Os Contos do Apocalipse 1: a caçadora de demônios

OS CONTOS DO APOCALIPSE, 1
A CAÇADORA DE DEMÔNIOS
Miguel Carqueija



Nos velhos tempos, antes que a civilização tecnológica fosse destruída pela miséria, fome, pestes, devastação ecológica e pelas sucessivas Guerras do Apocalipse, o mundo era riscado por moderníssimas auto-estradas percorridas por milhões e milhões de automóveis a gasolina, cada vez mais velozes e furiosos, por ônibus e caminhões. Nos ares passavam aviões velocíssimos, alguns supersônicos. O mundo todo estava ligado pela tecnologia digital e satélites eram lançados ao espaço constantemente.
A queda da civilização industrial levou a Terra de volta à Idade Média, com algumas diferenças importantes. O mundo todo estava unificado e mesmo os oceanos não separavam de todo os continentes, pois imensas pontes flutuantes os conectavam. Assim, em tese uma pessoa poderia viajar a pé ou a cavalo, ou num dos poucos veículos motorizados que restavam, sem precisar recorrer a barcos ou aviões.
Neste devastado mundo futuro demônios se encarnaram e se disfarçaram em seres humanos, como parte da estratégia do Anticristo para dominar o planeta inteiro. Num contra-ataque a Santa Sé credenciou homens e mulheres para serem os Guerreiros de Cristo. Nesse momento uma das guerreiras aproxima-se lentamente de uma pequena cidade onde coisas suspeitas estão acontecendo...



A Irmã Maria Angélica apalpou os bolsos de sua calça, bem como a bainha de sua espada, como a se certificar de que seus apetrechos estavam em ordem, à medida que ela se aproximava de Vila Macieira. Seguia pistas precisas graças inclusive aos companheiros de raça da Ariel, que traziam informes pelos ares. Sabia que o seu alvo encontrava-se naquela pequena cidade, restava localizá-lo com exatidão.
Acariciou Sofia, que resfolegou de prazer. Ao penetrar nas pequenas ruas com suas casas baixas, em geral com dois andares no máximo, Angélica chamou a atenção daquela gente simples. Não era comum avistar uma freira-guerreira; elas estavam espalhadas pelo mundo não obstante eram poucas. O uniforme azul-escuro, as calças de brim, o signo da cruz pendurado ao pescoço, o chapéu com o emblema da Ordem das Guerreiras de Cristo, o lenço branco ao pescoço, a égua branca e o falcão no ombro ou esvoaçando em torno (raramente pousava na montaria), tudo isso a identificava de forma clara. Angélica preferia utilizar disfarces mas por outro lado, com sua identidade às claras obtinha em geral facilidades invejáveis.
Era importante livrar o Brasil de cair nas garras do Anticristo, que já dominava vastas regiões do globo. Daí ser fundamental eliminar todos os diabos infiltrados entre a população.
E ela tinha já o seu nome na lista negra do Anticristo. Sabia que sua cabeça estava a prêmio.
Ao passar em frente a um prédio antigo e escuro de musgo verde, reparou num homem bem vestido que a observava com ares de desagrado. Havia outras pessoas com ele, mas o que chamou a atenção de Angélica foi o seu olhar de abutre raivoso.
Mas ela seguiu adiante, guiada pelos guinchos de Ariel, até chegar diante de um cartório. Com o falcão pousado em seu ombro esquerdo, penetrou no local e, diante dos espantados funcionários, dirigiu-se sem demora à sala de matrimônios.
Uma cerimônia estava se realizando, e o juiz acabara de indagar da noiva se ela aceitava o compromisso. Angélica entrou em bradou: “Parem!”
Os presentes olharam para ela com estupor. O noivo, um homem alto, branco, de cavanhaque e bigode, e muito bem vestido para o local, olhou-a com aparente firmeza mas o olhar treinado de Angélica enxergou o pânico mal disfarçado.
— Quem é você? Como ousa? — exclamou a noiva, que chamava a atenção pela sua basta cabeleira loura.
— O que deseja? — indagou severamente o juiz de paz. — Estamos em meio a uma cerimônia de casamento!
— Excelência, o casamento não pode ser realizado porque o noivo não é humano. Ele é um demônio, não passa disso!
— Isso é um absurdo! — gritou alguém. “Conhecemos ele” disse mais alguém. O homem acusado limitou-se a exclamar: “Fora daqui, sua bruxa! Aqui não é igreja!”
O falcão continuou seus guinchos, agora bastante irritados, e Angélica limitou-se a pegar uma bolsa d’água de seu uniforme e atirá-lo sobre o noivo:
— Veremos quem de fato você é!
A água benta esparramou-se pelo terno e, em poucos segundos, provocou uma reação estarrecedora. O homem se contorceu, o seu rosto, notadamente a boca, apresentou movimentos espasmódicos. Finalmente ele gritou “Sua maldita, corvo de batina!” e diante dos olhares horrorizados da noiva e das demais pessoas presentes à cerimônia, explodiu numa nuvem de enxofre.
E agora o ser que se encontrava diante de todos era indubitavelmente um diabo. Todos os presentes, menos Angélica, recuaram até a parede, alguns fugiram em pânico, outros desmaiaram. O falcão voou do ombro da freira e pousou sobre um ventilador parado. O demônio ainda tentou enfrentar a Irmã Angélica mas ela já lhe saltara em cima com a espada em riste. Esta penetrou fundo, com sua lâmina fina e afiada, no coração do ser demoníaco, que proferindo blasfêmias dissolveu-se em pó.
— Peço desculpas pelo incômodo — disse Angélica, guardando a espada na bainha. — Mas precisava desmascarar esse enviado do inferno.
Demorou-se algum tempo consolando a noiva, que chorava copiosamente, e se mostrava grata por haver sido poupada de semelhante engano. Aquele homem morava na vila há pouco tempo,ninguém sabia nada de seu passado salvo o que ele próprio alegava. Era porém sedutor e galante...
Mas ao sair a guerreira deparou com aquele homem do olhar raivoso e ladeado por dois outros indivíduos.
— Sou o Prefeito Ferreira — foi logo dizendo e apresentando a sua credencial. — Já soube do que você fez e peço a sua imediata retirada desta cidade.
— Mas eu estou com fome e pretendia lanchar — disse ela, conseguindo sorrir.
— Sem chance. A senhora, seja quem for, trouxe pânico e constrangimentos desnecessários...
— Como assim? Prefere que os demônios se unam às mulheres locais?
— Não está provado que existam demônios — foi a espantosa resposta. — Abílio era um homem de boa reputação entre nós. Se o corpo dele estivesse aqui eu a acusaria de assassinato. Não queremos pessoas como você por aqui. Perturbam a ordem pública.
— Eu sou uma Cavaleira de Cristo e estou credenciada para o que faço. Sou a Irmã Maria Angélica.
— Está bem. Já fez o que tinha a fazer, peço que monte em seu cavalo e vá embora, e nunca mais volte.
— Está bem, se isso o faz feliz. Com licença!
Ao montar em sua égua Angélica foi abordada por uma jovem cabocla, de olhar penetrante:
— Oi, eu sou a vereadora Eugênia. Nós somos muito gratos a você, sempre achei esse sujeito muito suspeito, e ele não quis casar com a Tânia pela Igreja. Esse prefeito é um corrupto e cá entre nós, tem coisa nele.
— Um vendido? Quem sabe? Tomem cuidado com ele e muito obrigado pelas suas palavras.
Seguida pelo falcão em vôo, Angélica afastou-se rapidamente. Refletia no desfecho do caso. O prefeito provavelmente era um agente do Anticristo. Isso significava que ela corria perigo.
— Ariel, veja lá de cima se me seguem! Na estrada podem facilmente me matar!
Realmente, minutos depois a ave retornou e, com seus guinchos, confirmou as suspeitas da irmã, que sabia entender a linguagem de seu guardião. Cinco homens armados vinham no seu encalço.
Rindo, ela tocou Sofia que era uma égua velocíssima. Quando bem mais tarde pediu a Ariel outra verificação, soube que já não a seguiam.
Com o falcão pousado em sua mãe esquerda, ela observou:
— Mais uma vez te agradeço, meu querido amigo. Não haverá de ser hoje o meu dia! Vamos adiante que a nossa missão mal está começando!




27.3.2017 31/3/2017


estátua de Joana D'Arc: imagem pixabay publicdomain
Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 31/03/2017
Reeditado em 06/03/2018
Código do texto: T5957521
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