Lembro-me que na minha adolescência não havia estradas ligando a cidade onde eu morava ao litoral. Para irmos a uma praia era preciso ir até São Paulo, pegar a Via Anchieta (a Imigrantes nem existia ainda) e descer até Santos. Depois, se a gente quisesse ir até uma praia da baixada sul, era preciso pegar a ainda insipiente e perigosa Manoel de Nóbrega para ir até Praia Grande, Itanhaem ou Peruíbe, que aliás se atingia por estrada de terra. Mas quem quisesse ir para as praias da baixada norte, era uma verdadeira aventura, pois os caminhos eram verdadeiras trilhas abertas através de mangues, serras e muitas vezes pelas próprias praias, que nas horas de maré cheia não deixavam ninguém passar. Assim, para se atingir lugares como Bertioga, Boracéia, Guaratuba, Barra do Una, Juqueí, etc. era preciso, ou fazer uma verdadeira trilha de escoteiro pela mata, ou então descer pela perigosa rodovia dos Tamoios até Ubatuba, e de lá ir até São Sebastião e depois pegar a trilha até essas selvagens e solitárias praias.
Bons tempos aqueles. Nós, adolescentes que morávamos em Mogi das Cruzes, tínhamos a nossa própria forma de fazer essa aventura. Bertioga sempre foi a praia dos mogianos. O pai de um dos meus amigos, o Miltinho, tinha uma cabana na praia de Indaiá, em Bertioga. Ele gostava de pescar, por isso comprara aquele terreno, no meio de um mangue, próximo onde hoje é o complexo do SESI e fizera lá um barraco de madeira onde ele costumava passar as férias, de preferência pescando. Ele trabalhava como maquinista da antiga Central do Brasil, pilotando os trens que faziam a viagem entre São Paulo e Mogi.
Eu tinha uns quinze anos na ocasião. Miltinho uns quatorze e o Dárcio dezesseis. Combinamos ir a Bertioga a pé, descendo pela trilha que cortava a Serra do Mar. Essa era uma trilha muito usada pelos escoteiros para fazer seus treinamentos. E costumava ser procurada pelos aventureiros que gostavam de fazer caminhadas.
Era uma trilha perigosa e as autoridades sempre recomendavam que ninguém se aventurasse por ela sem o acompanhamento de guias experientes e o equipamento necessário.  Para pegá-la era preciso ir de ônibus até uma vila no pé da serra, chamada Manoel Ferreira e depois, subir a pé a serra, e descê-la, acompanhando as cristas das montanhas, com cuidado, evitando os precipícios, pois bastava uma pequena escorregada num daqueles barrancos lamacentos para que nunca mais o corpo do infeliz fosse encontrado.
Havia também o perigo de se perder na mata. Esse, aliás, era o que mais acontecia com as pessoas que ousavam e aventurar nessa trilha. Muita gente já havia se perdido lá e seus corpos nunca mais foram encontrados. Até escoteiros já haviam se perdido na serra. Eu me lembrava especialmente de um garoto de um grupo de escoteiros, que havia sumido durante uma escalada de fim de semana. Pertencia a uma família muito tradicional na cidade e esse acontecimento ocupou as primeiras páginas dos jornais durante mais de um mês. Mobilizaram-se polícia e bombeiros, outros grupos de escoteiros, equipes de busca e todos os recursos disponíveis na época, mas o garoto não fora encontrado. Nem o seu corpo. Isso já fazia mais de um ano.
 
Mas nada disso nos assustava. No dia combinado, lá estávamos, MIltinho, Dárcio e eu, com nossas mochilas nas costas, equipadas com água, biscoitos, algumas frutas, um facão, cordas, álcool e outras matalotagens para enfrentar os três dias de caminhada que esperámos dar, para chegar até a cabana do pai do Miltinho.
Claro que não avisamos ninguém das nossas famílias que nós íamos se envolver nessa aventura. Nossos pais jamais deixariam que nós fizéssemos uma loucura dessas. Mas éramos adolescentes e sabíamos tudo. Nada podia deter-nos. O que representava uma caminhada de pouco mais de cinqüenta quilômetros pelo meio de uma mata, nós que passávamos o dia inteiro na rua, correndo, brigando, enfrentando todo tipo de confusão e dificuldade? Nós só queríamos a farra, a adrenalina injetada sangue, uma história para contar para os colegas, e ver o espanto e a inveja nos olhos deles, admirados da nossa coragem e ousadia. Isso compensava qualquer castigo, qualquer constrangimento futuro que porventura viéssemos a sofrer em consequência da nossa louca empreitada.
Creio termos andando uns quinze quilômetros pela trilha no primeiro dia. Estávamos, pelas nossas contas, bem no alto da serra. Pelo menos é o que parecia, já que começávamos a sentir aquela pressão nos ouvidos, que sempre nos acomete quando subimos á certa altura acima do nível do mar. Volta e meia a gente tinha que engolir em seco para aliviar a pressão nos tímpanos. Mas a espessa mata que nos cercava não nos permitia ver nada, assim não sabíamos em que ponto exato da trilha nós encontrávamos, nem se estávamos, de fato, caminhando em direção ao litoral.
Até porque, em vários pontos a trilha se interrompia e se abria em várias picadas, que se bifurcavam para todos os lados. E nós, na nossa onipotência adolescente, sempre julgávamos pegar a picada certa.
Dario tinha trazido uma bússola. Bertioga, segundo ele, estava a cinco graus ao sul de onde estávamos, assim tínhamos que pegar a trilha que seguia nesse rumo e seguir o curso de um córrego que, com toda certeza, ia desaguar na praia.
Passamos a noite abrigados em uma clareira aberta no meio da mata. Tínhamos visto em um filme que, para afastar cobras, aranhas e outros insetos venenosos, era bastante cercar os espaços onde a gente dorme com uma corda. Foi o que fizemos. Com uma fogueira no centro e os espaços delimitados pelas cordas, dormimos bem naquela noite, e no dia seguinte, bem de manhãzinha, recomeçamos a caminhada, seguindo o curso do riacho, que segundo a nossa sabedoria, iria desaguar no mar, ou pelo menos em outro curso de água, que com certeza, iria. Afinal, éramos sabidos, e uma das nossas sabedorias era que todo rio, um dia parar no mar.
Mas aquele rio, que hoje tem até nome (Sertãozinho), rolava em meio a despenhadeiros e precipícios que nós não tínhamos como acompanhar. Então tivemos que fazer vários desvios em meio á mata, sempre tentando acompanhar o curso dele. E quando o reencontrávamos de novo, quilômetros adiante, não tínhamos certeza se era o mesmo curso, pois ás vezes ele parecia maior, outras vezes menor. Mas nós éramos jovens e sabíamos tudo. E na nossa cabeça, estávamos, com certeza, indo para Bertioga.
Foi só no quarto dia de caminhada, quando a nossa comida já havia acabado, e as nossas forças praticamente exauridas, que tomamos consciência de que estávamos perdidos. Dário, em sua bússola, não sabia identificar mais se Bertioga estava ao sul ou ao norte, leste ou oeste. Se estávamos indo ou voltando. Nem onde estávamos ou para onde devíamos ir.
Foi então que bateu aquele desespero. Tudo que havíamos ouvido sobre pessoas que se perdem na mata, veio á nossa memória. Nesses momentos ninguém consegue pensar com racionalidade. Nossos corpos nunca seriam encontrados, como o daquele menino escoteiro que havia se perdido do grupo no ano passado, fato que ocupou as primeiras páginas dos jornais durante mais de um mês. Pensei no desgosto que estava dando aos meus pais. No desespero que eles deviam estar sentindo. No trabalho que estávamos dando ás pessoas, que naquele momento, deviam estar nos procurando.
E de certo estavam. Pois já faziam, pelas minhas contas, cinco dias que estávamos perdidos. Continuávamos seguindo o curso de algum riacho. Sempre na esperança de que ele nos levasse a algum lugar habitado. Mas sempre ele desaguava em outro riacho, que geralmente rolava em outra direção, contrária áquela que estávamos seguindo anteriormente.
 
Certamente teríamos morrido se não fosse aquele escoteiro. Nós o encontramos sentado em cima de uma enorme pedra, com um binóculo na mão. Sua indumentária mostrava que pertencia á alguma tropa, que sem dúvida havia sido mobilizada para nos procurar.
̶  Ainda bem que encontrei vocês ̶  disse ele, com uma cara de poucos amigos. ̶   Vocês causaram um verdadeiro reboliço na cidade. Seus pais estão desesperados com o sumiço de vocês. ̶  Não sabem que é perigoso se aventurar por essas trilhas sem guias preparados e equipamento apropriado?
Sim, nós sabíamos. Porém, quando se tem quinze anos, a vida é apenas uma brincadeira inconseqüente. Mas para aquele garoto, de faces pálidas e ar sisudo, vestido com aquele uniforme de escoteiro, parecia ser coisa muito séria. Ele não teria mais idade que nenhum de nós. Mas parecia tão adulto quanto meu pai. Olhava para nós como fôssemos um bando de criancinhas que acabou de fazer uma tremenda besteira.
Mas foi ele que nos tirou daquela mata e nos levou até um vilarejo, cerca de três horas dali. Nós o seguimos sem dizer palavra, como se fôssemos um bando de alunos envergonhados, seguindo um mestre- escola para a diretoria, depois de serem pegos fazendo uma sacanagem qualquer.
̶  Dali vocês podem pedir socorro  ̶  disse ele, apontando para o vilarejo.  ̶  Eu tenho que voltar para a minha tropa. Nunca mais façam isso. Você podiam ter morrido  ̶  completou, com aquele ar de professor, aplicando um corretivo em um aluno rebelde.
Estávamos tão cansados e envergonhados que nem pensamos em agradecer a ajuda que ele nos dera. Só Dario achou coragem para perguntar o nome dele.
̶  Eu me chamo Haroldo  ̶  disse ele, secamente. E se foi sem dizer mais nada.
 
Até hoje, mais de cinqüenta anos depois, sinto um arrepio na base da minha espinha, e os meus cabelos eriçam-se como fios de arame farpado quando me lembro desses fatos. Pois Haroldo, o ecoteiro Haroldinho, era o nome do garoto que havia se perdido naquelas matas no ano anterior á essa nossa aventura maluca. O corpo dele nunca foi encontrado, mas eu já ouvi de outras pessoas narrativas semelhantes á nossa. De pessoas que se perderam na mata e foram salvas por um escoteiro de faces pálidas, ar sisudo, que se identificava pelo nome de Haroldo.
Se for ele, o escoteiro perdido, cujo corpo nunca foi encontrado, que Deus o tenha. E que um dia alguém possa, finalmente, achar o seus restos mortais e lhe dar sepultura digna, para que ele não continue a ser, para sempre, uma alma penada, conhecida como o Fantasma do Escoteiro.