Ninho das Pedras _ DTRL 30
 
 
               Meu sonho sempre foi possuir um pedaço de chão só meu e Vicente conseguiu a oportunidade de realizá-lo. Ele arrematou por uma bagatela umas terras na Serra do Forno. Nem nos preocupamos em saber por que estavam sendo leiloadas pelo governo, com certeza foram dívidas. Decidimos manter o nome estranho com que batizaram o sítio — Ninho das Pedras — desde quando pedras fazem ninho? No mês passado meu marido esteve na propriedade, absolutamente deteriorada, o abandono se misturando ao lixo. O mato tinha quase um metro de altura, caíra uma parede da casa, faltavam batentes em portas e janelas, tijolos estavam expostos e uma casa de marimbondos ameaçava a entrada.
 
               — Não se preocupe, vou dar uma primeira organizada, ver goteiras. Uma boa limpeza já resolve muita coisa. Nas férias, terminamos. Vamos nos divertir. — da cidadezinha próxima, Vicente me telefonou. E, concluiu dizendo que difícil estava conseguir mão de obra:

               —
Acho que é medo de não receber!
 
***
              
               Júnior e Guilherme durante toda viagem se queixaram da “chatice” e da conversa “mole”; não queriam sair de São Paulo, onde teriam muitos "programas”.  Aninha dormiu quase todo o trajeto e quando acordava era para perguntar “já chegou?”. O que presenciei ao descer do carro ia muito além das minhas expectativas.
 
               Sorri encantada. Havia examinado as fotos, exigia de meu marido descrições detalhadas, todas as noites depois do regresso e durante a viagem até o “Ninho”. Era uma fazenda antiga com resquícios de tempos de fartura, ruínas de terreiros, jardins e pomares. O casarão contava com mais de quinhentos metros quadrados, mantinha o estilo colonial do início do século, sem o luxo conhecido hoje, mas com toda a pompa que se permitia na época em que foi construído.
 
               — Olha aí, Vera! Vai conseguir dar ordem nisso aí? Já havia pensado em ser dona de um museu? — Vicente olhava os arredores, reavaliando o negócio fechado sem que tivesse pensado muito.
 
               Fui entrando no meu “palácio”: salão de visitas, o de refeições, que terminava na gigantesca área de serviço com cozinha e despensa; achamos engraçado, sem pensar no desconforto, que o único banheiro na casa era enorme e com porta saindo aí, na cozinha.
 
               Vicente, nos fundos, procurou a portinhola de acesso ao porão e nos chamava com insistência para ver o quanto era diferente de tudo o que conhecíamos. O chão de pedra estava escorregadio e mesmo no lusco-fusco podíamos distinguir que ali acomodavam ferramentas e trastes velhos.
 
               — Parece não ter a mesma extensão de toda a casa, é menor... — observou Guilherme.
 
               Uma apreensão tomou conta de mim. Não foi só a observação de meu filho; o ambiente de umidade e sombras, talvez... Disfarcei o mal-estar, mas o aperto no peito dava-me uma espécie de sufocamento. Nunca uma sensação havia dominado o meu corpo daquela forma. Sem compreender a origem desta agitação, voltei rapidamente para a casa, com a desculpa de que não visitara ainda o restante dos cômodos. Os outros me seguiram tagarelando, absortos com as novidades, sem notarem o meu transtorno.
 
               Voltei às salas que eram ladeadas pelos dormitórios. A madeira antiga rangia ainda me provocando calafrios. Mas, não podia deixar nada estragar aquele dia. A mobília em madeira de lei precisaria de uma restauração cuidadosa — mesas, cadeiras, uma cristaleira, camas, penteadeiras, guarda-roupas, o oratório; um acervo, para mim, inestimável. Todos os cômodos tinham janelões. Imaginei os antigos fazendeiros fiscalizando o trabalho de escravos sujeitos ao humor do sol, do vento e da chuva, como um feudo.
 
               — O que esperar desta casa? Tem que ter uma boa assombração. _ Júnior se divertia notando o susto da irmã, alimentando, sem saber, os meus pressentimentos.
 
               A excitação era intensa. Somente eu e Vicente dividimos o mesmo quarto. Nossos filhos ficaram entusiasmados em cada um ter o seu próprio, o que era impossível no nosso apartamento. Assim nos acomodamos.
 
               Uma rotina se estabeleceu logo na primeira semana; apesar das mudanças, a família foi capaz de conservar-se, na essência, imutável. Naquele final da manhã, Vicente e os garotos exploravam os arredores da casa, Aninha brincava no quarto ao lado da saleta, onde eu encerava o assoalho. Ia-me tornando íntima da casa, penetrando seu impassível reino. Arrastei a pesada mesa, retirei o grosso tapete de tear debaixo dela, quando senti uma pequena corrente de ar entre as frestas das tábuas, fui pisoteando o trecho até ouvir um som oco. Percebi um tampo. Aquilo me desafiava, não conseguia movê-lo, por mais força que fizesse. Busquei a janela mais próxima e gritei pelos homens.
 
                Atingiu-nos um turbilhão de escuridão e medo, um fedor insuportável se alastrou quando a alavanca entreabriu um alçapão.
 
               — Ponha a lanterna aqui! — Vicente tomou a dianteira pisando com cuidado as travessas afastadas da tosca escadinha roliça, afastando teias de aranha. Apesar da recomendação contrária, todos o seguimos, os corpos pesados, com movimentos que vinham de longe, desgastados pelo esforço com o tampão ou temerosos pelo oculto. Não havia pânico, mas nenhum de nós queria se afastar. O fundo parecia tão fundo...
 
               Vultos emergiam das sombras, móbil mancha branca tocava imaterialmente o chão. As mentes escorregavam em direção a uma zona nebulosa, previam ânsia e dor. Quando o círculo trêmulo de luz penetrou sob o assoalho, o imprevisível foi vislumbrado. O cenário era inesperado, truculento.
 
               A cama grosseira, coberta por um pano roto e imundo carregava um escuso esqueleto humano. As órbitas vazias miravam o nada, mas senti como se um quente "olhar-sem olhos” varasse-me, perscrutante... um olhar mendigo de censura e súplica.
 
                        A angústia delineava cada rosto dos passivos expectadores daquele mistério. Petrificados, olhos faiscantes diante de um argumento sem réplica. Comecei a suar, não raciocinava com clareza e, interrogativa, olhava o cubículo como de uma janela à distância, perplexa pelo contato com o fogo, inflamável e sedutor.
 
               — Não mexam em nada. Vou chamar a polícia. Vamos subir... Que cheiro! — Vicente, nervoso, quebrou o assombramento.
 
                — Que nojo! — disse Ana, com a sinceridade infantil, mesmo assustada com a cena grotesca. Tão somente neste instante me dei conta que não devia ter deixado a caçulinha nos acompanhar.
 
                Delegado e detetives vieram como uma forte ventania levantando poeira e folhas secas; processaram tudo, colheram materiais, levaram a ossatura para o necrotério, fotografaram cada canto, alinharam um milhão de suspeições. Voltaram alguns dias depois, em que ficamos ponderando quais atitudes tomar; ainda com respostas insatisfatórias: o esqueleto seria do sexo feminino, com aproximadamente dezesseis anos de idade. Estaria “enterrado” há cerca de trinta anos; não havia como identificar quem era, não havia registros de sumiços nos arredores, para supor que o maluco sequestrara alguém que mantivera em cativeiro; os indícios levavam a essa suposição, porém não havia provas. Quem sabe com o tempo e novas tecnologias?A única pessoa desaparecida, na época era a irmã do antigo proprietário; a ossada não poderia ser dela, pois Guida Siqueira seria oito centímetros mais alta, segundo os registros do Posto de Saúde e, pelo que se sabia a mulher nunca voltara ao município, nem para reivindicar as terras após a morte do irmão. A polícia conseguiu rastrear o seu destino até certa época, depois não havia mais notícias. Relapso das autoridades?
 
               Joaquim Siqueira cometera suicídio. Foi encontrado por outro morador da região, enforcado nos galhos de uma árvore na estrada. Ninguém quis comprar a propriedade, diziam que era amaldiçoada. Leilões públicos, por anos e nenhum interessado; todos do lugar se espantaram quando compramos a fazendola.
 
                 Liberado o casarão, Vicente conseguiu trabalhadores para destruir as paredes que fechavam o cubículo, onde a jovem estivera aprisionada. O porão ficaria livre, a normalidade voltaria depois do achado sinistro. Por que, então, meu desespero sem tamanho? O sítio era ideia minha, não podia desistir dele, no entanto algo me incomodava profundamente. Guardava toda a perturbação para mim mesma, lutava contra o mal que ia me dominando... O alçapão me atraía, lá embaixo havia um vazio que assustava e oprimia.
 
               Os pedreiros viriam no dia seguinte, Vicente e os filhos mexiam na horta. Experimentei o peito, respirei, caminhei firme, pisei o medo. Uma coisa grossa por dentro, querendo correr infinita distância até o cansaço. Ergui a portinhola e avancei. Acompanhava-me de uma legião de mágoas, a cada degrau titubeava... De repente, foram aparecendo crateras, fez-se um espaço para mim; dois espaços, um para os olhos arredios do chão, outro para os pés voláteis. Virei pedra.
 
***
 
               A escuridão me inutilizara por um momento de plena paralisia. Minha cabeça doía. Sentia o suor escorrer, a respiração difícil, o ar denso, duro, pequenos espasmos nas mãos frias, muito frias. Aos poucos, meus olhos foram se acostumando... Em susto percebi — era EU naquele catre miserável, EU mesma subsistindo em outra vida. Outra alma veio se aninhando no meu aconchego e fui ressurgindo na história dela:
 
                  Sombras preenchiam todo espaço visível com borrões de silhuetas vagantes e eu não conseguia discernir quem era quem. Como por automatismo, as imagens iam ficando cada vez mais nítidas:
 
                Na imundície do chiqueiro, morria o velho estúpido. A mulher entrevada foi ficando, na espera de gestos. O rapaz implorou para a mocinha não ir, sozinho não daria conta do cuidar, dinheiro estava escasso e desfazer das terras, nunca. Não havia brilho no sol, juventude e ânimo escoavam. Não pôde retê-la...  
 
               A evidência esmagadora do tempo levou a velha mãe. A moça veio grávida; queria sua parte. Um close fixou um rosto estarrecido e depois um corpo caindo e desprendendo um uivo desesperado e interminável. Sem rastos, o irmão a enterrou sob a pedra grande. 
 
               Apenas fachos de luzes esparsas mostraram-me a criança em semivida ali, indefesa, sem carinho, sem civilidade, um bicho.  Mal falava.  Uma força que desconformava, que impelia a ser. Uma existência de pedra disforme. Só ela e o tio, que a escondeu do mundo, uma existência de rituais controladores.
 
               — Minha flor, Guida voltou para trazer você para mim. Minha... Minha... — naquele pesadelo, eu podia ouvir as palavras insistentes, doentias. Sentia a possessão desfigurante.
            
               Secreta paixão — o corpo crescendo esguio e belo, a tez morena. Todo um cenário móvel se construindo em luz: braços em movimento, pernas em passo de dança, lábios coloridos e longos cabelos encaracolados. Os desejos foram nascendo e tomando forma.
 
                A mocinha chorou mostrando para o tio o sangue que lhe brotava entre as coxas. O patife gargalhou dizendo que chegara a hora. Sem responder perguntas, pegou-a pela cintura e a colocou, acuada, de rosto contra a parede. Uma dor dupla e profunda a atingiu quando ele a puxou pelo cabelo e a penetrou rudemente. Era um vulcão que eclodia. O colchão manchado de rosado, misto de gozo e sangue. Uma angústia seca estala inquieta; meu corpo-fantasma sofria junto, latejante. Toquei a vagina para checar o estrago, o sangue se alastrou por meus dedos...  Não sabia se estava vivendo o dia ou a noite. Alguém falou comigo e eu respondi do outro mundo?
 
               Eu ganhara prolongamentos seguindo um caminho paralelo ao meu. A violência nos consumia. Em volta num imenso círculo silencioso, as órbitas vazias me compeliam a integrar um ritual derradeiro de uma cadeia irremediável a se cumprir.
 
               A estradinha se abria à frente do casarão, mas o que haveria depois de curva? Acuada, a menina desejava escapar, dividida entre dois medos cortantes. Era não pensar e correr, aproveitando o sono do bruto.  Porém, qual um pássaro com as asas atrofiadas, ela logo foi detida. Não sairia mais do cubículo, em confinamento inarredável. Veio uma gestação; o pai sufocou o menino logo ao nascer. A ignorância trouxe fraqueza, sujeira, infecção e o fim...  O homem desceu o tampo cerrando a tumba; ficou no vácuo, atordoado com a ausência insubstituível. A única solução vislumbrada na dor foi a corda na árvore. Os olhos abertos desnudavam o horror.
 
***
              
               Meu corpo doía em cada centímetro, a cabeça latejava... A claridade incomodava e lenta fui abrindo os olhos. A visão continuava turva, assim como meus pensamentos que não discerniam claramente o presente. Havia movimento de outras pessoas ao derredor. Um aspecto familiar veio se esboçando.
 
               Estava num quarto de hospital, ligada ao soro. A família, sem detença, veio com explicações: quando entraram para o almoço é que deram pela minha falta, procuram aqui e ali e me encontraram caída no porão.  Por quê? O que tinha que fazer naquele lugar medonho?
 
               Era minha vez... As lembranças vieram incrivelmente claras, embora tiradas de pouca matéria. A jovem nem recebera um nome, não tinha identidade. Meu ser se inflamava de ira e furor por uma retaliação impossível. Vivi um plano temporal paralelo. Minha jornada serviu para me mostrar que a consciência existe além do corpo, e mais rica fora dele.  “Minha” conseguira uma maneira de fazer o mundo conhecer a sua existência.
 
               — Foi um pesadelo!  Sempre houve alguns boatos e medo em relação àquela família, mas essa história é demais. — o Delegado mandou-me para casa, descansar. Orientou que procurássemos um religioso que benzesse o local, que fizesse um enterro decente para a vítima. Poderíamos até batizar a menina, que eu sonhasse com ela mais uma vez e lhe perguntasse que nome ia querer.
 
               Não me conformei. Nem Vicente ou os meninos. Tão logo voltei para o sítio, escalamos até o local que fui identificando. Munidos de enxadas, que pouco sabiam manusear, Guilherme, Júnior e Vicente, alternavam a cavação.  Revolveram o solo endurecido por algumas horas. Deveriam ter cuidado e atenção, mas acabou dando certo: primeiro foi desenterrado o pequenino envolto em plástico e, depois de mais canseira, a outra ossada. Eram as provas exigidas pelas autoridades.
 
                Todo o relato foi considerado coerente e registrado, depois dos exames laboratoriais positivos. As ossaturas ficaram no cemitério da cidade. No cartório foi realizado um registro-óbito, em que a jovem foi chamada Cristina. Apenas escolhi um nome, não mais sonhei com ela. As reformas necessárias foram feitas no casarão e plantei roseiras ao pé da pedra grande. As manhãs ressurgiriam ao silêncio das coisas, sem sustos e crispações.  O “Ninho” seria um lar para a família e as pedras haveriam de permanecer inertes...