O ESTRANHO MEDALHÃO

A casa fora construída num local alto de onde se poderia ter uma visão distante por todos os lados, inclusive boa parte da cidade com seu único prédio de cinco andares. Helena olha pela janela da cozinha, o grande quintal que mandara, em parte, gramar, facilitando a limpeza e que Emília pudesse brincar com Boris, seu cão de estimação. Um pouco mais ao fundo, uma área cercada, um portão de madeira dando acesso ao pomar. Inclinando um pouco mais, aproximando-se da janela, olhando pra esquerda, ela vê uma pequena lagoa, alimentada por uma mina pouco acima, sendo escoado pelo outro lado, por uma galeria sob o asfalto da rua. Estava naquela casa há pouco mais de seis meses, e gostava de pescar naquela lagoa, sem muito sucesso, mais como divertimento entre ela e a filha de sete anos, do que interesse pelos peixes, mas pensava colocar ali alguns alevinos e cevar com ração, atraindo outros peixes. Pouco além desta lagoa, ela vê a cerca que limita sua chácara, próximo a um conjunto habitacional, distante trezentos metros. Olhando para a direita, o galpão que ficava sempre fechado com um cadeado, contendo alguns móveis e outros pertences da antiga dona do local. Raramente ia ali.

Acabara de preparar o café da manhã, tendo a mesa pronta, sobe para o andar de cima, indo ao quarto de Emília, apressá-la para que não perdesse a hora de ir para o colégio. A van passaria em aproximadamente quinze minutos.

Pouco depois, acompanhada pelo olhar atento da mãe, Emília corre descendo pelos cinquenta metros que separa a casa da avenida e que leva ao bairro Gameleiras. A van escolar já se aproximava.

Helena era artesã, gostava de trabalhar com argila e era uma das sócias de uma lojinha de artesanato no centro da cidade. Estavam no início de inverno e ainda se recuperava de uma forte gripe, não se sentia bem, já era sexta-feira e avisara às sócias que não iria à loja naquela semana. Nem mesmo prepararia o almoço daquele dia. Logo após a saída de Emília, ela liga pra Cantina da Mama e pede lasanha, frango frito e salada, e que fosse entregue por volta de meio-dia.

Senta-se na varanda dos fundos da casa, com vista para o pomar, coloca os pés sobre a mureta à frente e começa a ler “A Menina Que Roubava Livros” de Markus Zusak. Havia assistido ao filme com Emília, mas gostava mesmo era da leitura, de onde “aproveitava” mais da narrativa.

Passou um bom tempo lendo. Vez ou outra levantava os olhos e observava Boris brincando no quintal, correndo prá cá e prá lá, latindo atrás de um pássaro ou uma borboleta, mordendo a mangueira que irrigava o jardim e, que ela esquecera-se de recolher. Ela passa um bom tempo lendo até que se lembra de Boris. Percorre com o olhar todo o quintal até encontrá-lo a poucos metros do galpão, de frente pra ele, sentado nas patas traseiras, orelhas em pé, praticamente imóvel e com olhar fixo na porta. Ela observa por um instante e o chama pelo nome. Ele continua imóvel.

- Boris! – chama pela segunda vez.

E vira a cabeça na direção dela por um segundo e volta a encarar a porta do galpão. Ela fica imaginando o que ele notara de tão interessante ali. Talvez um rato ou um gambá... Ou uma cobra. Ao pensar nesta possibilidade ela acha melhor ir dar uma olhada. Emília voltaria dali a pouco pro almoço. Precisava ter certeza de não haver nenhum perigo por ali, quando ela saísse pra brincar com Boris na parte da tarde.

Ela deixa o livro sobre a cadeira, pega a chave do galpão que estava pendurada atrás da porta da cozinha, pega um rastelo do lado de fora da varanda e vai até o cão.

- O que foi Boris? – pergunta de forma suave, tentando entender o que se passava – Tem alguma coisa ali?

Ele abaixa as orelhas e vira a cabeça na direção dela. Ela o afaga por um instante. Levanta-se e aproxima-se do galpão. Sempre atenta a qualquer bicho que porventura estivesse por ali. Boris abaixa o corpo apoiando a cabeça sobre as patas dianteiras. Ela o chama:

- Boris. Venha.

Ele vai até ela, com o rabo entre as pernas e orelhas baixas. Ela abre a porta e, sempre atenta, entra devagar, atenta a qualquer movimento. A lâmpada estava queimada já há bastante tempo e ela nunca se preocupou em trocar. Empurra uma caixa ao lado com o rastelo. Boris entra com ela, porem ficando na retaguarda.

- O que foi, Boris? De que você está com medo? Não há nada aqui.

Ele olhava em diversas direções, demonstrando não ter interesse por nada ali. Havia uma mesa num canto, perto da janela de vidro, com uma caixa em cima. Ao fundo uma prateleira, com malas velhas, outras caixas. No outro canto uma cômoda que ela já havia aberto antes e constatara ter cadernos de anotações, antigos, misturado com roupas velhas que ela supôs ser da antiga dona da propriedade. Um lampião a gás, pendurado num suporte na parede oposta e... Poeira por todo lado.

- Acabo de me curar de uma gripe forte – diz pra si mesma – e com toda essa sujeira é melhor não mexer com nada por aqui... Pelo menos não hoje. Melhor sair daqui.

Ela se vira pra sair e vê que Boris voltara à posição em que estava lá fora. Desta vez, observando atento a caixa sobre a mesa. Ela vai até lá, olha em volta dela e decide colocá-la no chão pra ver o que tem dentro. Agarra a caixa e ao puxá-la, arrasta junto um medalhão que estava por baixo. Assim que ele cai no chão Boris se põe de pé e começa a latir, agitando-se de um lado e outro mas sem se aproximar. Ela coloca a caixa de volta na mesa e pega o objeto.

- Ora, Boris. É apenas um medalhão. Não precisa ter medo.

Era um medalhão preso em uma corrente prateada. Em uma das faces, desenho de um triângulo equilátero, e no seu interior a figura em alto relevo do que parecia ser uma pessoa sem rosto. Ela vira o medalhão e deste lado, três círculos em alto relevo, mais próximos da borda e no meio a figura de uma fogueira com algo sendo queimado, que ela não pode identificar o que era. “Que figura estranha” – pensa. O cão continuava a latir.

- Quieto, Boris! Vamos sair daqui.

Ao saírem, de longe, ela percebe a chegada do entregador da Cantina da Mama. Apenas encosta a porta, sem trancá-la. Ela entra em casa pela cozinha e coloca o medalhão sobre a geladeira. Boris fica na varanda. Helena passa pela sala e pega o dinheiro pra fazer o pagamento pela encomenda.

Está colocando a mesa quando ouve Boris latir e sair correndo pra frente da casa, indo de encontro a Emília. “Bem na hora” – pensa Helena.

Emília entra correndo em casa, seguido por Boris, jogando a mochila na sala e indo direto pra cozinha. Boris a segue até a entrada da cozinha e para, gane e volta correndo para a porta da sala, esfregando a pata nela, querendo sair. Emília também volta:

- O que foi Boris? Quer fazer xixi?

Ela abre a porta e ele sai correndo, contornando a casa até a varanda da cozinha.

Durante o almoço Emília conta como foi seu dia na escola. Helena sorri da empolgação da filha. Terminam de almoçar e, juntas, lavam a louça.

A porta da cozinha estava aberta e Emília vê Boris, sentado do lado de fora, olhando pra elas. A garota vai até ele e lhe faz um afago, mas ele parece indiferente. Normalmente era receptivo, agitava-se todo, pronto pra brincar com a amiga. Naquele momento ele parecia triste.

- O que está havendo com o Boris, mamãe? Ele parece meio estranho.

- Não sei. Ele esta bem pela manhã. Depois cismou com alguma coisa no galpão velho.

- Será que algum bicho “mordeu ele”?

- Acredito que não. Porque não o leva pra brincar no quintal. Talvez ele se anime um pouco.

Emília chama seu amigo que a acompanha. Dali a pouco estavam brincando por ali, como se nada tivesse acontecido. Helena olha pela janela e vê os dois. Olha pro galpão e lembra-se do medalhão. Pega e examina-o novamente ambos os lados. “Na segunda-feira, quando for à cidade pergunto pra alguém sobre o significado destes símbolos”. Coloca sobre sua bolsa pra não esquecer e volta pra varanda dos fundos pra continuar a ler o livro e ficar de olho em Emília.

Cearam cedo, ali pelas sete horas, e lá pelas nove decidem ir dormir. Helena também deitaria cedo também. Queria revigorar as forças, recuperando-se da gripe. Diz pra Emília ir escovar os dentes e subir pro seu quarto enquanto ela acabava de arrumar tudo por ali.

- Vou dar boa noite pro Boris e já subo mamãe.

Emília abre a porta da cozinha. Boris estava por ali. Sua mãe não gostava quando ela levava o amigo pra dormir no quarto com ela, mas ela sempre dava um jeito de levá-lo pra cima. A mãe percebia, às vezes, e fingia não ver; chamava a atenção dela no dia seguinte. Naquele dia ela não percebera nada da manobra da filha. Emília coloca Boris embaixo da cama.

- Fique aqui. Vou escovar os dentes e já volte. Não faça barulho ou minha mãe coloca você pra fora.

Após Helena dar boa noite à filha e sair do quarto, Boris sobre na cama de Emília, aconchegando-se aos pés dela. Não demora muito e todos dormem tranquilamente.

Bem mais tarde, Emília acorda com Boris arranhando a porta com as patas dianteiras. “Pensei que minha mãe tivesse deixado a porta aberta” – pensa. Ela se levanta e vai até ele.

- Isso é hora de fazer xixi? – murmura pra ele.

Abre a porta e ele fica indeciso se sai ou não. Ela o pega pela coleira e saem, passando com cuidado pra não fazer barulho em frente ao quarto da mãe, que também tinha o hábito de deixá-la aberta. Seguem escada abaixo. Ao abrir a porta da frente para que o cão possa sair, Boris gane baixo olhando para o passador onde estava a bolsa de Helena. Neste momento o medalhão que estava sobre ela cai no assoalho de taco, fazendo um certo barulho. Emília fica com receio de que sua mãe pudesse acordar. Ela olha pro objeto caído e este começa a vibrar de forma intermitente, causando mais barulho ainda em contato com o piso de madeira. Boris começa a agitar-se, querendo recuar. Ela aproxima-se do medalhão e este para de vibrar.

- Ora... É apenas um colar, Boris. Fez barulho ao cair. Não precisa ter medo. É como sua coleira. É pra isso que serve. Não há nada demais nisso.

Ameaça colocar o medalhão em si mesma. Ele gane e ela resolve colocar nele pra ver se acabava o medo. Ele começa a andar pra trás e sobe correndo as escadas, indo pro quarto dela. Ela olha pro relógio digital ao lado e constata já ser bem tarde; três e cinco da madrugada. Em seguida também sobe pro seu quarto.

- Que medroso!

Passa em frente à porta do quarto da mãe. Para pra dar uma olhada. Helena dormia tranquilamente.

Segue pro seu quarto. Boris estava sobre a cama, com a cabeça apoiada nas patas dianteiras. Ela se aproxima dele.

- Seu bobo – murmura – Veja só. Vou colocar pra você ver que não tem nada demais.

Ameaça novamente colocar o colar em si mesma. Ele avança, saltando sobre ela e abocanha o medalhão, puxando-o pra si. Emília resiste tentando impedir, com medo que ele estragasse e sua mãe a deixasse de castigo. Por fim ele avança batendo as patas no peito dela. Ela cai sentada, soltando o colar e ele corre pra debaixo da cama.

- Boris! Saia daí.

Ele retorna mas deixa o colar embaixo da cama.

- Tá certo. Amanhã eu pego. Vamos dormir antes que minha mãe acorde.

Ela se deita. Ele sobe na cama, deitando aos pés sobre o cobertor. Ela mal deita e cai em sono profundo. Boris continua acordado, vigiando. Quinze minutos depois ele se agita, pressentindo algo estranho. Emília começa a levitar lentamente. Quando está a uma altura de meio metro o cobertor escorrega e cai sobre a cama. O crucifixo que trazia sempre consigo levita além dela, como se estivesse puxando pra cima. Ele brilhava e parecia quente. Boris salta sobre ela, batendo com a pata no crucifixo, fazendo com que ele vá de encontro ao corpo de Emília. Neste momento caem os dois sobre a cama. Ela não acorda. Ele late. Olha em volta, solta um ganido e deita sobre ela. Fica naquela posição por alguns minutos, certificando-se que ela não corria nenhum perigo. Ele vai até o quarto de Helena e a observa por um momento. Ela continuava dormindo, sem ter percebido nada. Pouco depois Helena começa a se agitar na cama. “Não... Não...” – Ela abre o olho e vê Boris sentado nas patas traseiras, olhando pra ela, com um par de olhos vermelhos brilhantes. Ele rosna mostrando um par de presas maior que o normal.

- Ahh... – grita.

Ela acorda, sentando-se de repente sobre a cama. Olha em direção à porta. Não havia nada ali. Helena sente-se aliviada. Havia sido apenas um pesadelo. Ela levanta-se e vai ao quarto da filha e a vê dormindo tranquilamente, com Boris deitado sobre as pernas dela e o cobertor no chão. O cachorro olha pra ela como que suplicando pra não ser expulso dali. Helena pega o cobertor no chão e cobre a filha. Olha pro Boris:

- E você pode ficar... Mas só por hoje – e fazendo um carinho nele – E obrigada por tentar protegê-la do frio. É um grande amigo pra ela – Pensa um pouco – Vou dormir aqui também.

Dá a volta na cama e deita-se ao lado da filha. Boris aconchega-se aos pés delas, sobre o cobertor.

Pela manhã Helena é a primeira a acordar. Sua filha dormia de lado, de costas pra ela. Era sábado e a filha não ia pra escola. Poderia dormir mais um pouco. Vai ao seu quarto, toma banho e desce pra preparar o café da manhã. Na sala, ela encontra sua bolsa caída no chão, almofadas espalhadas por toda sala, um vaso quebrado. Ela fica apreensiva, imaginando que alguém poderia ter entrado ali para roubá-las. Vai à cozinha e encontra a geladeira aberta e todos os alimentos congelados no chão. Tudo na maior bagunça. Constata que a porta da cozinha está fechada. Vai à porta da sala e percebe que está apenas encostada.

- Não há dúvida! Alguém entrou aqui.

Sobe as escadas, indo pro quarto da filha. Boris ainda estava deitado aos pés de Emília. Ela fica imaginando o porquê dele não ter dado o alarme; ou talvez também não tinha percebido. Pelo menos havia protegido sua filha. Ela decide acordar Emília. Quando a vira de costas, percebe uma marca em seu peito. Parecia queimadura, no formato do crucifixo. Dera a ela seis meses antes, pouco antes de se mudarem para aquela casa.

- Para que esteja sempre protegida – dissera na época.

Desde então Emília sempre carregava no pescoço. E agora via a marca no peito dela. Fica imaginando o que poderia ter acontecido. Acorda a filha.

- Bom dia, filha.

- Bom dia, mamãe.

- O que houve por aqui?

- Não entendi.

- Lá embaixo está a maior bagunça. Venho lhe acordar e vejo essa marca em seu peito. Parece uma queimadura. O que houve?

- Não sei... Não sinto nada.

- Não dói?

- Não.

Helena olha pro Boris que permanece quase imóvel, apenas abanando o rabo.

- Já lhe disse que o Boris não pode dormir aqui com você. Ele tem que ficar lá fora, vigiando a casa.

- Desculpe, mamãe! É que ontem estava frio e ele me olhou com aquele olhar pidão.

- Está certo. Depois a gente fala sobre isso. Agora vá escovar os dentes. Eu levo o Boris pra fora.

Emília vai pro banheiro. Helena pega Boris pela coleira, mas encontra resistência. Ele não queria sair dali. Ela o puxa, quase que arrastando e o leva através da porta da cozinha, deixando-o lá.

- E agora – diz a si mesma – Vamos arrumar essa bagunça, e ver o que ainda pode ser aproveitado da geladeira.

Pouco depois Emília se junta a ela, ajudando a arrumar aquela bagunça.

- Acha que o Boris fez isso, mamãe?

- Creio que não. Havia carne espalhada pelo chão. Se fosse ele, teria comido. Deve ter sido algum bicho que entrou pela janela, que esqueci de fechar - Mente sobre a última parte pra não preocupar a filha – Ontem deixei um colar com um medalhão sobre minha bolsa. Achou algo assim por aí?

- Um medalhão? Não... Não vi – foi a vez dela mentir.

Boris começa a latir. Ela olha pela janela e ele está perto do galpão, olhando para a porta aberta. Ela lembra-se que não o havia fechado no dia anterior. “Preciso ficar mais atenta” – pensa.

- Já limpamos tudo por aqui. Tome seu café da manhã que vou ver o que está acontecendo no galpão.

Helena sai indo até o galpão. Boris continuava a latir. Ela entra no galpão e o cachorro fica na porta, sem entrar. Lá dentro estava tudo revirado. Caixas rasgadas e o conteúdo delas espalhados por todo local. Ela começa a arrumar, separando roupas e papeis em caixas separadas. No meio de toda aquela bagunça encontra uma pequena caixa de madeira, trancada. Ela procura algo que pudesse usar pra forçar a fechadura. Encontra uma chave de fenda e sem dificuldade consegue arrombá-la. Lá dentro ela encontra um caderno de receitas de culinária escritas à mão, uma foto recente com as cores desbotadas, que pela descrição, deveria ser a dona anterior da chácara, alguns papéis sem importância, recibos, e mais ao fundo, outra fotografia, bem antiga em preto e branco, de uma moça sentada em um balanço de criança, com uma casa ao fundo. A árvore já não existia mais, mas a casa era, com certeza, a da chácara em que estava.

Helena folheia o caderno de receitas. Algumas partes das folhas estavam ilegíveis. Parecia ter sido molhado, borrando praticamente da metade pra baixo. Pensa que mesmo assim poderia tirar algumas receitas dali. Folheia, lendo o que podia de uma ou outra... Pula pro final delas. Havia algumas anotações que nada havia com receitas culinárias. Era a mesma letra, porém sem tanto capricho, como que escritas às pressas. Interessa-se em ler e saber do que se tratava. Deixa o restante das coisas como estão e sai do galpão, acompanha de perto por Boris, indo sentar-se na varanda dos fundos. Conseguia ler em partes que não haviam sido molhadas. E como num quebra cabeças, ia montando o relato contido ali.

“É tudo verdade. A história toda. Quando minha mãe me contou, achei ser fantasiosa, mas coisas estranhas estão acontecendo. E acredito ter relação com o que ela me contou. Tudo por causa daquele medalhão...

“... havia encontrado com os pertences de um cigano, morto já havia algum tempo. Achou interessante e resolveu ficar com ele. Por um tempo não representava nada, mas depois de algum tempo aconteceram coisas...

“... a polícia não encontrou quem poderia tê-la matado. A casa estava toda revirada. Minha tia herdou a chácara, mas nunca morou aqui. Deixou um caseiro tomando conta. Vinha vez ou outra, nunca se sentindo bem por aqui...

“... segundo foi apurado, o filho do caseiro matara o pai a pancadas e se atirou pela janela do quarto do primeiro andar, quebrando o pescoço na queda. Tanta desgraça não pode ser coincidência. O medalhão tem os seguintes desenhos:“

A seguir, os desenhos, legível pela metade, do que vira no medalhão que encontrara. Na outra página:

“ ... portas batiam, coisas eram jogadas de um lado pro outro, ventos me derrubaram. Tenho certeza que tem a ver com este maldito medalhão. Tive que me refugiar aqui. Amanhã vou à cidade e entregá-lo pra...”

Aqui terminavam as anotações. “Quanta imaginação” – pensa ela. “Um simples objeto não pode ter nada a ver com isso. Em todo caso, quem entrou aqui na noite passada deve tê-lo levado. Não o vi enquanto arrumava toda aquela bagunça e Emília disse que também não o viu. E certamente é a mesma pessoa que tentou roubar dessa senhora, deixando-a assustada. O que ele poderia querer? Não parecia ser valioso...”

Apesar de seu ceticismo, aquela história toda mexia com Helena. Pensa com quem poderia obter informações sobre a dona anterior da chácara.

- O padre!

Assistia às missas todo domingo, poderia conversar com ele no dia seguinte, mas não queria esperar. Pega o celular e liga pra ele. Apura com ele que a antiga dona apresentava quadros de esquizofrenia e que tinha piorado nos últimos dias de vida. Havia sido encontrada morta no galpão, com a porta fechada por dentro, deitada de bruços. A polícia disse na época que ela havia tido uma convulsão e sufocado com o próprio vômito. Não havia sinais de arrombamentos, nem de lutas. Estava tudo arrumado. Ela só foi encontrada dois dias depois de sua morte.

Helena não conseguiu nenhuma informação a mais. Agradece ao padre e promete conversar melhor com ele após a missa do dia seguinte.

O resto do dia transcorre normalmente. Helena não parecia ter ficado impressionada com todos aqueles relatos.

À noite as duas, na hora de irem dormir, Helena cede fácil à insistência de deixar Boris dormir com a filha. Ela lembra-se da noite anterior e acha melhor permitir.

- Mas não acostume com isso. O lugar dele é lá fora, vigiando a casa.

Bem mais tarde Emília acorda com algumas batidas debaixo de sua cama. Boris se agita também. Alguma coisa vibrava e forma intermitente, fazendo barulho em contato com os tacos do piso. Emília acende a luz, inclina-se pra ver embaixo da cama. O medalhão tinha um brilho avermelhado, ela se levanta e abraça o Boris, enquanto chama pela mãe. As portas dos quartos das duas fecham-se ao mesmo tempo. Com o barulho Helena acorda. Imagina ter sido o vento que entrava por alguma janela. Olha pro relógio que marcava três e cindo da madrugada. Acha melhor ir dar uma olhada na Emília. Ao sentar-se na cama, olha novamente pro relógio e este começa a girar desordenadamente. A luz do teto começa a piscar. A filha grita novamente e desta vez ela escuta. Ouve também latidos de Boris. Corre até a porta tentando abri-la, sem sucesso. Com a luz intermitente ela percebe vultos percorrendo o quarto. Objetos são jogados por todos os lados, travesseiros rasgam-se. Sua cama começa a levitar. Helena tenta usar o celular mas a bateria estava descarregada, o que parecia ser impossível pois a havia posto pra carregar naquela tarde. Ela vai ao guarda-roupas que a esta altura estavam com as portas abertas, pega a chave escondida numa fresta no alto e abre uma das gavetas, pegando a pistola que era de seu marido e a recarrega. Enquanto isso aquela sombra corria pelas paredes, dando voltas em torno do quarto. O vulto para como que a encará-la e atravessa a parede em direção ao quarto de Emília. Helena vai até a porta e atira na fechadura, conseguindo abrir a porta. Faz o mesmo na porta do quarto da filha. Lá encontra um quadro semelhando ao que vira no quarto dela.

- Mamãe! – grita Emília abraçada ao Boris.

Elas se abraçam e correm dali, descendo as escadas, abrindo a porta da frente, procurando sair logo dali. Na sala, um antigo móvel com todos os cristais que herdara com a compra da propriedade tomba, quebrando tudo dentro. As luzes da sala também piscavam, aumentando ainda mais o horror a que estavam presenciando. Assim que abre a porta, Boris retorna ao quarto de Emília, abocanha o medalhão e sai com ele, que mesmo queimando sua boca não o solta. Passa pelas duas, indo em direção aos fundos da chácara. Helena pensa no celular mas havia deixado lá dentro. Não tinha como voltar, ou pelo menos arriscar-se a isso. Não sabia com o que estava lidando.

Menos de cinco minutos depois elas vêem Boris voltando pra elas. Para a uma certa distância. Os olhos dele estavam vermelhos e brilhavam. As presas bem maiores agora. Rosna pra elas enquanto aproxima-se. Helena lembra-se de seu sonho na noite anterior. Era a mesma cena. Ela puxa a filha pra trás de si, protegendo-a e sem pensar muito, atira duas vezes mas erra. Ele continua avançando. Ela dispara mais duas vezes e desta vez consegue atingir num dos olhos e no pescoço. Ele parece não ter sentido nada. Continua a avançar. Elas tentam correr em direção à estrada. Boris corre atrás e quando estava se aproximando, Helena vira-se e atira mais uma vez, acertando o outro olho. Ele cai. Ela atira mais três vezes, mas ele já estava morto.

- Ele morreu, mamãe?

- Sim filha, ele morreu. Acabou. Sinto muito. Boris era seu amigo, mas naquele momento já não era mais ele.

- Estou com medo...

- Está tudo bem agora. Acabou.

Vinte minutos depois chega uma viatura da Polícia Militar. Um vizinho do outro lado da avenida os havia informado ter ouvido tiros.

Helena conta que haviam sido atacadas pelo cão e fora obrigada a atirar. Omite sobre o acontecido dentro da casa. Sobre isso falaria com o padre.

Pela manhã, após saber do acontecido, o padre segue para a chácara logo depois da missa. Helena conta toda a história. Ele acha que ela ficara impressionada com o que falara ao telefone no dia anterior e imaginara tudo aquilo. Ela não insiste na história.

- De qualquer forma não quero mais ficar aqui. Vamos agora mesmo pra cidade. Talvez fique num hotel ou na casa de alguma amiga. Vou colocar a chácara à venda.

- E o cachorro?

- Enterrem ele no pomar. Ele gostava de ficar lá. Antes de nos atacar creio que tentou nos proteger de algo, mas acabou sendo dominado. Não era ele realmente que nos atacou. Era um bom amigo de minha filha.

- Querem estar presentes?

Helena olha pra filha e responde:

- Melhor não. Se puder arrumar alguém que faça isso por nós...

- Antes de sair pra cá, um casal me pediu ajuda. Estão de viagem pra Canindé e estão sem recursos. Eles poderiam fazer isso.

- Pague o que eles pedirem que eu o reembolso depois.

Elas entram acompanhadas pelo padre, que à exceção da cristaleira caída e as fechaduras das portas dos quartos arrombadas a tiros, não viu nada de anormal por ali. Estava tudo arrumado e em perfeita ordem. Helena pega o que pode e na companhia da filha e do padre deixam a propriedade.

Mais tarde, um casal que já recebera pagamento pra dar um destino ao cão abatido, chegam ao local. Tiveram instruções de enterrá-lo no pomar.

Eles carregam o animal até lá e pra não ter muito esforço começam a cavar em um lugar onde a terra não estava tão compacta; parecia ter sido remexida recentemente. Ao puxar um pouco da terra, o enchadão trás consigo um colar prateado, com um estranho medalhão. Ele limpa com as mãos, acha bonito e coloca no bolso.

- Acha que é daquela mulher? – pergunta a esposa.

- Não importa. Achado não é roubado. E se for o caso já estaremos bem longe daqui, caso ela queira reclamar de alguma coisa.

Após terminarem de cavar, colocam Boris lá dentro e o cobrem com a terra.