A CEGA
A SOMBRA
"E se um dia perceberes que não estou mais
contigo, por favor... não solte a minha
mão, pois eu sempre estarei com você."
V.N.N
2
CAPITULO
A CEGA
Criado por.: Vinicius N. N.
Minha esposa Daiana encontrava-se muito preocupada com minha saúde. Já era a decima sexta hora que estava naquele quarto escrevendo, sem nenhuma pausa, sem comer, sem tomar banho, sem conversar, sem dormir. Eu acreditava na preocupação de Daiana, mas não podia sair sem terminar. Minha obsessão havia tomado controle sobre minhas ações. Era como uma obrigação terminar este capitulo.
1
– Então deixe-me ver se entendi direito. Está me dizendo que ajudou a esconder os corpos naquela casa, mas não sabe como? – Questionou o Delegado Oliveira.
Emerson Lucas Oliveira, atual delegado da 107ª DP, localizada em Saudades, nos extremos da zona norte de São Paulo, depois de Pirituba.
Oliveira era alto, não tão alto quanto um jogador de basquete, mas media um metro e oitenta, com um corpo saudável, ao qual ele se dedicava a praticar exercícios contínuos toda manhã, como caminha de longa distância e academia algumas vezes por semana, tinha cabelos negros, barba grossa, e olhos castanhos que quase não eram vistos, pois ele usava lentes pretas, achava menos chamativo. Na maior parte do tempo usava o uniforme de delegado, mas naquele dia estava usando uma jaqueta de couro preto e óculos negros, pois mais tarde sairia com sua mulher, a senhora Rosa Lopes para um bazar beneficente que particularmente ele odiava, mas evitava expressar sua opinião.
Oliveira já estava no posto a mais de dezessete anos e nunca vira alguém confessar um crime daquele modo. Talvez alguns vagabundos já tenham conseguido chegar perto, mas daquele jeito... nunca.
Na sala de interrogatório estavam o delegado Oliveira e o policial Bruno Felix. Felix estava impaciente, de braços cruzados, com olhar fechado e penetrante, nervoso.
– Eu sei que é difícil acreditar...
– Difícil! Estamos perdendo tempo aqui. – Gritou Felix batendo a mão na grande mesa quadrada no centro da sala, provocando um enorme barulho que assustou até mesmo Oliveira.
Oliveira colocou a mão em seu ombro e disse em voz quase inaudível.
– Espere.
O Delegado pegou um envelope amarelo de cima da mesa, abriu e começou a ler seu conteúdo.
– Jonny Albuquerque de Sousa, 22 anos, nascido em 27 de fevereiro de 1994 no hospital de Santo Amaro. Local de residência atual desconhecido, familiares próximos desconhecidos. Nunca foi fixado. Você sabe o que isso?
Oliveira havia narrado a vida dele em algumas frases.
Jonny ficou inquieto, contudo não atreveu-se a responder.
– Olha... isso deveria contar tudo sobre você, mas por algum motivo várias informações estão em branco, ou são desconhecidas. Isso me faz pensar! Ou você é um zé ninguém, ou de algum modo conseguiu fraldar suas informações.
Jonny arregalou os olhos, perplexo por não saber o que estava acontecendo. Desde que foi encontrado na rodovia, sua mente tem estado instável, como um túnel escuro aonde não é possível enxergar nenhuma direção, contudo, algumas vezes surgem luzes, luzes intensas que aparecem de uma hora para o outra e somem de repente iluminando de relance o caminho. Alguns poderiam chamar de amnesia, mas no fundo, ele sabia que seu subconsciente estava bloqueando certas lembranças.
– Eu já contei a vocês! Eu perdi...
– Eu sei o que você vai dizer. Eu perdi minha memória e bla, bla, bla... – Disse Oliveira, ridicularizando-o.
– Vamos Jonny, já sacamos tudo. Você deve ter tido ajuda de alguém! Mas, quem será? Conte nos como conseguiu. Eu mesmo nunca quis que as pessoas soubessem do meu passado.
E você Bruno? Já quis que alguém soubesse do seu passado.
Bruno ficou calado.
– Viu! Ele nem gosta de falar, agora pense se vai querer que saibam do seu passado. Agora, coopere conosco, sei que se cooperar, podemos até aliviar sua pena com o promotor. Pelo meu amigo aqui, você já estaria em uma cela de prisão a muito tempo, mas sou uma pessoa justa, primeiro quero entender a sua parte.
Jonny começara a ficar nervoso por não acreditarem nele, seu sangue havia esquentado e sua cabeça latejava constantemente, remetendo-lhe uma dor de cabeça insuportável. Logo não conseguiu mais ficar calado, portanto começou a gritar, num tom alterado, forte e explosivo.
– Eu não vou confessar nada que não tenha feito! Eu disse que escondi os corpos na casa. Somente isto, mais nada! Não estou ocultando informações e nem tenho cúmplice.
Oliveira mudou de expressão, colocou os documentos no envelope amarelo, jogou-o em cima da mesa, em seguida virou de costas, encostou a mão na frente dos lábios inconformado, olhou para o teto durante alguns segundos e respirou lentamente. Jonny somente observou, oliveira permaneceu parado naquela posição durante meio minuto, refletindo. Então, inesperadamente ele se virou e desferiu o chute mais forte que pode na mesa, virando-a. Jonny se levantou as pressas da cadeira e ficou em pé próximo a parede. Oliveira tornou a apanhar alguns documentos e disse;
– Engraçado você dizer que é o culpado, muitos vizinhos pôr os quais passamos sua foto dizem nunca ter o visto pela região, inclusive... andei checando e nestes últimos dois meses você esteve em uma instituição psiquiátrica, logo após atacar um homem sem motivo.
Enquanto ele falava, Jonny começou a se sentir zonzo, sua visão ficou embasada e memorias que até então estavam dissociadas, começaram a retornar em lapsos. Contudo uma cena se destacou entre uma tormenta de imagens aleatórias, ele se lembrou de estar preso em uma sala acolchoada, com camisa de força, se debatendo e gritando.
Oliveira continuou...
– Antes disto não temos mais nenhuma informação. E fora isso, nenhuma digital encontrada na cena do crime bate com a sua. E se você ainda estiver duvidado, um dos vizinhos da cena do crime instalou em sua residência uma câmera de vigilância a cerca de 5 anos. Passamos horas repassando as cenas e não encontramos nada nestas gravações que o relacione aquela casa.
– Vocês não vão achar nada em cinco anos... porque eu estive lá a cinquenta anos.
– Não vou ficar aqui ouvindo essa merda! – Falou Felix, que saiu da sala.
Oliveira começou a gargalhar ironicamente...
Quando não conseguia mais rir, ele foi na direção da porta e a abriu, depois ficou parado olhando para fora da sala durante um minuto inteiro.
Jonny acreditava que a qualquer momento ele tiraria um cigarro do bolso e começaria a fumar.
Contudo...
– Filho, sabe que obstruir uma investigação federal é crime. Poderia mandar prendê-lo neste instante por nos fazer perder tempo...
– Estou dizendo a verda...
Oliveira levantou a voz e o cortou.
– Sou uma pessoa justa como havia falado no começo. Não vou colocá-lo na prisão sem provas. Poderia ao menos manda-lo de volta para aquela instituição psiquiátrica, mas estou cansado de preencher formulários e papelada à toa. Eu só espero que você me diga uma coisa?
Jonny desencostou-se da parede e andou dois passos na sua direção.
– O que?
Durante a discussão, um vento abriu a porta e Jonny sentiu uma presença entrar naquela sala, uma força intensa que assimilou o ambiente. A luz diminuiu sua intensidade e a sombra de Oliveira começou a crescer e logo cobriu a parede atrás dele.
Jonny notou que algo estava diferente em Oliveira.
– Como você quer morrer Jonny? – Disse Oliveira com uma voz estranha, mais grossa, senil e terrivelmente assustadora, como se algo o tivesse possuído.
Jonny correu daquela sala o mais rápido que pode. Enquanto corria ele olhou para trás, e percebeu que o rosto do delegado havia mudado. Sua expressão tornara-se demoníaca. Seus olhos estavam vermelhos e de seus canais lacrimais escorria lodo negro e sua boca estava coberta por dentes pontiagudos.
No final do corredor quando se virou novamente, Oliveira aparentava estar normal, com um rosto humano. Jonny torceu o nariz, esfregou os olhos e saiu do corredor pela porta principal, de lá cruzou o salão central, passou pela recepção e chegou na saída.
Oliveira ficou estupefato, sem entender o que acontecera.
– Pobre infeliz, filho da puta! – Falou Oliveira.
Enquanto guardava os documentos no envelope amarelo, uma foto estranha caiu no chão. Era a foto de Jonny, enquanto estava instituição psiquiátrica. A foto fora tirada para recordar o último dia que Jonny passaria naquele lugar. Ele estava na varanda, sentado num banco de madeira, ao lado de alguns pacientes vestidos de branco, olhando o horizonte.
Oliveira notou algo estranho no canto direito da foto, acreditou que fosse apenas um borrão, porém, quanto mais aproximava seus olhos da foto, percebia que era na verdade um pilar de sombras com dois olhos vermelhos inquietantes e perversos. Desacreditado por sua razão ele guardou a foto e saiu, fechando a porta da sala de interrogatório.
2
Jonny saiu da delegacia aflito, pálido e tremendo de medo. Por conta de sua pressa, ele não percebeu que na sua direção vira uma pessoa, e acabou esbarrando nela, fazendo-a cair no chão.
Quando se recompôs notou que se tratava de uma mulher deficiente visual.
Mesmo tendo levado um tombo feito que provavelmente tenha a machucado, ela não se manifestou, nem mesmo uma palavra sequer...
– Me desculpe senhora, estava com pressa, eu não a tinha visto. – Desculpou-se Jonny, apanhando sua bengala que caíra a alguns metros dali, ao lado de um cesto de lixo reciclável.
Ela vestia uma camisa bege, uma saia branca que estendia-se até os pés, calçava sandálias pretas, um tanto velhas e parcialmente rasgadas, e uma corrente com uma cruz no pescoço.
Segurando a bengala na mão esquerda, ele estendeu a mão direita para erguer a senhora, e no exato momento que ele a tocou, ela fechou os olhos e em sua mente, observou uma sombra com grandes olhos vermelhos, que gritava sem parar num tom agudo, estridente e agoniante. – Eu vou matar todos eles! Em seguida a mesma desmaiou.
Jonny se desesperou, colocou a bengala no chão e segurou a senhora entre os braços, tentando acorda-la, balançando-a e abanando sua face, com a palma da mãe. A cega acordou minutos depois. Ela aproximou-se de seu ouvido esquerdo e sussurrou, com uma voz rouca e abafada.
– Você está em perigo. Aquilo está se aproximando! – Avisou a cega, que começou a suar.
Ela puxou uma caneta do bolso, virou o antebraço de Jonny e escreveu um endereço em sua pele.
– Você precisa de ajuda, venha na minha casa. Neste endereço você irá encontrar respostas. – Advertiu a senhora.
A cega se levantou as pressas, apanhou a bengala e saiu dali o mais rápido que pode, quase correndo.
3
– Isso mesmo, ela disse que eu estava em perigo e que “algo estava se aproximando, em seguida escreveu um endereço no meu braço, disse que eu precisava encontra-la novamente se quisesse respostas e foi embora. – Contou Jonny a Aline.
Jonny estava na casa de Aline, sentado no sofá. Se passara quase três dias daquele ocorrido e mesmo sabendo o que ele havia feito, Aline ainda confiava nele de alguma maneira estranha.
– O que você pretende fazer agora?
– Eu não sei. – Respondeu ele. – Penso em encontra-la, mas tenho medo.
– Do que você tem medo? – Questionou-o.
Jonny permaneceu mudo, de cabisbaixo, olhando para as mãos fechadas, esperando conseguir respostas para aquela pergunta.
– Acredito que deva ir! Talvez ela tenha respostas, talvez não. Quem sabe? Ao menos vá ver o que ela tem a dizer. – Orientou Aline.
Depois de conhece-lo, Aline passou o tempo com um aperto no coração, um pressentimento ruim. Depois do dia na floresta, ela o vira mais uma vez, antes de se entregar. Um dia antes, ele havia ido a um bar no centro da cidade, próximo a república.
Desde a floresta, Aline começou a seguir Jonny. Ela até sentou-se numa mesa naquele mesmo bar, não tão próxima para que ele não a reconhecesse e ficou o observando durante duas horas. Jonny não parava de beber. Estava vestido com uma camisa cinza, um short escuro e chinelos. Aline ao contrario estava de óculos escuros, com uma blusa de couro vinho e uma calça preta e saltos, irreconhecível.
Após Jonny ficar bêbado, algumas mulheres se aproximaram dele. Ela tinha quase certeza que uma deveria ser um travesti, mas não tinha certeza.
A conversa logo se tornou intensa.
– Ei garoto, o que está fazendo bebendo sozinho! – Disse uma das mulheres com seios fartos e bunda empinada, ostentando um vestido vermelho brilhante colado, manchado de luxuria. Ela logo foi se assentando ao seu lado e começou a acariciar seu braço, encostando-o em seus seios.
– Me deixem em paz. – Disse Jonny embriagado, com voz ébrio e gaguejando.
Uma das mulheres, a mais alta com longos cabelos loiros, pegou a mão de Jonny e a enfiou entre os seus peitos. Sua pele era macia, formidavelmente sensível e lisa, seus dedos deslizavam prazerosamente. Ele tentou puxar sua mão, mas já estava começando a ficar excitado, movido por uma sensação inconfundível. Aquela garota que parecia não ter mais que vinte anos, reclinou o rosto próximo ao seu ouvido e começou a gemer num tom baixo e sensual.
– Você não quer brincar comigo! – Ofereceu-se uma das mulheres.
Quando Jonny voltou a razão ele puxou sua mão e falou.
– Me deixem em paz, eu quero ficar sozinho.
A terceira mulher que Aline tanto confundira com um travesti, sentou-se do outro lado de Jonny e começou a acariciar sua coxa, deslizando sua mão carinhosamente em movimentos aleatórios.
– Tem certeza bebe. Eu posso fazer você feliz. Você quer ser feliz... não quer? – Disse ela com uma voz estranha, meio masculina.
Jonny percebeu que a mulher que acariciava sua perna, deslizara sua mão por entre sua coxa na direção de seu pênis. Ele já estava excitado, porém a empurrou, repudiando-a. Precisava sair daquela situação, portanto se virou bruscamente para o lado esquerdo, num movimento rápido que acabou o desequilibrando, fazendo-o cair da cadeira.
Elas sabiam que ele estava muito bêbado, a mais alta o segurou pelo ombro e o firmou em pé, e o travesti ajudou a leva-lo daquele lugar.
– Vamos para um lugar reservado queridinho! Sei que quer passear nesta montanha russa! – Disse a mulher mais alta com uma voz fina e graciosa.
As três mulheres carregaram Jonny até um beco algumas ruas depois... Aline os seguiu.
Ele estava numa situação tão vulnerável que não conseguia se defender. O álcool tinha deixado ele bêbado demais. Quando chegaram no beco, as mulheres começaram a revista-lo todo, porém só encontraram cem reais em dinheiro no bolso do short.
– Não! É o único dinheiro que tenho.
O travesti que vestia uma blusa curta de renda lilás e uma saia rosa, esperou que suas amigas tomassem todo o seu dinheiro e depois acertou um cruzado de direita perfeito em seu queixo, fazendo-o cair no chão, quase desmaiado. A força do soco foi tão grande que ele teve certeza que era um travesti. Quando caiu no chão, as outras duas mulheres começaram a pisotear ele de forma agressiva, gritando. Aline aflita ameaçou a ligar para polícia, porém sua reação logo tornou-se atônita.
Jonny estava quase desacordado e muito ferido, o travesti pediu para as outras se afastarem, e então colocou o salto sobre seu short, pisando em seus testículos, fazendo-o gritar de dor.
– Perdeu! Seu merda. – Disse o travesti, agora com uma voz totalmente masculina e grossa.
Em seguida elas foram embora, saltitando de alegria por conseguir aquele dinheiro fácil. Aline correu para o beco. Jonny estava se arrastando para tentar se levantar e ao mesmo tempo não parava de chorar como uma criança. Ao ver ela, ele confundiu-a com uma das prostitutas de antes.
– Vocês já pegaram todo meu dinheiro, o que querem mais de mim?
– Acalme-se Jonny é a Aline, se lembra de mim.
A princípio não acreditou, pensara que sua mente estava lhe pregando uma peça, mas logo percebeu que era realmente ela. Sua primeira reação foi abraça-la, como um filho que abraça a mãe.
Aline o levou para casa, deixou ele tomar o banho mais longo que conseguiu e depois o colocou na cama. No dia seguinte ele foi para a delegacia, Aline o levou de carro até alguns quarteirões antes e depois partiu. Ela aguardou ao lado do celular durante horas, vendo canais de noticiários. O interrogatório durou cerca de setenta e duas horas. Jonny telefonou para ela, seis horas depois e no segundo que ouviu sua voz, seu coração ficou aliviado.
4
Rua Senador Otávio Lincoln, número 2883, o endereço que a cega escrevera em seu antebraço na porta da delegacia. Dobrando a esquina, reparou que a rua localizava-se em uma ladeira. A casa dela estava ao lado de uma ponte interditada, frente a um pessegueiro. Quando se aproximava, olhou para o pessegueiro e viu vários corvos em sua copa, com os olhos fixados nele. Ao se aproximar, viu que o portão da casa era laranja, e suas laterais estavam cobertas de trepadeiras.
No minuto que subiu na calçada, um vento forte espalmou em seu rosto, e os corvos voaram... eles pareciam ir em sua direção, mas tomaram o curso contrário e sumiram no céu, entre as nuvens. Jonny continuou observando-os mesmos depois de não conseguir mais velos, perdido em um sentimento de impotência e medo. Naquele momento, uma mão áspera e enrugada tocou seu ombro...
– Eu sabia que você viria! – Disse a Cega.
Virando-se deparou com uma figura velha de olhos embranquecidos, usava uma camisola branca que descia até a ponta dos pês e na lateral do pescoço havia uma cicatriz, um tipo de corte que descia da orelha até o peito direito.
– Estes olhos... não há vida neles... não há alma... – Pensou Jonny.
Inesperadamente uma imagem intercalou-se em seus olhos. Ele podia jurar que estava vendo ela caída no chão, com o pescoço rasgado, coberta de sangue, e com os olhos vidrados nele.
Naquele devaneio, uma voz tremulou em seu coração, gritando. – Me salve!!!
Percebendo que ele estava em algum tipo de transe, ela empurrou seu ombro, levando-o novamente a realidade.
– Vamos, pode entrar!
Após retomar a consciência ele a acompanhou, adentrando a casa.
A fachada da casa parecia ter sido pintada a pouco tempo. A tinta ainda estava fresca, tanto que o cheiro era forte e desagradável, misturado também a um aroma imperceptível de mofo e perfume de rosas. Ao entrar encontrou dois corredores paralelos, um parecia levar até os fundos da casa, em uma área escura, que devia ser a lavanderia. Era possível enxergar várias gaiolas no chão, um tanque de lavar roupa, uma mesa lotada de roupas, e uma caixa de sabão em pó brilhante.
– É por aqui! – Disse a cega, ao perceber que olhara para a lavanderia.
O outro corredor era diferente, o chão estava coberto de azulejos azuis, as bordas das janelas estavam cheias de vasos de plantas coloridas. No final do corredor havia uma escada que levava até o terraço. Jonny virou o rosto para o lado esquerdo e olhou para dentro da casa por uma janela, e por apenas alguns segundos era como se a casa estivesse vazia.
A cega puxou seu braço tirando seu foco da janela e o empurrou na direção da porta mais à frente.
Entrando na sala, sentiu um cheiro podre, como se um corpo estivesse se decompondo, ele pressionou o nariz com a mão e logo o cheiro desapareceu.
A cega se sentou em um enorme sofá preto revestido a couro.
– Ufa... – Respirou ela. – Descansar é tão bom. Amaldiçoada é minha vida por nunca poder descansar.
Jonny se sentou em uma poltrona marrom desbotada. Ele observou a janela que olhara do lado de fora e percebeu que a casa estava completamente diferente de antes. Havia uma TV no centro da sala, uma mesa redonda, uma estante decorativa e vários quadros nas paredes.
– Joana!?... – Falou ela.
Jonny não compreendeu se era uma pergunta ou uma afirmação.
Ela sorriu e em seguida disse.
– Me desculpe, não acho que tenha suado como uma afirmação. Meu nome é Joana. Acredito que tenha vindo porque precisa de respostas.
Jonny ficou estupefato.
– Antes de começarmos, eu quero deixar bem claro que não tenho dinheiro.
– Assim você me ofende Jonny. – Disse Joana.
– Como sabe o meu nome?
– Você me contou, não se lembra!
Jonny não se recordava de tê-la conhecido antes da delegacia. Mas, não confiava na sua memória.
– Jonny... você está em perigo! Posso não ter o dom da visão e não conseguir enxergar. Alguns podem me chamar de fraude, outras de bruxa ou de monstro, mas eu vejo, não como você, mas consigo pressentir coisas...
– Como assim, coisas! – Falou Jonny.
– No momento que lhe toquei naquela delegacia, eu senti uma sensação terrível, algo mórbido, cheio de ódio, movido a sanguinolência. Eu vi o diabo!
– Espera um pouco. Você... viu o que? – Gaguejou ele.
– Existe uma força sombria ao seu redor, algo impulsivo, sem controle, algo maligno... A muito tempo eu conheci uma pessoa na sua mesma situação...
– Como assim? Quem?
– Antes que possa lhe contar, preciso que saiba como fiquei cego... – Disse Joana.
– Quando era uma mulher jovem, cheia de vida... Tinha um marido exemplar e filhos abençoados. Um dia fiquei doente. Um maldito câncer surgiu no meu cérebro. Os médicos preverão mais seis meses de vida. Eu vi meu marido enlouquecer gastando até o último centavo possível. Quando estava próximo do fim, ele comprou uma arma, chegou em casa drogado, ou bêbado não sei, ele esperou até estarmos dormindo e atirou na cabeça de nossos filhos e depois na minha, em seguida ele se matou com um tiro na boca. Eu acordei dois anos depois num hospital, cega, curada do câncer. Muitos disseram que era impossível. Como alguém pode sobreviver a um tiro no meio da cabeça e ainda acordar curada de um câncer em estado tão avançado e incurável. Demorei muito tempo para aceitar também. – Joana contava a história sem nenhum tipo de expressão.
– Como você sobreviveu? – Perguntou Jonny.
– Nem mesmo os médicos sabem, quando me encontraram em casa caída no chão com um buraco na cabeça, acreditaram que estava morta, dali me levaram num saco preto para o necrotério. Minha sorte foi que o legista percebeu que estava respirando. Eles me levaram para a UTI e fiquei em estado de coma durante meses, quando melhorei ainda estava em coma, então eles me deixaram em uma sala de recuperação, ligada a vários aparelhos.
– E os seus familiares?
– Sou órfã filho, meus pais adotivos morreram a muitos anos e nunca tive nenhum herdeiro.
Jonny estava realmente abalado com a sua história.
– Durante dez anos permaneci em total solidão, vivendo o passado com ressentimento, perguntando-me como aquilo poderia ter acontecido comigo. Enfim, dez anos depois houve meu primeiro episódio. Estava em uma praça respirando um pouco de ar livre, quando uma criança passou por mim e derrubou seu brinquedo ao meu lado. Me estendi, peguei o brinquedo e em seguida o devolvi, porém sem querer acabei encostando na mãozinha dele. A primeira vez foi assustadora, não sabia o que estava acontecendo, meu corpo inteiro começou a tremer, tive até uma convulsão na hora, mas era como se minha cegueira sumisse, uma luz forte brandiu-se sobre meus olhos e uma cena, começou a passar na minha mente. Na visão eu era o garotinho, ele estava escondido dentro do guarda roupa e presenciou quando a mãe fora morta pelo marido durante uma briga, ao qual ele a enforcou com as próprias mãos. No mesmo dia tentei avisar a mãe dele, porém ela não me deu ouvidos, até que uma noite ele realmente matou a mulher. Daí pra frente ocorreram diversos eventos semelhantes. Mas, nem sempre ocorria, somente quando uma pessoa estivesse em perigo iminente. Procurei saber o eu tinha, mas não consegui descobrir nada que fosse verídico, a maioria das pessoas com quem falei debochou de mim e o resto me tratou com desprezo, como se fosse um monstro. Talvez até podia ser...
Joana se levantou do sofá, foi até a cozinha e pegou um copo de água, sem oferecer nada a Jonny e continuou seu relato.
– Vários anos se passaram e neste meio tempo nunca tirei proveito de ninguém, tentei apenas ajudar as pessoas. Só que existe algo que eu nunca contei pra ninguém. Durante o meu coma, tive um sonho recorrente que sempre se repetia. Eu sonhava com uma sombra de olhos vermelhos que perseguia um homem exatamente como você. Quanto o toquei naquela delegacia, eu o reconheci do meu sonho.
– Então está me dizendo que me chamou aqui por causa de um sonho. – Falou ele num tom arrogante.
Joana riu novamente.
– Não meu caro, eu lhe chamei aqui por outro motivo.
– Então fale logo. – Exclamou Jonny.
– De cinquenta em cinquenta anos ele volta... ele está se aproximando dos outros... você precisa evitar que ele mate os outros...
– Matar quem?
– Seus amigos...
– Existem histórias que andei pesquisando que falam de um ser místico. Um demônio, nascido das forças negativas do nosso mundo, que se alimenta do medo. Seu único objetivo e matar e colher as almas de suas vítimas e leva-las ao sofrimento eterno, para padecerem com ele. A cada minuto em nosso mundo ela fica mais forte e o único modo de detê-lo é...
A campainha tocou. Jonny levou um susto.
– Va ver quem é por favor Jonny!
– Mas você não terminou de contar. – Disse ele.
– Quando você voltar eu lhe contarei o resto.
Jonny se levantou percebeu que seu sangue estava fervendo, era como se estivesse com febre. Tomando folego ele foi atender a campainha. Seus passos eram lentos e pesados, estava realmente abalado com o que ela dissera, pois no amago de seu coração ele sabia que era verdade. Cruzando o corredor já era possível notar que não havia ninguém no portão, mas para se certificar ele ainda saiu da casa e olhou para todas as direções da calçada, vendo que não havia ninguém, ele voltou para dentro. Enquanto fechava o portão ele olhou para a campainha e notou que a mesma estava destruída e com os fios cortados.
Uma dúvida surgiu, pois não havia outra campainha e que estava ali não funcionava. Então como a campainha tocou...
Ele retornou para a sala o mais rápido que pode, e então as coisas começaram a ficar estranhas, pois os azulejos azuis do corredor, agora estavam quebrados e sua cor parecia mais um verde oscilante que hora parecia amarelo e hora a cor estava completamente desgastada. As flores que enfeitavam as janelas estavam mortas, e as janelas sujas, cheias de poeira e algumas quebradas e trincadas, e o perfume de rosas que outrora permeava o ambiente fora substituído por um cheiro de mofo insuportável. Desacreditando, ele começou a achar que aquilo não passava de um delírio momentâneo.
Chegando na sala, Joana não estava mais no sofá.
– Joana! – Chamou Jonny.
– Joana! Aonde você está! – Gritou ele em seguida.
O silencio evadiu-se, não havia nem ao menos um barulho naquela sala, somente a respiração ofegante dele, ao qual ele mesmo conseguia ouvir.
Jonny ficou preocupado e começou a procura-la por toda a casa, cômodo por cômodo, mas ainda assim não a encontrou. A única coisa que conseguiu encontrar foi sua bengala que estava encostada a beirada do sofá e o copo de água na mesa.
5
Jonny retornava para a casa de Aline quando decidiu ligar para ela.
– Alô! – Disse Aline do outro lado da linha.
– É o Jonny, Aline!
– Oi Jonny, você foi lá? – Perguntou Aline.
– Eu fui sim. Mas... aconteceram tantas coisas estranhas naquele lugar. – Jonny não parava de gaguejar.
Aline ficou muda.
– Seu nome é Joana. Ela me contou uma série de coisas, envolvendo demônios, coma e morte. Não devia ter ido... o pior foi quando ela desapareceu.
Jonny percebeu que Aline não o estava respondendo.
– Aline, você ainda está ai?
Aline permaneceu muda durante um determinado tempo, sem responder, até que tomou coragem e disse;
– Jonny, eu andei pesquisando este endereço que você me passou e pelo o que descobri... está casa está abandonada a mais de cinco décadas.
– Como assim abandonada!? Eu estive lá a alguns minutos. Você tem certeza que era naquele mesmo endereço.
– Qual era ao nome daquela mulher, Jonny? – Perguntou Aline.
– Joana. – Respondeu ele.
– Bem, você vai achar estranho... mas esta mulher viveu nesta casa a mais de cinquenta anos e foi dada como desaparecida naquela época. Ela foi a última proprietária, o terreno nunca foi leiloado por conta dos rumores que rondavam a casa.
Jonny se lembrou que quando chegou na casa e estava cruzando o corredor, ele olhou pela janela e viu que a casa estava vazia. Naquele minuto um desconforto tomou seu corpo...
– Jonny... Jonny... Jonny... – Aline começou a chama-lo, mas a linha permaneceu muda.
Ele saiu correndo o mais rápido que pode e retornou para a casa de Joana. Ao chegar lá, encontrou uma casa em pedaços, com o portão enferrujado e caindo aos pedaços, janelas quebradas, as paredes esburacadas, os cômodos vazios e cheirando a mofo. Vendo aquilo ele ficou em choque, quando saia da casa, suas pernas começaram a tremer e perderam as forças, ele caiu de joelhos e neste momento uma voz rondou seus pensamentos.
– Me ajude Jonny!
--------------------------------------------------------------------------------
CAPÍTULO ANTERIOR http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/5972498
PRÓXIMO CAPÍTULO
http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/5986094