A Serra do Rio do Rastro - SC
Marcela tinha 25 anos quando resolveu abandonar sua rotina de universitária para se dedicar a uma "viagem de auto-ajuda", como ela mesmo dizia.
Fazia um mês que estava na estrada e seu pai ainda não se acostumara com a ideia. Ela o tranquilizava pelo celular, como fazia todas as manhãs. Convencê-lo, até agora, foi a parte mais difícil da viagem.
A jovem estava numa pousada em Santa Catarina. Foi até lá para conhecer a Serra do Rio do Rastro, onde a rodovia SC-390 desce a montanha num ziguezague audacioso e se estende até a costa. Em 12 Km de asfalto a altitude chega a variar algo em torno de 1100 metros. Fato que causa mal estar em alguns motoristas. "Umas das estradas mais impressionantes do Brasil" assim ela leu na revista, que a fez querer conhecer o lugar.
Marcela estava em Bom Jardim da Serra, bem próximo ao destino. Assim que desligou o telefone foi se arrumar e tomar café. Pretendia passar a manhã toda no mirante da serra tirando fotos e conversando com o pessoal.
Ela pagou a conta e se despediu da dona da pousada. Uma senhora agradável, que insistiu para a moça retornar no final do dia, deixaria um quarto reservado para ela. Marcela disse que iria dormir em algum lugar na praia, mesmo assim a senhora não desistiu. Tentou convence-la de que a subida da serra era a melhor parte do passeio. Enfim, depois de muita conversa, ficou certo da moça retornar a noite.
Ela saiu, fazia frio do lado fora, no entanto ela usava roupas largas esvoaçantes, multicoloridas. Era magra e bela de rosto, mas chamava a atenção pelo seu sorriso fácil e sua enorme simpatia. Parte de seu cabelo era enfeitado com linhas coloridas e pequenos adereços artesanais. Não usava maquiagem. Caminhava em direção ao carro carregando uma mochila grande.
O veículo ilustrava a boa condição de vida da garota. Uma grande caminhonete de cabine dupla, com motor turbo e tração 4x4. Toda preta, inclusive os vidros. Algumas pessoas olhavam surpresos quando a via entrando naquele carro. Ela se pôs a caminho da serra.
Chegou rapidamente ao mirante. O estacionamento estava praticamente vazio, mas o restaurante já funcionava. Estacionou atrás do estabelecimento. Ainda era cedo, apesar disso alguns turistas admiravam a densa neblina que cobria as montanhas. Ela vestiu roupas de frio e correu até lá. Ficou paralisada pela beleza da paisagem. Aos poucos o sol tomou o lugar do nevoeiro e a visão foi ficando cada vez mais impressionante.
Com o céu limpo, via-se o vale se abrindo em uma imensidão verde por quase 100 km a frente. Além, é claro, da famosa estrada que serpenteava a face da montanha, com várias curvas fechadíssimas. Era a visão do inacreditável. Depois de descer parte da serra de uma vez, a rodovia seguia num declive suave, até se perder de vista. Uma simples mureta era a única coisa entre os carros e o abismo. O movimento estava tranquilo. Ela se surpreendeu quando viu que em certas curvas os carros tinham que parar, para que caminhões conseguissem virar e continuar seu caminho.
Marcela foi até o carro e voltou com a câmera na mão. Ficou perto do beiral tirando fotos, primeiro com a câmera, depois com o celular. Ela se assustou quando um animal peludo saiu detrás do muro. Era um quati. Logo, vários deles apareceram farejando o ar, procurando o que comer. Uma pequena aglomeração se fez ao redor deles, depois de registra-los várias vezes, ela foi para o restaurante.
Ao entrar, sentiu o cheiro incisivo de pão quentinho, que a obrigou a comer novamente. Sentada ao balcão, via através das janelas, a movimentação aumentando rapidamente. Carros se abriam e famílias inteiras desciam para admirar a paisagem e, principalmente tirar fotos com os quatis. Muitas destas pessoas já desciam com alguma guloseima na mão, com intuito de atrai-los. Um funcionário insistia para que ninguém desse o de comer a eles, mas ninguém o ouvia.
Várias crianças se juntaram tentando se aproximar dos quatis, Marcela observava achando graça. Pela primeira vez reparou numa menina de vestido rodado. Ela estava perto das demais, porém não ligava para os bichos. Ia e vinha de um lado para o outro, e de vez enquando se debruçava no parapeito e admitava a paisagem desanimada, entediada.
Um grupo de quatro turistas entrou no restaurante, chamando sua atenção. Era uma grupo de São Paulo. Bastou um minuto para ela ter certeza. Não paravam de dizer "Mano". "É hora de socializar" pensou e foi até eles.
Fazia apenas um mês que estava na estrada, e já sentia falta do jeito paulistano de conversar. Falaram por quase duas horas seguidas. O grupo se despediu a convidando para ir ver as baleias Francas em Imbituba. Ela disse que iria mais tarde. Antes, queria fotografar o por do sol ali do mirante.
Lá fora o estacionamento estava repleto de carros e pessoas circulando para todo lado. Marcela gastou alguns minutos conversando com os funcionários do lugar, depois saiu. Foi tirar mais fotos, agora tinha que disputar espaço com os turistas e tomar cuidado com os quatis.
O sol iluminava lindamente a paisagem, o céu azul era a cereja do bolo. O dia foi passando e as pessoas também. Depois da hora do almoço Marcela se viu sozinha no mirante. Olhava as fotos que havia tirado pela manhã, quando ouviu passos atrás de si. Ao se virar viu a mesma menina de antes, de vestido rodado. Ela caminhava de cabeça baixa, de um lado para o outro, como se a Marcela não estivesse ali.
- Oi. - Disse se abaixando para encara-la.
A menina pareceu se assustar, parou e ergueu o olhar surpresa.
- Eu me chamo Marcela. E você?
A criança tinha a pele clara, os cabelos negros e lissos, um laço branco, da mesma cor do vestido preso no alto da cabeça e usava sapatos sociais pretos.
- Oi. - Ela respondeu timidamente.
A jovem se encantou com a timidez da criança.
- Você está aqui sozinha? Cadê sua mãe? - Perguntou com o seu melhor sorriso.
- Mamãe?... Tá lá. - Disse apontando para o horizonte a frente. - Nos ia na praia...
- Ela te esqueceu !? Meu Deus !!! - Marcela levou as mãos ao rosto.
A menina a olhou por um momento e depois disse que sim com a cabeça.
A moça se perguntava o que poderia fazer. Estava sempre disposta a ajudar.
- Você está com fome? - Perguntou.
A menina respondeu sacudindo negativamente a cabeça.
- Vamos com a tia ali no restaurante pra ver o que nos podemos fazer... - Disse se levantando e esticando a mão para a criança. Esta colocou os dois braços para trás e sacudiu novamente a cabeça negando. - Vamos com a tia... Eu compro doce pra nós. - Insistiu, inutilmente. - Então não sai dai tá bom!
Eu já volto. - Disse saindo correndo.
O restaurante não estava cheio, mas todos os funcionários estavam ocupados demais para dar atenção a ela. Tinham que deixar tudo pronto para a próxima "onda de turistas".
Marcela abordou o dono do estabelecimento, um idoso mal encarado. Era o único que estava parado. Ele contabilizava as notas do caixa. Ela falou sobre a menina esquecida, apontando em sua direção. O velho não fez questão de acompanhar seu dedo só respondeu asperamente, "Não é dá minha conta menina. Chame a polícia!". Irritada com a indiferença, voltou até a menina discando para a polícia.
Durante a ligação foi orientada a esperar uma viatura no local. Ou se caso ela fosse até a costa poderia deixa-la na própria delegacia. Lugar onde as crianças que se perdem na praia, são levadas.
Resolveu descer a serra então. Sua preocupação agora era como convencer a criança a entrar no carro com ela.
- Mocinha.... - Se abaixou novamente para olha-la nos olhos. - Eu falei com a polícia. Eles disseram que sua mãe vai te esperar na delegacia, lá embaixo. - A menina continuava sem reação nenhuma. - Você iria comigo até lá? - Perguntou incerta, apontando o horizonte.
- Siiimm. - Menina se animou instantâneamente. Abriu um riso encantador .
- Que bom ! - A envolveu num abraço. - Nossa você está gelada. Tome aqui... - Disse enrolando sua blusa nela.
Se levantou e foram de mãos dadas em direção ao carro. Um casal de turistas que assistiu toda a cena, olhavam desconfiados para Marcela.
- Moça ... Tá tudo bem aí? - Um dos rapazes disse se aproximando por trás dela.
- E por que não estaria? - Marcela se virou mal-humorada.
- Não, é que...
- Por que sou negra e você acha que estou roubando a criança branca. É isso? - Marcela estava acostumada a ser abordada por causa de sua cor. A muito tempo deixou de tolerar isso. Não se sentia minimamente obrigada a dar explicações por ser uma mulher negra segurando a mão de uma criança branca, independente da estranheza que isso podia causar em algumas pessoas.
- Que isso, Imagine!? Eu só ... - O rapaz tentava se explicar.
- Vai cuidar da sua vida! - Ela disse dando fim a conversa. Se virou e saiu. Infelizmente não tinha tempo de lhe dar uma boa lição de moral como gostava de fazer com preconceituosos.
- Nossa, não precisa ser grossa... - O rapaz disse ficando vermelho, seu companheiro tapava a boca assustado, sem entender o que estava acontecendo.
Ao chegar no carro Marcela percebeu que a menina estava sem a blusa. Na hora se envergonhou por ter sido rude com o rapaz, talvez ele só queria devolver-lhe a roupa. Prendeu a criança no banco da frente, já que atrás estava cheio de bagunça. Entrou no carro e deu a partida. Passou pelo casal e confirmou seu vexame. Sua blusa estava na mão de um deles, um calor tomou seu rosto. Neste momento ela agradeceu a escuridão dos vidros. Respirou fundo e entrou na SC-390, em direção a costa.
- Mulher louca... - O jovem desabafava.
No carro, Marcela dirigia com cuidado. Tinha bastante experiência no volante, mas aquela estrada merecia toda a sua cautela. Não havia carro na sua frente mesmo assim ia devagar. Estava tensa, principalmente no começo da descida, quando fazia as curvas mais fechadas e o carro ficava de frente daquele mar de árvores lá em baixo. A criança estava parada feito estatua no banco do passageiro, ainda sorrindo.
- Você não tá com medo? - Marcela perguntou. Tentando aliviar um pouco de tensão.
A menina ficou em silêncio. Marcela a olhou de relance e ao ver o sorriso paralisado em seu rosto, achou que tudo estava bem.
O carro estava chegando na última curva do ziguezague, a motorista estava quase relaxada, a pior parte estava ficando para trás. Até que, no meio da curva, veio um carro em alta velocidade quase que na contra mão. Ela se assustou e pisou no freio. Seu carro parou de imediato. Passado o susto, ela buzinou e gritou palavrões antes de seguir viagem.
Marcela resmungava nervosa. Por um momento esqueceu da menina ao seu lado. O carro estava na parte mais tranquila da rodovia, apesar da descida constante, as curvas eram suaves.
- Você está bem ? - A menina nada disse, parecia uma boneca com o sorriso colado no rosto. - Você não vai me falar nem o seu nome? - Ela sorria e encarava o parabrisas fixamente. - Não vai falar com a tia? Marcela a olhou pela terceira vez e percebeu que ela não mudava sua expressão. Pela primeira vez a moça achou que havia algo de errado. Deu um toque em seu braço. - Menina!? Fala comigo!
- Tá chegando tia. - A menina saltou no assento feliz. - A mamãe tá ali.
Se não fosse o riso sinistro em seu rosto Marcela estaria mais tranquila com sua fala. Mas ao contrário, estava tensa. Dessa vez foi ela que ficou em silêncio.
Não conseguia mais se concentrar na estrada, tentava encarar o rosto da criança. Sua boca se esticava num sorriso estranho, cada vez maior. Estava assustada, não sabia se acelerava ou parava de uma vez ali mesmo, só queria acabar com aquela carona o mais rápido possível. O veículo descia rápido.
A menina não tirava os olhos do parabrisas, murmurava "tá chegando, tá chegando." sem parar.
- ALI! - A menina gritou assustando a motorista. Ela apontava o abismo a frente. Marcela não entendeu. - ALI, TIA. MAMÃE TA ALI!! - Os berros da criança angustiava profundamente a moça que se desesperou.
- Calma fia... Estamos chegando... - Tentou argumentar, mas era tarde demais.
A criança ficou de pé no banco e agarrou o volante com uma das mãos ainda olhando para frente. Por mais forte que Marcela segurou a direção, não foi o suficiente, a menina virou o volante de uma só vez e o carro passou sobre a mureta. Voou abismo abaixo, capotando por entre as árvores.
Já era madrugada quando dois socorristas conseguiram avistar o carro no fundo do abismo. Cada um tinha uma lanterna na mão e outra no capacete.
- Mas que tragédia rapaz ! - Um deles falou quando viu o carro completamente destruído. - E foi por aqui que aconteceu aquele acidente que o Pedro conta hein.
- É, esse trecho é perigoso né. - O outro respondeu. Era bem mais jovem. - Os cara mete o pé pensando que acabou as curva, aí dá nisso.
Seguiam a trilha de destruição. Várias árvores menores estavam no chão, além de vários objetos da moça, que se espalharam pela área enquanto o carro capotava várias vezes.
- Rapaz, foi feio hein? - Disse o mais velho clareando a lataria.
Cada um avançou por um lado do carro.
- Base tá na escuta? Infelizmente, temos uma vítima fatal no local. - O mais velho disse pelo rádio, depois de uma rápida inspeção do lado esquerdo.
O corpo de Marcela estava inclinado sobre a direção.
- Pelo menos sobrou um vidro. - O jovem disse quando inspecionou o lado direito e viu a janela do passageiro inteira. Ao abrir a porta, a luz interna se acendeu. Ele se assustou com os olhos arregalados da vítima em sua direção. Seu rosto estava desfigurado pelos destroços.
- Eai Guto... vamos por a moça na maca ? - O mais velho disse caminhando para a frente do carro.
Passado o susto, Guto observou o interior do veículo curioso.
- Parece que o lado do passageiro está intacto né? Já viu estilhaçar só metade do vidro Jonas? - Perguntou ao ver que o lado direito do parabrisas estava perfeito. Sentiu um calafrio.
- Nem tinha reparado. - Jonas respondeu sem dar muito importância.
- Olha o banco do passageiro ... está limpinho, e o cinto... tá na trava. - Guto estava assustado.
- Rapaz, você não é perito não! Vamos trabalhar homem.
Guto bateu a porta e foi até parceiro iluminando a frente. Parou no segundo passo sobressaltado.
- Meu Deus do céu, o que que é aquilo Jonas?
- Ave Maria. - Jonas disse fazendo o sinal da crus ao se virar e ver que a luz
clareava uma velha crus de madeira fincada no chão, a poucos metros do carro. Estava quase que completamente escondida pela vegetação. - Só pode ser daquele acidente que o Pedro contou..
- É nada. Só tem uma cruz. Ele me disse que foi duas vítimas...
- Sim, foi duas. Mas uma já tava morta e criança morreu chegando no hospital. Que Deus a tenha - Disse levantando as mãos.
Guto fez o sinal da cruz e imitou seu parceiro:
- Que Deus a tenha!
Deus não a tinha. Na verdade ela estava ali, encarando os dois. Mesmo que eles não pudessem ve-la.