Quando ela chegou na nossa vila fez questão de cumprimentar as vizinhas mais próximas e foi  a imagem da simpatia, logo todos se deixaram levar  e somente nossa família permaneceu  arredia. Somos os proprietários de uma vila com 12 casinhas geminadas, quarto e sala com cozinha e banheiro diminutos, área de serviço que mal cabe uma máquina de lavar pequena, jardim comunitário e animais eram  permitidos desde que não incomodassem. 

 A maioria dos moradores tinha  idade avançada, alguma enfermidade e se conheciam a vida inteira. Minha casa ficava  nos fundos  da vila, dois andares com varandas de onde podíamos  observar tudo que ocorria, hábito que cultivamos para garantir o bem estar de todos. Eu, minha mãe e avó vivíamos no  casarão, meus irmãos foram embora e meu pai morreu anos atrás. As pessoas da vila  eram  tranquilas, as vezes se desentendiam e depois tudo voltava  ao normal. Até o dia em que ela chegou  sem móveis,  apenas uma mala pequena e tudo começou a mudar rapidamente. 

Dona Maria era a mais velha, com oitenta e sete anos e uma artrite severa,  nunca recebia visitas e qualquer um que puxasse uma conversa via-se preso em uma interminável história. Selma logo transformou-se na melhor amiga e companhia constante, dizia-se viúva  com apenas sessenta anos embora aparentasse bem mais. Se ofereceu para cozinhar e  ajudar a nova amiga, assim faziam todas as refeições juntas e Selma nem precisava comer na rua. Assistiam  novelas, iam juntas  ao mercado, nada demais se Dona Maria não estivesse ajudando a amiga com uns trocados, como ela mesma admitiu para outra vizinha.  Selma estava sempre esperando liberar a pensão do falecido, meses se passaram e a tal pensão nunca apareceu.  Assim a  jovem  viúva Selma foi ganhando uma cadeira de um, uma toalha de outro, panelas, roupas de cama e aos poucos  a casinha vazia estava mobiliada. 

Minha avó e mãe resmungavam que era uma golpista, o advogado garantiu que não tinha nada contra Selma, pagava o aluguem em dia e tinha referencias, inclusive fiador com imóvel próprio.

Várias vezes a viúva tentou fazer amizade conosco, se ofereceu  para ajudar no que fosse preciso, varria a vila toda, limpava os canteiros, minha avó fechava a cara e gritava que estava pagando o zelador do prédio para fazer o serviço. Selma apenas sorria sem graça e ia bater na casa de alguma vizinha pra tomar um café e  conversar, levavam horas  fofocando e soltando risadas. Semanas depois Dona Maria procurou minha avó para reclamar que alguém havia invadido sua casa, roubado suas economias e  a vitrola antiga relíquia de família. Imediatamente Selma acusou o porteiro que fazia serviços gerais, o homem negou mas quando falaram em chamar a polícia fugiu correndo o que confirmou sua culpa.  

Sempre desconfiei de Selma, as vezes eu a seguia pelas ruas do bairro e via quando ela se esgueirava por vielas da comunidade. Para quem dizia ser nova na cidade, recém chegada de São Paulo ela era muito conhecida, volta e meia falava com mulheres estranhas e mal encaradas. Infelizmente o porteiro era ex detento e fugiu porque teve medo de voltar pra cadeia, o mais estranho é que semanas mais tarde a tal vitrola foi parar no brechó do bairro. Preferi não falar nada, mas passei a acompanhar Selma mais de perto, principalmente após a chegada de suas primas paulistas.  

Uma noite uma mulher tocou o interfone por engano, logo escutei Selma atendendo e mandando entrar, mais tarde chegou a segunda e depois a terceira. E assim várias  mulheres começaram a dormir na casa de Selma, saíam bem cedinho e retornavam à noite, usavam mochilas e sacolas e sumiam nos fins de semana. Quando apareceu a sexta  prima,  minha mãe achou estranho, as outras pessoas estavam tão encantados por Selma que não prestavam atenção naquele entra e sai. Como síndica e proprietária minha mãe fez questão de pedir explicações, claro que ela deu a desculpa de serem todas suas primas e que breve iriam arrumar outro lugar para morar. Os meses passaram e era claro que Selma estava alugando vagas, nem cama suficiente existia na casa, as primas usavam colchonetes e iam e vinham quando queriam.  

Decidimos que era hora de nos livramos de Selma, ligamos para o advogado da imobiliária e pedimos providências, ele perguntou se tínhamos como provar que ela estava sub locando, não havia provas. Selma foi chamada pelo advogado,  bateu pé que não ganhava um tostão com suas amigas, primas e o que mais fossem, e como não havia nada consistente se recusou a deixar a casa. Minha mãe nunca reclamou comigo diretamente, eu apenas acompanhava de longe seus aborrecimentos com Selma. 

Havia semanas que nossa boa vizinha Dona Maria não parecia em nossa casa, minha mãe soube que ela estava de cama muito doente. Selma passou a cuidar da idosa em tempo integral e   o restante das vizinhas  se revezavam e intermináveis visitas na casa da idosa. A vizinhança passou a evitar nossa família, algumas senhoras  nem nos cumprimentavam, lançavam olhares furiosos e fechavam a cara.

Todo ano minha família montava a  festa junina com os vizinhos, era uma tradição desde que eu era criança, naquele ano passamos a lista de presença e somente um vizinho novo sinalizou aprovação. O resto eram linhas  em branco. Ninguém queria a festa de São João, as pessoas estavam muito mudadas e minha família não sabia a razão de tanta antipatia. Minha avó ficou tão magoada  que ficou doente, não saía mais de casa, passava os dias sentada no sofá ouvindo rádio e alisando os  gatinhos  de estimação.  

Um dia minha mãe acordou mal humorada  e foi bater na casa de Dona Maria, todas as vizinhas  estavam lá,  em torno da mesa posta com fartura, rindo e tomando café. Mamãe não aguentou os olhares:-O que está acontecendo com vocês? Somos uma família há anos, mais de cinquenta anos de amizade, quero saber o que está se passando! Ficam aí jogando conversa fora e a pobre da Maria? Não se preocupam? Onde ela está? - As mulheres se entreolhavam e Selma de mãos na cintura fez uma careta: 
-Nada não senhora síndica, estamos incomodando a senhora? Minhas amigas estão simplesmente apoiando uma pessoa que zela por elas, e não a senhora rica que quer me colocar pra fora sem motivos, eu cuido de idosos, crianças, faço tudo de coração e elas sabem que eu sou uma mulher boa e honesta. 
-Não estou falando contigo, quero saber das moradoras da antiga, mas antes vou ver  Maria.- Mamãe saiu em direção ao quartinho de Dona Maria. Lá se horrorizou com o corpo magrinho e abatido da amiga, pálida, praticamente um esqueleto, nem reconheceu mamãe:- Meu Deus, vou chamar a ambulância imediatamente, ela está muito mal. Vocês são doidas, fazendo fofoca e lanchando enquanto Maria está praticamente morta! 
-Ela está ótima, tomando os remédios e muito bem cuidada, levei na clínica da família mês passado. Tem pressão baixa e é da idade, a senhora não tem que se meter aqui. - Selma não ia facilitar as coisas. 
Minha mãe nem se deu ao trabalho de responder, gritou e rapidamente minha avó  ligou  pedindo ajuda ao SAMU. Selma então exibiu a procuração, firma reconhecida e tudo o mais:- Quem decide isso sou eu, ela não vai a lugar algum e fim de papo, vocês são donos da maioria das casas mas não de todas. Dona Maria é uma das poucas que não te deve nada, e eu como responsável por ela não vou deixar. É o desejo dela. Nada de hospital, não é verdade amigas?-As mulheres assentiram, defenderam Selma, ninguém apoiou minha mãe.

Dona Maria definhou por semanas até que morreu, pesando menos de  quarenta quilos e sem qualquer assistência médica. Selma imediatamente se mudou de vez para a casa de Dona Maria, sem parentes e com várias procurações se tornou herdeira de tudo.   
Selma juntava a vizinhança e fazia fofocas e nem se dava ao trabalho de disfarçar, apontava o casarão dos riquinhos como ela chamava e falava que o tempo de sinhá já tinha acabado. Ela era proprietária e não tinha medo de ninguém, começou a fazer campanha para votarem nela como síndica, dava ordens e podou as roseiras que vovó havia plantado quando se casou, ninguém nunca havia tocado  nas flores de vovó. Nunca.  

Selma começou a tomar conta das vizinhas mais idosas e dependentes, a família de algumas pagava até um salário para não precisar mais ter trabalho, logo eram quatro senhoras  que tinham sido  amigas de vovó sob os cuidados da viúva Selminha. As mulheres  elogiavam a comida, a devoção, o carinho e enquanto isso não percebiam que as intrigas aumentavam, que eram constantes os disse me disse e que Selma controlava tudo e todas. 

Minha avó chorou, se lamentou e entrou em depressão, mamãe já não sabia o que fazer, eu então resolvi que estava na hora de dar um basta. As pessoas sempre me acharam um pouco esquisito,  não tenho amigos nem saio muito, sou o filho mais velho e nunca abandonei mamãe.
Um dia meu pai deu uma surra em minha mãezinha, bateu muito nela, quanto mais ela chorava mais ele batia. Ela desmaiou e quando acordou contei que ele tinha ido embora, eu só tinha sete anos e ela não acreditou, mas ele nunca mais voltou. Eu era muito  fraquinho, doente,  e precisei ficar  internado no hospital, passei muito tempo longe e somente minha mãe e avó me visitavam.  
Voltei pra casa há  uns dez anos, ninguém me reconheceu, nem lembravam mais de mim, tenho pena delas porque não sabem nada, e agora estou muito, muito irritado. Eu só queria que tudo voltasse a ser como antes.  Odiava Selma, odiava  aquela magricela ossuda e feia, odiava  as mentiras que ela contava, odiava as fofocas ...odiava tudo naquela ordinária.

Minha mãe tinha  uma gavetinha na cômoda para as despesas da casa, furtei um bolinho de notas e comecei a agir bem devagar, minha mãe andava  tão nervosa que nem percebeu  minhas escapadas.  Em uma semana já tinha tudo que precisava e a brincadeira começou. Eu sabia  planejar coisas, esperar, sou invisível quando eu quero, sou muito poderoso e muito inteligente.  

Um grito agudo atravessou a manhã morna de verão, e logo de todas casas,  pessoas correram para o meio da vila.  Duas idosas que Selma tomava conta amanheceram passando muito mal, gesticulavam  e se curvavam numa pantomima interminável, minha família correu para ajudar e eu apenas observei a agonia.
Vieram ambulância, bombeiro e  quase todos os moradores comentaram o horror do ocorrido. Dias depois nossas inquilinas mais antigas faleceram, eram cheias de doenças e sem parentes vivos. Os hospitais andavam lotados, morria gente demais, quem iria se incomodar com mais duas?. 

Selma  passou a cuidar só de  duas velhinhas, ia pra casinha delas  dar banho, fazia  comida, dava remédios, até aparelho de pressão ela usava. Se achava médica, vivia dando conselhos de remédios, chás e se metendo na vida alheia.
Tudo foi voltando ao normal   até que alguém fez uma denúncia anônima de gato na vila, o famoso roubo de energia, vi Selma falando com o funcionário da Light e apontando o casarão e logo soube que tinha dedo dela. Tudo de ruim era coisa daquela mulher. 

As semanas passaram e quando todos pareciam ter esquecido, outra idosa e a filha morreram de forma trágica. Desta vez as pobres puseram as tripas pela boca, a casa parecia um açougue, tinha sangue espalhado no chão e até nas paredes. Selma tentou esconder a gravidade da situação porque era madrugada, esperou o dia clarear para chamar socorro e não deu tempo. Eu acompanhei tudo daqui da varanda, minha mãe me deu uma luneta para ver os planetas mas  eu  usava na vizinhança. Gostava  de olhar. Gostava muito de olhar as pessoas.
Daquela  vez a  polícia entrou em ação,  todos foram chamados à delegacia,  mamãe fez questão de contar ao delegado sobre Dona Maria, encontraram caixas de veneno de rato escondidas na casa de Selma que foi presa,  pediram a exumação do corpo da idosa e ela havia sido envenenada com a mesma substância. A pobre  Selma jurou inocência mas claro que ninguém acreditou, ficou conhecida como o monstro de Benfica, assassina de velhinhas e foi cumprir pena bem longe.  
Infelizmente envenenaram nossos  gatinhos  da mesma forma horrível,  haviam  me prometido que quando eles morressem teríamos  um cachorro, ganhei o Toddy alguns dias depois, eu sempre preferi cachorros a gatos.  

A festa julina estava muito  animada, a mesa farta de doces na porta da nossa casa, muitas prendas, bingo para as senhoras, músicas caipira,  as pessoas conversando e rindo como antigamente. Minha avó usou  um vestido  novinho, com avental em  laise e bordado inglês, chapéu de palha enfeitado com fitas de cetim e flores de pano. Minha mãe ficou muito feliz, dançou e brincou como nunca.  Eu passei a festa  sentado no cantinho mais escuro da varanda,  vi meus irmãos com as esposas e filhos, percebi quando a filha adolescente do mais novo cochichou com os pais alguma coisa e saiu de fininho.  Nunca gostei da minha sobrinha Emilly, adolescente mimada e cheia de vontades.  A raiva  cresceu quando vi aquele sorrisinho, peguei meu binóculo e fiquei acompanhando a garota  até o portão, ele foi  encontrar o namoradinho.  Assisti o casalzinho fazendo coisas feias no muro, coisas que minha mãe nunca concordou.  Tive que  cuidar da família mais uma vez, era meu dever, meu irmão nunca deveria ter sido pai, peguei a faca e desci as escadas e esta é minha última lembrança.  


 
Dona Norma estava sentada na cadeira de ferro há horas, esperava o médico voltar com notícias de Otavinho mas sua vontade era de sair gritando sem rumo e não voltar nunca mais. Otávio tinha matado um rapazinho de quinze anos, a sobrinha estava internada em choque e seu filho  também era suspeito de ter envenenado as velhinhas da vila. 

Ela lembrou da caixinha que Otávio entregou em suas mãos  quando o trouxeram para o manicômio da primeira vez,  já secos e podres estavam  dois globos oculares. Ela nunca contou pra ninguém, mas o marido havia morrido de uma forma horrível, bêbado demais nem se deu conta e foi todo retalhado. Sangrou horas sem  os olhos, mais de cem  furos e cortes de tesourinha sem ponta. Tesourinha de criança.
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 30/03/2017
Reeditado em 31/03/2017
Código do texto: T5956724
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