vezes quente onde o sol batia, às vezes fria quando o vento soprava, um carrinho preto estacionou diante da pequena escadaria de pedra da velha Biblioteca Municipal, em Pedra Torta. Dele saiu uma garota magra, ruiva, alta, vestida á maneira habitual das pessoas jovens, com a elegante calça jean e uma blusa de meia manga. Uma garota que pareceria comum, igual a tantas outras, se vista a alguma distância, ou mesmo de perto, enquanto não se atentasse ais seus olhos. Dois grandes olhos escuros que observavam, cortantes, o mundo à sua volta. Algo existia, na expressão fisionômica daquela moça, que desafiava a Psicologia; se alguém se pusesse a analisá-la detidamente ver-se-ia diante do imponderável e do inexprimível. Nada tinham de comuns ou banais os pensamentos que originavam aquele olhar.
A Pesquisadora dos Arcanos estava em Pedra Torta.
.............................................................
Valquíria subiu os velhos degraus de pedra, empurrou a porta de vidro e viu-se diante do chão de longas ripas desgastadas, do teto de lampião modelo século XIX, das paredes encardidas e do vago cheiro de mofo, tudo dando ao ambiente local um ar de abandono, de desmazelo, de decadência.
Poucas pessoas estavam no local. Valquíria procurou a mesa de registro. Encontrou uma mulher velha, de óculos e aspecto tranquilo e conformado.
— Por favor — disse ela — onde posso encontrar o Necronomicon?
Os olhos da bibliotecária se arregalaram.
— Logo esse livro que você quer?
— E por que não?
— Por nada... é que ele é tão esquisito...
— Que ótimo. Eu gosto muito de livros esquisitos.
A velha foi pessoalmente mostrar a Valquíria a empoeirada estante onde podia ser encontrado o “Necronomicon”. Valquíria agradeceu e pegou o livro.
— Vai emprestá-lo?
— Não, eu o lerei aqui mesmo.
A Pesquisadora dos Arcanos não tinha onde pernoitar e pretendia retornar para o Rio de Janeiro. Talvez em outra ocasião pedisse emprestado aquele trabalho. Que era, por sinal, o volume II do misterioso Necronomicon.
Estranhava, porém, a atitude da bibliotecária. Esta, em sua face de pergaminho, parecia expressar uma reprovação intensa pelo mau gosto da leitora. Valquíria sabia que aquele livro era raríssimo e devia ter poucos leitores. O que não justificava aquelas reservas.
A sala de leitura, apesar do aspecto de decadência do prédio, era relativamente espaçosa, com diversas mesas. Ao procurar um local para sentar Valquíria reparou vagamente nas pessoas que ali se encontravam e percebeu, com desagrado, que as mesas junto às paredes já se encontravam ocupadas, inclusive por recém-chegados, como um rapaz de porte atlético que agora se posicionava junto á janela, um tanto apressadamente, após um olhar mal disfarçado para a garota. Normal, é claro. Valquíria sempre atraia os olhares masculinos.
Sem outra opção, sentou-se na mesa de canjarana do meio, manuseando com cuidado o já danificado exemplar do “Necronomicon II”.
A Pesquisadora dos Arcanos era paciente. Não sabia até que ponto aquele apócrifo poderia lhe interessar, por isso numa primeira instância preferia olha-lo “in loco”. Depois talvez até o xerocasse.
Começou então uma leitura dinâmica e foi tomando conhecimento de coisas terríveis. Mas o seu espírito altamente esclarecido recusava amedrontar-se com aquelas coisas ou sequer emprestar-lhes crédito imediato. Valquíria sabia que os Grandes Antigos de fato existiam; mas não via razão para acreditar em tudo o que os seus porta-vozes afirmavam. Poderiam mentir ou enganar-se.
“Dois universos paralelos ocupam, ao mesmo tempo, o mesmo espaço aparente. Por isso, a porta que permitirá a penetração de um para o outro poderá ser aberta em qualquer lugar. Yog-Sothot! Esta palavra, repetida com a entonação certa e por pessoas devidamente treinadas, tendo aberto o primeiro “Necronomicon”, ou mesmo este, e dentro de certo ritual secreto, poderá abrir as portas do Mundo Oculto. A Terra, então, voltará a pertencer a seus antigos donos, que retomarão o Poder ancestral. Por razões que poucas pessoas podem compreender, a Terra representa um nó no universo; daí a importância cósmica de possuí-la.”
Como que uma vibração no cérebro pôs Valquíria em alerta.
Há quarenta minutos que ela se dedicava àquela tenebrosa leitura. Agora, voltando à realidade local, ela pôs-se a reparar nas pessoas à sua volta, naquela sala meio soturna.
Reparou nas quatro pessoas que ocupavam mesas próximas.
Uma delas poderia ser uma típica diretora de escola, algo gorda, com o costume quadriculado, óculos antiquados, a pesquisar uma velha coleção de jornais. Em outra mesa, um velho magro e mal vestido, tipo do funcionário público aposentado ou em vias de se aposentar, tresandando a amargura e à bitola de toda uma vida insípida e mal aproveitada, como um Gonzaga de Sá redivivo. No ângulo oposto uma jovem de mangas compridas, aparentando sensibilidade demasiada ao frio, poderia ser uma estagiária sem muitos horizontes na vida; finalmente, o esportista antes percebido, poderia ser um atleta de clube ou um “playboy” filho de papai. Claro, essas ilações divertiam Valquíria mas ela não as levava a sério. As pessoas não são o que parecem.
Mas a vibração — como um espasmo nervoso interno — continuava. Algo dizia a Valquíria que alguma coisa ali estava tremendamente errada. De repente, era como se um caleidoscópio estivesse em movimento dentro de sua caixa craniana. Ela já havia sido atacada antes, quando em contato com o Necronomicon, mas não daquela forma.
De repente compreendeu. Yog-Sothot! Estava cercada pelo círculo quadrado — um terrível poder que o monstro do passado podia canalizar sobre o nosso universo, através de agentes humanos — as tais “brechas abertas” referidas pelo livro maldito em seu primeiro volume.
A Pesquisadora dos Arcanos fôra localizada pelos seus inimigos.
Era pouco provável que aqueles traidores da raça humana soubessem sequer, ao certo, quem ela era. Mas Valquíria era uma pedra no sapato dos Grandes Antigos e sabia disso. Ela, que fôra convocada a servi-los e se recusara. E agora estava ali, na biblioteca de Pedra Torta, encurralada por um ataque psíquico de grandes proporções: o Círculo Quadrado, um ritual reservado aos seguidores de Yog-Sothot.
Basicamente o círculo quadrado funcionava envolvendo a pessoa cuja mente se procurava destruir ou desnortear. Essa pessoa teria que ficar no centro, entre quatro agressores — cujos ângulos configurariam um quadrado. O poder demoníaco de Yog-Sothot, porém, faria um círculo de energia negativa. É o que ocorria, ou parecia ocorrer, naquele momento, se Valquíria houvesse acertado com a verdade.
O objetivo daquele ataque parecia bem claro: destruir a mente da jovem ou eventualmente subjuga-la, o que poderia levar à abertura de uma passagem eficiente para as forças que se emboscavam na outra dimensão.
A Pesquisadora dos Arcanos compreendeu que teria de lutar pela própria sobrevivência — e, ainda, defender a raça humana.
Agindo rapidamente, já começando a sentir fortes dores de cabeça, Valquíria concentrou-se diante do livro aberto, encostando os cotovelos na borda da mesa e deixando o olhar alongar-se um pouco, disfarçadamente, sobre o volume; assim compenetrada, ela deu um comando mental, conjugado com uma inspiração profunda, de maneira a acelerar o metabolismo e o batimento cardíaco. Aprendera há tempos esse truque baseado na Relatividade. Logo, o seu tempo pessoal estava acelerado em relação ao tempo normal das outras pessoas; porém só por um minuto aquele fenômeno poderia ser mantido sem dano para a sua saúde.
Valquíria agora podia levantar-se sem que ninguém percebesse, pois todos em volta estavam como que letárgicos ou paralisados. Para ela, é claro.
A jovem moveu-se em direção á primeira da corrente. A “diretora da escola”, agora transformada em estátua de carne. Antes da modificação do seu tempo metabólico-psicólogico Valquíria possivelmente não teria conseguido se levantar, por se achar capturada no círculo-quadrado. Mas agora o ataque mental, embora não houvesse cessado, tornara-se infinitesimalmente lerdo e o alívio era evidente. Como se agora pertencesse a um universo de escala inferior, onde tudo se move mais depressa, Valquíria pusera-se fora do alcance de seus inimigos; por outro lado, podia facilmente alcança-los.
Para ela, a magia era coisa inacessível. A Pesquisadora dos Arcanos não se considerava mágica e tinha as suas habilidades na conta de coisas do plano natural. Preferia combater a magia, o diabolismo dos Grandes Antigos, com a Ciência.
Chegou-se à diretora — que se achava flagrada com uma caneta na mão direita, no meio de uma ação de rabiscamento, aparentemente sem sentido, numa folha de rascunho — e falou:
— Pense e responda. Tudo que eu falo é mentira. Nesta frase, eu falei a verdade? Ou eu menti? Esclareça esse paradoxo.
Não houve resposta, evidentemente, e a mulher continuou imóvel, aparentemente paralisada; seria preciso observa-la um pouco para perceber os movimentos lentíssimos, inclusive de respiração, mas Valquíria não podia aguardar. Fizera o seu serviço. O paradoxo, penetrando na mente daquela mulher, em velocidade acelerada para a sua própria escala temporal, causaria grande impacto nos neurônios. Aquele cérebro estava sem defesa.
A Pesquisadora dos Arcanos passou então para Gonzaga de Sá, e assim se dirigiu ao personagem de Lima Barreto:
— Pense e procure responder: quantos milímetros cúbicos possui o universo? Considere a parte conhecida. A luz percorre 299.774 quilômetros por segundo, o minuto tem sessenta segundos, a hora tem sessenta minutos, o dia tem 24 horas, o ano tem 365 dias, imagine um diâmetro de 28 bilhões de anos-luz e calcule a resposta em um minuto, sem uma caneta ou calculadora.
Coitado, pensou Valquíria, dirigindo-se agora para a terceira vítima, a estagiária friorenta:
— Pense e esclareça: se o infinito é uma quantidade que não tem fim, pode o infinito ser dividido ao meio? Um número fracionário pode ser infinito? Se não pode, como você explica a existência do tempo presente, que divide um tempo infinito na direção do passado de um tempo infinito na direção do futuro?
Finalmente Valquíria dirigiu-se ao último agente de Yog-Sothot: o atleta, com pinta de lutador de karatê — o que provavelmente ele era. Por seu aspecto, seria um adversário terrível numa luta física; só que aquele confronto era metafísico.
— Vou lhe fazer uma pergunta, você pensa depressa e responde — disse a garota. — Lembra-se de quantas vezes você assoou o nariz na sua vida? O ato de assoar o nariz é muito importante: limpa o organismo de toxinas, livra-o de bactérias perigosas, é um exercício respiratório. Se você ainda está vivo, agradeça ao saudável hábito de assoar o nariz. Todas as ocasiões em que você fez isso estão registradas em suas pequenas células cinzentas. Portanto, puxe pela memória e me diga quantas vezes e em que dia, mês e ano de cada vez você assoou o nariz!
Valquíria regressou á sua mesa, “materializando-se” na posição em que estivera antes e na qual ainda deveria estar quando o seu metabolismo voltasse ao normal. Ninguém deveria perceber algo estranho. A pressão sobre sua mente desaparecera. Se tudo corresse como ela esperava, aqueles quatro sairiam de lá em estado de grande confusão mental e não se lembrariam mais da pesquisadora. O ataque de Valquíria fôra dirigido ao inconsciente; em circunstâncias normais aquelas pessoas rir-se-iam das questões apresentadas, ainda que não lhes pudessem dar solução. Com o consciente, porém, incapaz de acompanhar o ritmo das questões, estas haviam sido lançadas sobre o nebuloso inconsciente, que agora se debatia e aflorava á superfície, trazendo o caos.
Valquíria retornou ao normal, e percebeu como a fivela de seu cinto estava quente. Uma razão a mais para que aquele estado especial devesse durar pouco: faltava um meio eficaz para incluir a roupa no sistema relativista em que o corpo penetrava.
Observando discretamente seus quatro adversários, percebeu claramente as mímicas da confusão mental, da perplexidade. Eles já não sabiam o que estavam fazendo ali.
Valquíria era prudente por natureza. Desistindo, naquela ocasião, de estudar o Necronomicon, fechou-o e devolveu-o à bibliotecária. Depois retirou-se, notando que cada um dos quatro parecia prestes a fazer o mesmo.
A Pesquisadora dos Arcanos estava marcada pelos Grandes Antigos, aquelas primitivas e imensas massas amorfas que, exiladas, desejavam reconquistar o mundo. Mas a jovem cientista, sem nem saber porque, não os temia. Parecia-lhe que o medo, o terror, tornavam as pessoas indefesas diante do mal em estado puro.
Refletiu também sobre o poder cientifico que acabara de utilizar. Einstein alguma vez teria imaginado uma tal aplicação das suas teorias? Quantos crimes, aliás, poderiam ser praticados, se a pessoa errada desenvolvesse tal aptidão!
Saindo à rua, a jovem observou o passarinho voando e apressou-se em retornar ao carro.
Em meio ao vento que começava a formar estranhos redemoinhos, Valquíria, a Pesquisadora dos Arcanos, retirou-se da cidade de Pedra Torta.
(Rio de Janeiro, 4 a 15 de junho de 1995)
NOTA: este conto faz parte do ciclo de Pedra Torta e também da personagem Valquíria Cruz, uma paranormal que combate as forças do mal. O "Necronomicon" e os chamados "Mitos de Cthulhu" foram criados pelo autor norte-americano H.P. Lovecraft (1890-1937).
imagem da internet
PESQUISADORA DOS ARCANOS
Miguel Carqueija
Naquela manhã de outono, às vezes quente onde o sol batia, às vezes fria quando o vento soprava, um carrinho preto estacionou diante da pequena escadaria de pedra da velha Biblioteca Municipal, em Pedra Torta. Dele saiu uma garota magra, ruiva, alta, vestida á maneira habitual das pessoas jovens, com a elegante calça jean e uma blusa de meia manga. Uma garota que pareceria comum, igual a tantas outras, se vista a alguma distância, ou mesmo de perto, enquanto não se atentasse ais seus olhos. Dois grandes olhos escuros que observavam, cortantes, o mundo à sua volta. Algo existia, na expressão fisionômica daquela moça, que desafiava a Psicologia; se alguém se pusesse a analisá-la detidamente ver-se-ia diante do imponderável e do inexprimível. Nada tinham de comuns ou banais os pensamentos que originavam aquele olhar.
A Pesquisadora dos Arcanos estava em Pedra Torta.
.............................................................
Valquíria subiu os velhos degraus de pedra, empurrou a porta de vidro e viu-se diante do chão de longas ripas desgastadas, do teto de lampião modelo século XIX, das paredes encardidas e do vago cheiro de mofo, tudo dando ao ambiente local um ar de abandono, de desmazelo, de decadência.
Poucas pessoas estavam no local. Valquíria procurou a mesa de registro. Encontrou uma mulher velha, de óculos e aspecto tranquilo e conformado.
— Por favor — disse ela — onde posso encontrar o Necronomicon?
Os olhos da bibliotecária se arregalaram.
— Logo esse livro que você quer?
— E por que não?
— Por nada... é que ele é tão esquisito...
— Que ótimo. Eu gosto muito de livros esquisitos.
A velha foi pessoalmente mostrar a Valquíria a empoeirada estante onde podia ser encontrado o “Necronomicon”. Valquíria agradeceu e pegou o livro.
— Vai emprestá-lo?
— Não, eu o lerei aqui mesmo.
A Pesquisadora dos Arcanos não tinha onde pernoitar e pretendia retornar para o Rio de Janeiro. Talvez em outra ocasião pedisse emprestado aquele trabalho. Que era, por sinal, o volume II do misterioso Necronomicon.
Estranhava, porém, a atitude da bibliotecária. Esta, em sua face de pergaminho, parecia expressar uma reprovação intensa pelo mau gosto da leitora. Valquíria sabia que aquele livro era raríssimo e devia ter poucos leitores. O que não justificava aquelas reservas.
A sala de leitura, apesar do aspecto de decadência do prédio, era relativamente espaçosa, com diversas mesas. Ao procurar um local para sentar Valquíria reparou vagamente nas pessoas que ali se encontravam e percebeu, com desagrado, que as mesas junto às paredes já se encontravam ocupadas, inclusive por recém-chegados, como um rapaz de porte atlético que agora se posicionava junto á janela, um tanto apressadamente, após um olhar mal disfarçado para a garota. Normal, é claro. Valquíria sempre atraia os olhares masculinos.
Sem outra opção, sentou-se na mesa de canjarana do meio, manuseando com cuidado o já danificado exemplar do “Necronomicon II”.
A Pesquisadora dos Arcanos era paciente. Não sabia até que ponto aquele apócrifo poderia lhe interessar, por isso numa primeira instância preferia olha-lo “in loco”. Depois talvez até o xerocasse.
Começou então uma leitura dinâmica e foi tomando conhecimento de coisas terríveis. Mas o seu espírito altamente esclarecido recusava amedrontar-se com aquelas coisas ou sequer emprestar-lhes crédito imediato. Valquíria sabia que os Grandes Antigos de fato existiam; mas não via razão para acreditar em tudo o que os seus porta-vozes afirmavam. Poderiam mentir ou enganar-se.
“Dois universos paralelos ocupam, ao mesmo tempo, o mesmo espaço aparente. Por isso, a porta que permitirá a penetração de um para o outro poderá ser aberta em qualquer lugar. Yog-Sothot! Esta palavra, repetida com a entonação certa e por pessoas devidamente treinadas, tendo aberto o primeiro “Necronomicon”, ou mesmo este, e dentro de certo ritual secreto, poderá abrir as portas do Mundo Oculto. A Terra, então, voltará a pertencer a seus antigos donos, que retomarão o Poder ancestral. Por razões que poucas pessoas podem compreender, a Terra representa um nó no universo; daí a importância cósmica de possuí-la.”
Como que uma vibração no cérebro pôs Valquíria em alerta.
Há quarenta minutos que ela se dedicava àquela tenebrosa leitura. Agora, voltando à realidade local, ela pôs-se a reparar nas pessoas à sua volta, naquela sala meio soturna.
Reparou nas quatro pessoas que ocupavam mesas próximas.
Uma delas poderia ser uma típica diretora de escola, algo gorda, com o costume quadriculado, óculos antiquados, a pesquisar uma velha coleção de jornais. Em outra mesa, um velho magro e mal vestido, tipo do funcionário público aposentado ou em vias de se aposentar, tresandando a amargura e à bitola de toda uma vida insípida e mal aproveitada, como um Gonzaga de Sá redivivo. No ângulo oposto uma jovem de mangas compridas, aparentando sensibilidade demasiada ao frio, poderia ser uma estagiária sem muitos horizontes na vida; finalmente, o esportista antes percebido, poderia ser um atleta de clube ou um “playboy” filho de papai. Claro, essas ilações divertiam Valquíria mas ela não as levava a sério. As pessoas não são o que parecem.
Mas a vibração — como um espasmo nervoso interno — continuava. Algo dizia a Valquíria que alguma coisa ali estava tremendamente errada. De repente, era como se um caleidoscópio estivesse em movimento dentro de sua caixa craniana. Ela já havia sido atacada antes, quando em contato com o Necronomicon, mas não daquela forma.
De repente compreendeu. Yog-Sothot! Estava cercada pelo círculo quadrado — um terrível poder que o monstro do passado podia canalizar sobre o nosso universo, através de agentes humanos — as tais “brechas abertas” referidas pelo livro maldito em seu primeiro volume.
A Pesquisadora dos Arcanos fôra localizada pelos seus inimigos.
Era pouco provável que aqueles traidores da raça humana soubessem sequer, ao certo, quem ela era. Mas Valquíria era uma pedra no sapato dos Grandes Antigos e sabia disso. Ela, que fôra convocada a servi-los e se recusara. E agora estava ali, na biblioteca de Pedra Torta, encurralada por um ataque psíquico de grandes proporções: o Círculo Quadrado, um ritual reservado aos seguidores de Yog-Sothot.
Basicamente o círculo quadrado funcionava envolvendo a pessoa cuja mente se procurava destruir ou desnortear. Essa pessoa teria que ficar no centro, entre quatro agressores — cujos ângulos configurariam um quadrado. O poder demoníaco de Yog-Sothot, porém, faria um círculo de energia negativa. É o que ocorria, ou parecia ocorrer, naquele momento, se Valquíria houvesse acertado com a verdade.
O objetivo daquele ataque parecia bem claro: destruir a mente da jovem ou eventualmente subjuga-la, o que poderia levar à abertura de uma passagem eficiente para as forças que se emboscavam na outra dimensão.
A Pesquisadora dos Arcanos compreendeu que teria de lutar pela própria sobrevivência — e, ainda, defender a raça humana.
Agindo rapidamente, já começando a sentir fortes dores de cabeça, Valquíria concentrou-se diante do livro aberto, encostando os cotovelos na borda da mesa e deixando o olhar alongar-se um pouco, disfarçadamente, sobre o volume; assim compenetrada, ela deu um comando mental, conjugado com uma inspiração profunda, de maneira a acelerar o metabolismo e o batimento cardíaco. Aprendera há tempos esse truque baseado na Relatividade. Logo, o seu tempo pessoal estava acelerado em relação ao tempo normal das outras pessoas; porém só por um minuto aquele fenômeno poderia ser mantido sem dano para a sua saúde.
Valquíria agora podia levantar-se sem que ninguém percebesse, pois todos em volta estavam como que letárgicos ou paralisados. Para ela, é claro.
A jovem moveu-se em direção á primeira da corrente. A “diretora da escola”, agora transformada em estátua de carne. Antes da modificação do seu tempo metabólico-psicólogico Valquíria possivelmente não teria conseguido se levantar, por se achar capturada no círculo-quadrado. Mas agora o ataque mental, embora não houvesse cessado, tornara-se infinitesimalmente lerdo e o alívio era evidente. Como se agora pertencesse a um universo de escala inferior, onde tudo se move mais depressa, Valquíria pusera-se fora do alcance de seus inimigos; por outro lado, podia facilmente alcança-los.
Para ela, a magia era coisa inacessível. A Pesquisadora dos Arcanos não se considerava mágica e tinha as suas habilidades na conta de coisas do plano natural. Preferia combater a magia, o diabolismo dos Grandes Antigos, com a Ciência.
Chegou-se à diretora — que se achava flagrada com uma caneta na mão direita, no meio de uma ação de rabiscamento, aparentemente sem sentido, numa folha de rascunho — e falou:
— Pense e responda. Tudo que eu falo é mentira. Nesta frase, eu falei a verdade? Ou eu menti? Esclareça esse paradoxo.
Não houve resposta, evidentemente, e a mulher continuou imóvel, aparentemente paralisada; seria preciso observa-la um pouco para perceber os movimentos lentíssimos, inclusive de respiração, mas Valquíria não podia aguardar. Fizera o seu serviço. O paradoxo, penetrando na mente daquela mulher, em velocidade acelerada para a sua própria escala temporal, causaria grande impacto nos neurônios. Aquele cérebro estava sem defesa.
A Pesquisadora dos Arcanos passou então para Gonzaga de Sá, e assim se dirigiu ao personagem de Lima Barreto:
— Pense e procure responder: quantos milímetros cúbicos possui o universo? Considere a parte conhecida. A luz percorre 299.774 quilômetros por segundo, o minuto tem sessenta segundos, a hora tem sessenta minutos, o dia tem 24 horas, o ano tem 365 dias, imagine um diâmetro de 28 bilhões de anos-luz e calcule a resposta em um minuto, sem uma caneta ou calculadora.
Coitado, pensou Valquíria, dirigindo-se agora para a terceira vítima, a estagiária friorenta:
— Pense e esclareça: se o infinito é uma quantidade que não tem fim, pode o infinito ser dividido ao meio? Um número fracionário pode ser infinito? Se não pode, como você explica a existência do tempo presente, que divide um tempo infinito na direção do passado de um tempo infinito na direção do futuro?
Finalmente Valquíria dirigiu-se ao último agente de Yog-Sothot: o atleta, com pinta de lutador de karatê — o que provavelmente ele era. Por seu aspecto, seria um adversário terrível numa luta física; só que aquele confronto era metafísico.
— Vou lhe fazer uma pergunta, você pensa depressa e responde — disse a garota. — Lembra-se de quantas vezes você assoou o nariz na sua vida? O ato de assoar o nariz é muito importante: limpa o organismo de toxinas, livra-o de bactérias perigosas, é um exercício respiratório. Se você ainda está vivo, agradeça ao saudável hábito de assoar o nariz. Todas as ocasiões em que você fez isso estão registradas em suas pequenas células cinzentas. Portanto, puxe pela memória e me diga quantas vezes e em que dia, mês e ano de cada vez você assoou o nariz!
Valquíria regressou á sua mesa, “materializando-se” na posição em que estivera antes e na qual ainda deveria estar quando o seu metabolismo voltasse ao normal. Ninguém deveria perceber algo estranho. A pressão sobre sua mente desaparecera. Se tudo corresse como ela esperava, aqueles quatro sairiam de lá em estado de grande confusão mental e não se lembrariam mais da pesquisadora. O ataque de Valquíria fôra dirigido ao inconsciente; em circunstâncias normais aquelas pessoas rir-se-iam das questões apresentadas, ainda que não lhes pudessem dar solução. Com o consciente, porém, incapaz de acompanhar o ritmo das questões, estas haviam sido lançadas sobre o nebuloso inconsciente, que agora se debatia e aflorava á superfície, trazendo o caos.
Valquíria retornou ao normal, e percebeu como a fivela de seu cinto estava quente. Uma razão a mais para que aquele estado especial devesse durar pouco: faltava um meio eficaz para incluir a roupa no sistema relativista em que o corpo penetrava.
Observando discretamente seus quatro adversários, percebeu claramente as mímicas da confusão mental, da perplexidade. Eles já não sabiam o que estavam fazendo ali.
Valquíria era prudente por natureza. Desistindo, naquela ocasião, de estudar o Necronomicon, fechou-o e devolveu-o à bibliotecária. Depois retirou-se, notando que cada um dos quatro parecia prestes a fazer o mesmo.
A Pesquisadora dos Arcanos estava marcada pelos Grandes Antigos, aquelas primitivas e imensas massas amorfas que, exiladas, desejavam reconquistar o mundo. Mas a jovem cientista, sem nem saber porque, não os temia. Parecia-lhe que o medo, o terror, tornavam as pessoas indefesas diante do mal em estado puro.
Refletiu também sobre o poder cientifico que acabara de utilizar. Einstein alguma vez teria imaginado uma tal aplicação das suas teorias? Quantos crimes, aliás, poderiam ser praticados, se a pessoa errada desenvolvesse tal aptidão!
Saindo à rua, a jovem observou o passarinho voando e apressou-se em retornar ao carro.
Em meio ao vento que começava a formar estranhos redemoinhos, Valquíria, a Pesquisadora dos Arcanos, retirou-se da cidade de Pedra Torta.
(Rio de Janeiro, 4 a 15 de junho de 1995)
NOTA: este conto faz parte do ciclo de Pedra Torta e também da personagem Valquíria Cruz, uma paranormal que combate as forças do mal. O "Necronomicon" e os chamados "Mitos de Cthulhu" foram criados pelo autor norte-americano H.P. Lovecraft (1890-1937).
imagem da internet