A PÁ
Pelas lentes dos meus olhos velhos que deixaram de enxergar
A chuva cai embaçando minha visão
O céu está cinza como a alma
Caminho lentamente sob minhas pernas de pau
Tento me equilibrar no chão lamacento
Retiro meu paletó de concreto
Desfaço o nó da gravata que me sufoca
Retiro a poeira da cadeira onde costumo sentar todos os dias
A coloco na varanda de casa
E como de costume eu observo a chuva de pássaros mortos caírem do céu
Contemplo o horizonte vermelho devorar os sorrisos e os sonhos
Passo um pano macio para dar um pouco de brilho em minha pele de madeira
Reforço os parafusos e os pregos da cada junta do meu corpo endurecido e mofado
Sento com dificuldade em minha cadeira
Retiro do bolso da calça uma foto antiga
Na foto eu vejo um coração ensangüentado que já batera forte uma vez
A imagem se incendeia em minhas mãos
Jogo a foto no chão e piso nela com força
Salamandras dançam por entre as chamas bem na minha frente
Cantam uma canção erótica
Um corvo negro de olhos vermelhos pouso ao meu lado
Observando meus movimentos doentios
Um nevoeiro esverdeado cobre o campo
No meio do nevoeiro surge uma criança envelhecida
Seu corpo está sujo de sangue
Ela se senta em minha frente com sua bengalinha antiga
E me pergunta: - ‘’Quando foi que você se tornou um boneco de madeira’’?
Respondo que não me lembro mais do dia
Ela se retira, caminha com certa dificuldade de volta para o nevoeiro
Bebo meu copo de veneno
Devoro um belo prato de algodão sujo
Uma jovem mulher nua surge do nevoeiro
Segurando uma arma apontada em minha direção
Ela arranca sua mandíbula e a joga em minha direção
Sua língua rosada fica dependurada em seu pescoço
O sangue escorre se misturando com sua saliva cristalina
Ela se aproxima, dou lhe um beijo saboroso
Apaixonamos-nos por cinco segundos e ela cai morta em meus braços
Não deu nem tempo de fazermos amor
Meu pênis de madeira cai no chão
Fico enfurecido
Corro para dentro de casa
Duas vacas azuladas pastam no teto da cozinha
No canto da sala a velha pá me chama
Seguro-a em minhas mãos
Vou para o lado de fora de casa
Sempre no mesmo lugar
Todos os dias sem cessar
Olho para o buraco que estou cavando
Tornamos-nos muito íntimos
Sento na beirada para conversar com ele sobre o meu dia a dia
E ele nunca me responde nada
Acabei fazendo amizade com minha velha pá também
Sempre conto meus segredos para ela
E ela nunca me respondeu nada até hoje
Amizade verdadeira
Às vezes me deito no buraco para descansar um pouco
Sou acordado pelos ruídos do coral das latrinas cantoras
Lembro-me de correr para cuidar da minha plantação de dentes
Já colhi belos molares e enormes dentes do siso, até já fui agraciado com alguns caninos brilhantes
E todos os dias são iguais
Corro para o meu buraco
Jamais o abandonarei
E nem a minha velha pá
E como prometido... Acordo do meu sono, estou deitado em meu velho buraco
Vejo minha amiga lá em cima, despejando a terra úmida em meu corpo de madeira
Minha velha pá cumprindo a sua promessa