Jerry Lee levantou os olhos por cima dos óculos que caíam sobre seu nariz quase enfiado num livro preto e esquisito.

- Silencio. Eles podem estar escutando... estão nos observando! – Ele disse sussurrando e fazendo sinal com o dedo.

Me sentei na cadeira ao seu lado, ainda pasmo com aquela visão do meu amigo. Jerry estava completamente louco, e eu, como seu melhor amigo, me sentia um inútil, não havia nada que eu pudesse fazer.  

- Eles quem Jerry? – Perguntei gaguejando.
- Duendes do mal, são filhos do diabo... são minúsculos, não dá pra ver assim a olhos nus. Mas estão por toda parte... Shhhhhhh!! - Concluiu.

Seus olhos pareciam querer pular do rosto, vermelhos, lacrimejavam... quase não piscavam.

Ele está só. Ele sempre foi só. Eu vi tanta mulher passar por ele e acreditava que fosse o homem mais sortudo do mundo..., mas o tempo foi passando e todo mundo se casou, e todo mundo teve filhos, e se separaram e casaram de novo, e a vida andou... todos foram fazendo alguma coisa útil. Ninguém ficou parado... apenas o garanhão do Jerry Lee.

Mesmo depois de 30 anos sem vê-lo, continuava com sua face de James Dean que invejava toda a turma, e que fez tantos namorados darem chiliques com suas namoradas que mal podiam disfarçar seu encantamento ao olharem o meu amigo.  E agora ele acreditava em duendes...


- Eu não consigo vê-los meu chapa.
- Nesse exato momento, um deles caminha alegremente por sua camisa, ingênuo amigo.


Jerry se atirou em mim com aquele corpo forte e fétido, numa força que senti meus ombros estalaram no chão de mármore branco. Caímos juntos enquanto Jerry estapeava a minha cara na tentativa de matar ou afastar a pequena entidade invisível que percorria meu corpo.

Levantei com dificuldade abanando a poeira do meu paletó e com as mãos trêmulas, acendi um cigarro. Estava tentando parar... Jerry voltou a se sentar como se nada tivesse acontecido.


- E então... Ele morreu ou foi embora? – Perguntei num tom meio zombeteiro.
- Eles morrem, mas voltam... sempre. São como moscas.

Como se sua sanidade tivesse sido devolvida, Jerry passou a fazer perguntas sobre meus dois filhos, minha esposa e meu trabalho. A conversa tomou um rumo mais animado e passamos até mesmo a dividir alguns cigarros.

 - É, caro amigo do bem... vamos fechar as janelas e apagar as luzes! Antes que anoiteça de vez!

Respirei fundo, já esperando mais um surto. Evitei fazer perguntas e caminhei junto a ele -  segurando sua mão - por todo o apartamento fechando todas as janelas. Era inverno, mas não chovia e isto fazia o ambiente ficar completamente abafado. Realmente podíamos estar mesmo no inferno.

Jerry pegou duas velas pretas e as acendeu uma em cada lado da mesa da sala. Sentou-se na cabeceira, e eu ao seu lado. “O que eu estou fazendo há essa hora com esse maluco aqui no escuro? ”, pensei.


- Agora podemos até mesmo tomar um vinho meu bom amigo! - Exclamou Jerry, me fazendo perceber exatamente porque eu continuava ali.

Apesar de meu amigo estar nitidamente esquizofrênico, ou sei lá o que... continuava ainda sendo uma pessoa das mais agradáveis que já conheci. Eu não estava ali por pena... eu estava gostando.

Tirei o paletó e atirei-o no chão, suspirei como se estivesse de férias. Era bom estar ali, com meu velho parceiro. Desandamos a conversar.


- E as mulheres Jerry?
- Não é mais uma prioridade em minha vida, depois que passei a lutar contra seres do inferno.
- Ok, ok. Posso lhe fazer mais uma pergunta?


Perguntei o motivo de termos fechado todas as janelas do apartamento e apagado todas as luzes. Um tom sério e compenetrado tomou conta do rosto de Jerry, e apagando o cigarro no cinzeiro, me explicou:

Eram as BRUXAS. Isso mesmo... elas podiam entrar pelas janelas, mas não subiam os elevadores e eram velhas demais para derrubar as portas. Porém se deixasse as janelas abertas, entravam flutuando nos quartos e salas e podiam nos obrigar a fazer coisas terríveis, coisas sexuais... ou até mesmo autoflagelação. Tinham o poder de controlar nossas mentes nos levando até mesmo ao suicídio.
         
 
 - Eu fecho as janelas e elas não vêm mais aqui. Vê? Elas batem nas janelas querendo entrar, mas daqui a pouco vão desistir e eu vou dormir em paz.
- Elas já conseguiram entrar alguma vez Jerry?
– Perguntei olhando-o da cabeça aos pés... na verdade, eu tinha medo da resposta.

Os olhos de Jerry encheram de lágrimas e um silencio tomou conta da sala. Tentei disfarçar acendendo um cigarro e agindo como se não tivesse feito pergunta nenhuma, mas Jerry ao respirar profundamente me olhou nos olhos e levantou a blusa, me fazendo quase vomitar em cima da mesa.

Sua barriga e tórax estavam completamente retalhados e coberto de curativos, alguns cortes eram muito recentes e ainda sangravam, molhando as ataduras.


- Anteontem elas conseguiram entrar... quase não sobrevivi. – Respondeu.
- Não quer procurar um médico?
- Não, não... estou bem. Demônios se disfarçam de médicos também. Você viu o caso do médico que estuprou aquelas mulheres? Pois bem. Sabe o que funciona de verdade?
- O que...?
- Ler a Bíblia. Acreditar nas escrituras. Leio todos os dias, de cabo à rabo.


Abrimos mais uma garrafa de vinho e Jerry teve a ideia (brilhante e derradeira) de ligar o ar condicionado. Cheguei a pensar “como ele está pagando essas coisas? ”, mas nunca faria a pergunta, mesmo que ele estivesse lúcido.

- Eu sei que você é ateu. – Ele disse, num tom repreensivo.
- Sim, sou. E o que você acha disso, Jerry? – Estava ficando embriagado, pois mal passou pela minha cabeça a possibilidade de Jerry se atirar mais uma vez em cima de mim, ou até mesmo me agredir.
- Nada, meu amigo... nada! Mas veja bem... é por isso que eles andam sobre você. Você não se protege. Quer fazer um teste?!
- Que tipo de teste?

 - Dia de semana você nunca está em casa, por volta das 10 da manhã, estou certo?
- Ok. Correto. Como você sabe?!
- Esteja lá amanhã... e verá o que os demônios andam fazendo com sua esposa.


Engoli seco. Mas não sei por que, tomei mais um trago e continuei calado.

- Viraremos a madrugada aqui e amanhã cedo você sairá e irá de encontro a sua mulher possuída por demônios. Depois você volta aqui... e tentamos resolver o problema.
- É. ok... entendido.
- Respondi com desdém.

Perto de meio dia, eu me encontrava esmurrando a porta do apartamento de Jerry Lee com tamanha força que se Jerry não tivesse posto uma porta grossa de madeira maciça com uma quantidade absurda de cadeados, eu teria a derrubado.

Em meu rosto jorravam lágrimas incontidas e eu não conseguia pronunciar uma palavra sequer. Apenas grunhidos e gritos. Jerry abriu a porta com um sorriso terno.


- Olá meu amigo. Entre... você terá aqui mais segurança do que em sua casa... ou qualquer outro lugar.

Entrei ofegante, ainda chorando muito. Mas de fato tive a sensação de estar totalmente protegido ali dentro.

- Você viu sua mulher com outro homem, não foi?
- Com outros Jerry... OUTROS HOMENS!
– Respondi levando as duas mãos ao rosto e esfregando como um alucinado minhas bochechas, até ficarem quentes... quase queimadas.

- São demônios disfarçados... não a culpe.
- Desgraçados, tomaram minha mulher de mim! O que faremos Jerry?!


Jerry se levantou e atirou uma bíblia no meu colo. Logo em seguida foi à cozinha buscar uma garrafa de vinho tinto.

- Não há muito o que fazer..., mas você pode libertá-la. Eu tenho um punhal batizado pelo próprio Arcanjo Miguel, que me visita às vezes, afim de curar minhas feridas. Está guardado no meu quarto.

Nesse momento eu tive que tomar uma decisão importante. Eu precisei decidir se acreditava ou não nas palavras de Jerry Lee.
           
Sem dizer mais nada, Jerry foi até o quarto, trazendo em seguida um punhal de cor escura, coberto de manchas de sangue seco em sua ponta.  Mas não ousei fazer perguntas.  


- Outros já foram libertados por este punhal... – Jerry sempre parecia antecipar minas perguntas.

Respirei fundo, pensando em quão tranqüila era a minha vida antes de visitar Jerry Lee. Pensei por alguns poucos segundos em enfiar o punhal no próprio Jerry, e voltar a viver minha mentira. Mas logo entendi que os demônios estavam avançando em alta velocidade nos seus planos... eles precisavam ser impedidos.


- E as crianças? – Perguntei.
- Você pode criá-las sozinhas. O que você não pode é permitir que seus filhos sejam criados por uma mulher possuída. Logo serão possuídos também! É isso que você quer?! Hã?!
- Não! Não!!


Sem dizer mais nada, me ajoelhei diante de Jerry, que por sua vez entregou-me o punhal como um rei que batiza seu mais novo cavaleiro.

Passei o resto do dia na companhia do meu amigo, bebendo vinho e comendo carne de boi crua. Nossos lábios pingavam sangue vermelho e nos lambuzávamos e ríamos, celebrando a minha iluminação. Agora eu podia vê-los! Perfeitamente. Eles tentavam subir em meus pés e escalar o meu corpo, até o meu peito. E ao anoitecer, Jerry e eu nos levantamos e fechamos toda a casa, mas pude ver as silhuetas horríveis das bruxas, forçando as janelas, rindo, implorando pra entrar.

Nós dois de pé e completamente nus, líamos gritando um ao outro, cada linha das escrituras.

A manhã chegou trazendo um sol de esperança e libertação. O dia da purificação. O dia em que salvei minha mulher das garras dos seres malignos. Duendes, bruxas, eu não os temo mais! Não os temo mais!!

Cheguei pouco mais de 11h da manhã em casa, encontrando minha esposa sentada num sofá em frente à TV, com aspecto visivelmente cansado e ainda ofegante. Com certeza o momento da possessão havia acontecido há pouquíssimo tempo... talvez poucos minutos antes de minha chegada. Ela me olhou com um sorriso cheio sem jeito. Mas eu sei que o Diabo mente.

Me aproximei calado olhando-a nos olhos. Ela pensou que eu fosse abraça-la.

Sem hesitação, cravei num só golpe o punhal em seu pescoço. O sangue jorrou, molhando meu rosto e minha camisa, e logo em seguida, sem olhar pra trás, deixei meu antigo lar para sempre.

Hoje Jerry e eu vivemos em seu apartamento. E não sei bem lhes dizer de onde ele recebe tanto dinheiro para que possamos continuar sobrevivendo aqui dentro, sem nunca sair. Jerry me diz que Deus nos dá os recursos para continuarmos nossa luta.

As crianças estão comigo também. Mas andam infelizes, rebeldes, sempre lutando para sair de casa. Sinto que não as libertamos a tempo. E o sacrifício será necessário, na hora certa.
 

 
Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 24/03/2017
Reeditado em 24/03/2017
Código do texto: T5951018
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