O Menino do Olho de Vidro
Eu era um jovem médico e fui designado a trabalhar em uma grande cidade. Na época não podia imaginar que hoje seria esse renomado infectologista aclamado no mundo inteiro. Entretanto, não vou falar sobre a minha gloriosa carreira. Quero contar que um dia vi a morte refletida em um olho de vidro; não ouvi a sua voz, mas tenho certeza, ela estava cantando.
Era noite quando cheguei e pouco depois de descer do ônibus fui roubado. Os três marginais me espancaram e levaram quase todos os meus pertences. Fiquei com raiva, havia viajado mais de nove horas e durante todo esse tempo passei um mal danado. Falei com um guarda e, enquanto ele ria, disse que foi bom para eu ficar esperto e sumir da área.
Machucado e gaguejando, comecei a abordar as pessoas na rodoviária. Parecia mais um drogado pedindo esmolas e, consequentemente, ninguém se prontificou a me ajudar.
Desalentado resolvi esperar o raiar do dia para procurar a delegacia. Precisava pelo menos me identificar. Naquele tempo não tínhamos a tecnologia de hoje, o que tornava tudo mais difícil.
Já por volta da meia noite, poucas pessoas circulavam pelo terminal e um frio ártico apoderou-se de mim. Sentei-me em um banco congelado, e encolhido comecei a bater queixo. De repente senti uma pancada na cabeça e tudo começou a rodar. Desmaiei...
Abri os olhos com aquela sensação de não saber onde estava e só voltei à realidade quando ouvi a voz estridente de um menino:
_Deixem o moço em paz. Vocês já pegaram tudo.
Eu estava caído no chão, e só faltava ficar sem a cueca. Os chutes que me eram desferidos doíam tanto que achei que ia morrer.
O garoto começou a gritar: "polícia, polícia!"
Curiosos se aproximaram e os marginais correram.
O menino era feio, maltrapilho, com cabelos vermelhos. Tinha um olho de vidro preto, projetado na cavidade do rosto sardento; o de verdade era azul.
_Moço, disse ele, é perigoso fica aqui sozinho. Vamos lá pra casa, de manhãzinha você vai embora.
Não havia outra coisa a fazer. Muito abalado e com filetes de sangue escorrendo pelo corpo, sai acompanhando o garoto que carregava uma tosca caixa de engraxate.
A aglomeração de barracos era próxima a rodovia. As valas negras e escorregadias transbordavam roedores e anfíbios barulhentos. Baratas e besouros gigantes decolavam da vegetação rasteira e aterrissavam nas minhas costas. Jamais imaginei que os bichos gostassem tanto de sangue.
O choro das crianças e a gritaria que dava voz aos casebres, misturavam-se ao latido dos cães aumentando à medida que íamos passando pelos becos tomados pelo lixo.
O menino saudou alguns vagabundos que passavam de mão em mão um cigarro de maconha. Estavam agachados ao redor de uma fogueirinha e quando me viram, entanguido de frio, ficaram logo de pé. Um deles aspirando a marola disse:
_Aí Heitor, joga esse branquelo pelado, pra gente esquenta o frio.
Achei que os caras iam fazer uma desgraceira comigo e me matarem. Mas o menino gritou:
_É tio! Veio vê minha mãe. Tomaram as coisas dele na rodô. Fui busca ele lá.
_Vai na paz, Heitor. Se é teu parente, tá limpo. Melhora pra tua mãe.
Quando entrei no pequeno cômodo, fui atacado por umas nuvem de pernilongos que zuniam nos meus ouvidos. Acho que contavam que queriam devorar-me vivo.
A pobreza era construída com tabuinhas de caixotes, zinco e papelão. A luz enfraquecida de um toco de vela flutuava inerte na escuridão. Heitor, virou-se para um canto e colocou o dedo a frente dos lábios para que eu fizesse silêncio e disse baixinho:
_Melho minha mãe não acorda. Fica zangada...
Tive que forçar a visão para tentar enxergar algo encolhido sobre o que parecia ser um amontoado de pano velho.
Heitor pegou uma garrafinha de álcool dentro da caixa de engraxate e abasteceu o fogareiro e enquanto riscava um fósforo falou:
_Se não guarda mucado pra esquenta a comida, ela bebe tudo.
Alguns minutos depois dividiu comigo o conteúdo de uma panelinha amassada que havia colocado sobre a trempe.
_Pode bebe, moço. Ainda tá bom; saco vazio não para em pé.
A sopa depositada em um canecão estava salgada; acho que deu sim, para sentir gosto de macarrão e abóbora madura.
Depois de engolir a gororoba, Heitor mandou que eu deitasse no outro canto e pegando dois cobertores desgastados, disse para mim não se esquecer de cobrir a cabeça. Exausto, logo adormeci.
Acordei, e até deparar-me com a realidade, fiquei fascinado com o poder do sol que atravessou o zinco, as frestas e todos aqueles buraquinhos para criar um cenário tão bonito: Os raios cintilantes iluminaram a fuligem que flutuava e, como em um passe de mágica, a miséria desapareceu em meio a uma chuva de purpurina.
A mulher emergiu de um emaranhado de trapos coloridos. Era só um esqueleto revestido de pele. Os cabelos negros, com alguns fios prateados, caiam ralos até a cintura.
Ela ligou um rádio de pilhas, parcialmente quebrado, e estava tocando um sucesso da época: Don't let me down -The Hollies. Meu Deus, essa música tocou tanto na minha formatura que não sei como não furou o vinil.
Heitor havia saído, e fiquei com medo de sua reação quando percebesse a minha presença. Estava apavorado com a possibilidade dela começar a gritar. Os vizinhos poderiam vir em seu socorro e... Melhor nem pensar.
Uma irritação cutânea insuportável fez com que eu tremelicasse o braço. Ela puxou as cobertas e após passar os dedos entre as pernas disse exalando teor etílico:
_Ainda não fodeu? Problema seu, vou querer receber...
Levantei, e antes que pudesse falar, ela pegou um pano sujo e começou a passar em mim. O sangue coagulado havia transformado meu corpo em um pasto de formigas e pulgas.
Heitor chegou naquele momento. O sol retirou seus tentáculos de luz e entrou inteiro pela porta aberta e, sem fantasia, pude ver aquele cenário de horror.
Chorei, sempre fico sensível quando durmo mal, e vejam só, o menino me perguntou se era dor. Respondi que sim; que minha cabeça parecia que ia explodir. Mas era meu coração que estava dilacerado. Tão pobrezinho, trazia pão e um pouquinho de pó de café. Deu um sorrisinho sem graça e se desculpou por não ter remédio para a minha dor.
A mãe se chamava Cecília. Passei os olhos pelo corpo ressequido; estava nua e cheia de machucados purulentos. Talvez ainda não tivesse trinta anos, mas parecia uma bruxa de historinha de terror. Não precisava ser médico para saber que estava morrendo.
_Já entendi, disse ela, foi o Heitor que te trouxe. Já falei pra esse moleque que nessa vida não vale a pena ser bom. Até os bichos doentes que ele traz para dentro de casa, um dia desses, ainda vai enfiar os dentes nele.
_Mãe! Para de fala besteira e faz café pra nós, mas põe uma roupa, tá frio.
Do meio dos trapos, Heitor puxou uma blusa verde, que pelo visto, havia atravessado mil guerras e lhe enfiou pelo pescoço.
Cecília se agachou e com dedos trêmulos, demorou um pouco para conseguir riscar o fósforo e ascender o fogareiro.
A vontade de urinar deixou-me inquieto. Ela percebeu e falou com ar de riso:
_Tem uma lata, bem ali debaixo daquele caixote é só tirar a tampa. Depois meu filho joga fora.
Levantei o caixote e quando retirei a pequena tábua que tampava a lata mandei com pressão um jato de macarrão e abóbora lá pra dentro. Quase deu para completar vinte litros de excremento humano; mais um pingo aquilo ia derramar e transformar tudo em pântano. Perdi a vontade...
Enquanto a mãe, com bracinhos de louva-a-deus, colocava a água fervendo no coador, o filho abriu a janelinha; infelizmente, o aroma do café era fraco demais para empurrar para fora o fedor daquela mistura sinistra de fezes, urina, catarro e vômito.
Com a caneca fumegante, fui atraído por uma balbúrdia e cheguei a cara em uma greta. Dezenas de pessoas sob a cerração, xingavam palavrões e nomes ruins. Pelo que entendi disputavam a água que saia tímida por um caninho enfiado no barranco. Um daqueles miseráveis, com uma escova de dente vermelha no bolso, passou bem em frente ao barraco e usava a minha jaqueta.
Juro que ia sair atrás do ordinário, mas o garoto entrou na frente dizendo que era perigoso, pois se tratava do terrível Pedro Mata Sete. Claro que com aquela alcunha intimidaria qualquer um, ainda mais nas condições em que eu me encontrava. Impotente agachei no chão, levei as mãos frenéticas a cabeça e arranquei dois tufos de cabelos.
Heitor jogou um daqueles cobertores pulguentos sobre mim e disse:
_Fica calmo, moço. Vou ver se posso fazer alguma coisa.
Quando o menino saiu me dei conta do perigo que ele estava correndo. Joguei o cobertor para o alto e gritei:
_O cara vai machucar seu filho!
_Calma. Todo mundo gosta do Heitor. Vive ajudando os outros. Qual o seu nome?
_Giovane. Sou médico, fui roubado na rodoviária; vim para trabalhar no Hospital da Clínicas. Fica longe?
_Vai ter de pegar condução... Mas juro que pensei que você era um desses riquinhos viciados que fogem de casa. É mesmo Doutor?
_Pode acreditar que sim.
Cecília pôs se a chorar. A blusa esburacada trepidava feito bandeira em dia de vendaval. Os olhos também eram azuis feito o do filho, e as lágrimas o fizeram brilhar como estrelas. Tive vontade de perguntar sobre sua origem, mas, com certeza, era uma viciada que fugiu de casa. Limitei-me a falar sobre, Heitor.
_O que aconteceu com o olho do seu filho?
_Então, Doutor. Preciso da sua ajuda, e como vê, não posso pagar. Peço encarecidamente que ajude o Heitor a arrancar aquele olho do mal. Acredito em uma força superior, talvez o que está acontecendo com o Senhor seja o caminho que Deus encontrou para que possa nos ajudar.
Cecília contou uma longa história: Falou que foi escorraçada de casa pelo pai que tinha uma alta patente no Exército. Ficou grávida aos quinze anos. O jovem Soldado depois de confessar o "crime", disseram ter pisado acidentalmente em uma granada e explodiu.
Sem ter para onde ir, a jovem sofreu abusos e acabou se prostituindo.
Heitor nasceu em um cabaré de beira de estrada e com um ano e oito meses teve o olho vazado. Estava brincando quando caiu sobre um copo quebrado.
Para tentar salvar o filho, que quase perdeu a vida devido a uma severa infecção, foi procurar a família. O Coronel conservador havia dado um tiro no ouvido em plena Vila Militar. A mãe e o irmão cheios de ódio ordenou que ela com Heitor nos braços, desaparecesse para sempre.
O menino não morreu, mas gritava dia e noite com o olho latejante e cheirando mal. A cafetina Adelaide orientou a deixar dar bicheira. "Dava certo quando o pai dela capava os animais no sítio". As moscas depositaram seus ovos, mas as larvas não se contentaram apenas em comer o tecido morto, queriam também devorar o cérebro.
Foi muita sorte um comerciante visitar o bordel e pedir para ver a criança que urrava no quarto ao lado, tirando toda a sua concentração durante o coito.
Em tempos difíceis que o direito à saúde era privilégio de poucos, o homem sensibilizado pagou a remoção do olho podre.
As coisas se complicaram quando Cecília pegou gonorreia e foi expulsa do puteiro. A cafetina Adelaide queria ficar com Heitor, não que ela fosse um poço de bondade. Mas o moleque fazia mandados, desentupia e lavava todas as latrinas sem nunca perguntar sobre os fetos em decomposição que arrancava das manilhas.
O menino, então com nove anos, tinha vergonha de pedir esmolas e logo encontrou um jeito de construir a caixa de engraxate. Porém, mesmo com a cratera na face preenchida com algodão colhido no pé, as pessoas ficavam incomodadas com a sua presença. Tudo se resolveu quando uma senhora, após uma crise de choro, retirou os óculos escuros e lhe deu de presente.
Heitor trabalhava dia e noite e pagou a um farmacêutico as dolorosas Benzetacil que secaram o corrimento fedido da mãe. Pouco tempo depois construiu o barraquinho às margens da rodovia e não a deixou voltar para o bordel.
O olho de vidro, Cecília disse que o encontrou quando foi prestar seus serviços a um coveiro. A tumba que lhes serviu de cama desmoronou e no meio dos ossos pisou no crânio que se abriu feito uma ostra.
Heitor ficou feliz e logo forçou o objeto para dentro da face; mas até os ossos se dilatarem para acomodar, calcificar e prender aquela enorme bola de vidro no interior da órbita, os músculos, nervos e vasos doíam de forma obtusa e latejante. As pontadas angustiantes que irradiavam por todo o corpo e se estacionava na cabeça, provocavam alucinações, e no submundo em que vivia descobriu demônios cavalgando toda aquela escoria da sociedade. Dizia ver, com o olho que a terra "não" há de comer, os espíritos gargalhando sobre o dorso dos desgraçados.
Cecília nunca contou ao filho que o presente fora encontrado no cemitério, e, assustada com os relatos macabros, foi falar com o coveiro. O velho disse que o túmulo em ruínas era de um temido feiticeiro que viveu no início do século passado.
Heitor falava que sempre que alguém tomava um tiro ou facada, havia um demônio que sugava parte do sangue antes que jorrasse; que os seres grotescos sufocavam moribundos até a morte e também mamavam as parcas mamadeiras das criancinhas, que quando morriam de inanição, tinham suas alminhas pirracentas levadas no colo para o inferno.
Mesmo sabendo que aquilo era fruto de uma mente doente, forjada pela dor, tristeza e miséria, as alminhas no colo dos demônios me incomodaram bastante e fez com que eu perguntasse se não havia anjos para impedir...
Cecília disse que segundo Heitor, os seres tinham enormes asas brancas e só apareciam quando os demônios estavam estuprando, com membros gigantescos, as mulheres doentes e drogadas. Que com unhas afiadas as criaturas horrendas arrancavam as cascas das feridas e passavam a língua áspera pelo corpo machucado. A boca era sugada com tanta voracidade que o vômito esverdeado saia sanguinolento de suas entranhas violadas.
Os anjos entristecidos, com olhos cheios de água, ficavam observando. Eram belos e humanos demais para serem puros: eles se masturbavam.
Cecília também falou de quando esteve presa e o filho foi visitá-la. O menino desmaiou e quando voltou a si disse que o presídio estava cheio de demônios e de espíritos de pessoas que foram assassinadas. As almas apertavam as gargantas de seus algozes conseguindo, quando muito, uma crise de tosse. Já os demônios, sedentos, tramavam as rebeliões ilustradas com decapitações, enforcamentos e incêndios.
A mulher queria falar sobre os motivos que a levaram à prisão, mas graças a Deus, foi interrompida com a chegada de Heitor.
Ele trazia todos os meus pertences e, apesar daquela bolota pregada na cara, exibiu um sorriso bonito ao dizer:
_Moço, a carteira tá qui, deu trabalho, mas me devolveram tudo... Bem, o dinheiro... Sabe como é que é...
_Não tem problema. O mais importante são os documentos.
Jaqueta, camisa, calça e sapatos estavam em um saco de linhagem. A mala pesada com material de higiene, roupas e alguns aparelhos médicos ficou do lado de fora.
Cecília foi logo dizendo:
_Eu não disse que todos gostam dele.
Logo vesti minhas roupas e calcei meus sapatos. Prometi voltar o mais breve possível para ajudá-los. Heitor disse que não precisava se incomodar.
O menino me acompanhou até o ponto. Estava descalço com sua pesada caixa de engraxate no ombro. Ao chegarmos ele retirou bem do fundo do bolso, algumas moedas e notas amassadas e me deu para pagar a passagem, e disse que ainda dava para comer um pedaço de pão com mortadela.
Entrei no ônibus, e assim que o motorista deu partida joguei minha jaqueta de couro em cima dele e gritei:
_Fica pra você, é só passar graxa que fica nova!
O garoto segurou e saiu correndo atrás do coletivo gritando para parar. O motorista entendeu o meu gesto e acelerou...
Quase uma hora depois cheguei no hospital. O diretor já havia ligado, deixando o meu pai preocupado. Falei sobre o ocorrido e liguei para a fazenda a fim de tranquilizar meus familiares.
A meningite apavorou todos naquela década e a omissão das autoridades fertilizou terreno para o avanço da doença. Trabalhávamos diuturnamente e só tive tempo para procurar por Heitor dois meses depois.
Durante esse período eu e meu pai conversamos muito pelo telefone, ele disse que se caso o menino e a mãe quisessem ir morar na fazenda seriam bem vindos.
Meu pai era um homem bom. O menino poderia ficar ajudando o veterinário e tomar gosto pela coisa. "É claro que gosta de bichos!" falei ao lembrar que Heitor levava animais doentes para dentro do barraco: as pulgas eram as testemunhas.
Também tive uma conversa no hospital. O caso do garoto não era da minha alçada, mas o Doutor Geraldino Albino, um experiente ortopedista da área facial, se prontificou a fazer uma avaliação e prometeu ajudá-lo da melhor forma possível.
Peguei um táxi, feliz da vida, e para completar no toca-fitas do Corce I tocava: Don't let me down. Cantei alto e o motorista, sem que eu percebesse, abaixou todo o volume. Continuei na maior altura; aquela música, que quase furou o vinil no dia da minha formatura, jamais parou de tocar no rádio velho que passou a existir dentro da minha cabeça.
Quando chegamos não havia mais nada. Fiquei perplexo e quase perdi a voz.
O taxista não sabia exatamente onde eu queria ficar, falei apenas que era alguns quilômetros depois da Rodoviária. Mas percebendo a minha frustração logo concluiu e disse:
_Faz quase um mês; foi depois da última enchente, tudo ficou alagado e os barracos foram destruídos. Deu no jornal, mais de cem pessoas morreram... O Senhor estava procurando alguém?
Nossa, como chorei.
Falei com o motorista que precisava ir à rodoviária, talvez Heitor estivesse por lá.
Durante o trajeto vi o tal, Pedro Mata Sete, "o da jaqueta", jogando bilhar em um bar. Imediatamente pedi o taxista para parar. Entrei, esperei a partida terminar, e fui logo falando:
_Você tem um tempo pra mim. É sobre o menino do olho de vidro. Estive no barraco há cerca de dois meses. Sou tio dele e...
_Heitor! Ele me procuro pra ajuda recupera tua tralha. Acho que falo mermo que tinha um parente no muquifo. A jaqueta tava comigo, peguei de um cabra que me devia uma parada, mas dei o moleque. todo mundo gostava dele. Tô vivo graças a ele...
_Sobre a jaqueta tudo bem. Mas, você está vivo graças ao Heitor? Como assim?
Antes de começar a falar, Pedro Mata Sete fez o sinal da cruz e arregalou os olhos. Era magrelo e usava roupas de tergal coloridas. A cabeleira crespa, ouriçada com pente de raio de bicicleta, brilhava impregnada com vaselina, já os sapatos de solado alto, com certeza, nunca viram uma mão de graxa.
havia um nervosismo crescente. À medida que relatava o ocorrido, gesticulava e fazia caretas:
_Minino endoido! Começou a dize que via com aquele zoião de vidro uma porção de capeta trepada na cacunda da gente. No dia da tempestade falo que os demoin batia asa po vento fica mais forte e faze as nuve tromba. Primeiro vinha as faisca, depois o estrondo. Os teiado saia voando cortando braço, perna, barriga e tudo que tivesse na frente. Foi uma gritaiada dos inferno. As talba cheia de prego batia nas cabeça fazendo miolo sai que nem água de regado. O Heitor gritou pra mim deita. Foi só agacha e uma foia de zinco passo zunino na minha oreia. A coisa pio foi a carreta que desceu fazendo barui pela ribancera. O garoto falo que viu satanás na direção, rindo com uma dentaria danada, o chifre era tão grande que saia pela janela. Foi gente moída nas roda jogada pra todo lado. Deu um trabai danado pra junta e coloca nos caxão. A sanguera fez a água da enxurrada ficar vermeia igual groseia. Quas todo mundo foi pro carai...
Eu não queria visualizar a cena, mas ele acreditava no que narrava. foi impossível não ouvir os crânios dos desgraçados explodindo entre os fortes eixos de liquidificador. Com um nó na garganta perguntei:
_E o Heitor?
_Falo que ia embora dá um jeito de ranca aquele zóio amaldiçoado.
_E a mãe dele?
_Morreu uns dias antes da chuvarada.
Agradeci o pobre homem, que havia ganhado o ameaçador apelido jogando bilhar; deixei uma dose de conhaque e um tira gosto pago. Ele fez questão que eu jogasse uma partida de bilhar. Queria mostrar que matava sete bolas com uma só tacada e logo derrotava o adversário. E, como derrotava...
Cheguei em casa arrasado; um turbilhão de coisas passavam pela minha cabeça; tomei um banho e fui tentar dormir.
Sonhei com Heitor gritando com aquela voz estridente. Ele pedia para que se abaixassem; corressem para os lados, que desviassem das lâminas de aço que eram lançadas relâmpagos sobre os corpos que se abriam frágeis que nem manteiga. Ninguém dava atenção ao desespero do menino...Estavam ocupados demais, brigando pelo sangue que saia farto pelo caninho fincado no barranco. Depois ele estava andando sobre os corpos mutilados gritando com as varejeiras para que fossem embora, pois já haviam comido tudo. Polícia! Polícia...! Os demônios apareceram fardados e lhes racharam o crânio com o cassetete. Heitor sorria. A face fraturada deixou cair o olho de vidro. Olhei para a órbita vazia que tomava todo o lado esquerdo do rosto e só vi escuridão. Acordei.
Nunca desisti. Cheguei a colocar anúncios no jornal e na rádio oferecendo recompensa a quem desse notícias de um menino que tinha um olho de vidro preto e um de verdade, azul.
Encontrei Heitor quase dez anos depois.
A Polícia repressiva espancava estudantes que destoaram de uma passeata que protestava a morte de um colega. Da janela do meu apartamento vi um bando de policiais batendo em um jovem, cuja cabeleira ruiva destacava-se entre as demais. Ele usava uma jaqueta de couro e óculos escuros.
Tive a certeza quando os óculos voaram longe e o oficial gritou:
_O desgraçado tem um olho de vidro.
Desci as escadarias com uma agilidade que não conhecia. Empurrei o lacaio e quando ele ia revidar, me reconheceu:
_Doutor Geovanni? Caso não lhe devesse a vida do meu filho, por causa daquela maldita doença, juro que te mataria agora.
Eu estava nervoso e chorando, falei:
_Esse rapaz é meu sobrinho. Por favor, entregue-o a mim.
O Policial colocou a mão no meu ombro, deu um sorriso forçado e falou:
_Me deve essa. Boa sorte.
Heitor não era mais aquele menino raquítico e feio. Ficou alto com compreensão física privilegiada. O olho de vidro parecia o de verdade, só que preto.
Uma multidão nos cercou, mas não havia mais nada a ser feito, a não ser esperar o óbito.
Da cabeça rachada, a massa encefálica saia brilhante. Agachei e coloquei a mão em sua testa e quando ia fechar lhe os olhos, ouvi a voz grave de um homem feito:
_Aceitei seu presente, deu-me muita sorte. Olha como ficou bem em mim.
_Te procurei, Heitor. Mas os barracos estavam destruídos...
_Para de chorar, Doutor. Só te peço que tire de mim esse olho do inferno. Com todos esses ossos quebrados vai ser fácil... Vou-lhe contar um segredo terrível: os demônios sopram nos ouvidos de todos os comandantes e Deus fica de braços cruzados olhando o circo pegar fogo. Eu até podia mandar extrair esse olho e colocar um azul da cor do céu, mas não iria mostrar esse mundo invisível. Impedi muita coisa ruim, pode ter certeza. Apesar de ser uma coisa maligna, o usei para o bem. Eu só queria lutar por um mundo melhor. Estranho... O frio que sinto agora, mesmo usando a sua jaqueta. Que bom que ela não é tão ruim, e aguardou pacientemente eu falar um pouco com o Senhor.
No momento em que levei a mão para atender o seu último desejo, vi a morte refletida no olho de vidro. Não ouvi a sua voz, mas tinha o semblante triste e cantava: Don't let me down.