QUE SEJA FEITO
A Lua prateada parecia iluminar apenas o meio da mata, o foco de luz de seu brilho tímido se concentrava em meio às árvores da floresta, todo o resto beirava a escuridão total. O silêncio da natureza era alterado apenas pelo piar das corujas e dos galos que cantavam fora de hora. O assobio das folhas dos pés de eucaliptos recém-plantados em volta da casa da família e o uivo dos lobos seguido dos latidos dos cães, eriçava os pelos da nuca de Christopher. Isso sempre coincidia com o momento em que a lua surgia nas noites de sexta-feira. Nunca conseguiu acostumar-se com esse atrelamento de acontecimentos.
Filho único, cresceu sendo extremamente protegido por seus pais. Acostumou-se a ficar em casa todas as noites, não era permitido sair depois que escurecia, e durante os dias não havia muito que fazer, distribuía seu tempo em ajudar os pais na lavoura e na criação dos animais com os momentos de diversão nos banhos de rio, corrida com os carneiros e principalmente subir em árvores. Moravam numa chácara a mais de cinquenta quilômetros do centro da cidade e como não tinham vizinhos nem amigos próximos, junto a seus pais, divertiam-se contando histórias de terror na beira da lareira. Seus treze anos de vida foram assim, a rotina era a mesma de sempre, não havia reclamações de sua parte. Era o que conhecia, então era perfeito.
Parecia que seria mais uma noite agitada e de incômodos sonoros, igual a todas as outras sextas-feiras. Christopher virou em um só gole o copo de leite gelado com gemada preparado por sua mãe, voltou ao quarto, ligou o ventilador no nível máximo e apagou quase que instantaneamente. No meio da noite os gritos desesperados o despertaram, eles vinham em meio aos uivos costumeiros. Ele tentou se levantar, mas sentiu-se tonto a ponto de quase cair. As vozes eram semelhantes à dos seus pais, na verdade, ele tinha certeza que eram eles. Equilibrou-se na cabeceira da cama, calçou os chinelos e foi até a porta do quarto. Os gritos cessaram, cogitou estar sonhando. Utilizando o corrimão, desceu as escadas, foi à cozinha e bebeu um copo d’água. Sua visão ainda estava embaçada, mesmo assim percebeu uma cartela de remédio caído no pé da mesa. Agachou-se com dificuldade e conseguiu perceber em meio as letras que pareciam saltar aos olhos que se tratava de calmantes.
Andando em zigue-zague, caminhou até a sala, mais uma vez escutou vozes e uivos. Virou-se para a porta e se escorou na parede. Sentindo os pelos mais arrepiados que o habitual, andou até a varanda e sentou-se na cadeira de balanço, avistando os fundos do celeiro. Ao balançar-se, um feixe de luz parecia piscar, de acordo com seu vai-e-vem.
Seus sentidos estavam confusos, barulhos, cheiros e visão estavam intercalando em relação a realidade e a alucinação.
Não lembrava a última vez que havia feito isso à noite. Esfregando os olhos, tentando fazer com que o espectro de mundo que enxergava voltasse a ser o mundo que conhecia e identificar o caminho que aquela luz o levaria. Voltou a escutar as vozes que ainda estavam lá, porém, não haviam mais gritos. O delírio que sentia não levava seu cérebro ao juízo normal. Resolveu tornar a dormir, seu corpo pedia para que voltasse a cama, a tontura não cessava. Porém, ao levantar, os gritos vieram mais desesperados que antes.
Sua mente foi tomada por uma coragem que nunca sentira, seus sentidos pareciam voltar ao estado habitual fazendo-o partir na direção do feixe de luz. Os uivos vinham da floresta e os gritos do celeiro.
Lembrou-se de não ter ido até o quarto dos seus pais. Pensou em voltar para conferir, mas após mais um grito, sussurrou:
— As vozes são deles!
Não sentia receio de ser visto, mas temia pela vida de seus pais. Colocou as mãos no chão e engatinhou lentamente. Chegou nos fundos do celeiro e pela mesma fresta na madeira onde a luz escapava e indicava a direção, notou o padre da cidade com mais algumas pessoas da igreja que frequentava aos domingos. Seus pais estavam amarrados no núcleo de tudo, com os braços para cima e chorando muito. Em frente a eles, no colo de uma mulher, havia um bebê recém-nascido que gemia e às vezes parecia uivar. O padre então começou a dizer:
— Cidade maldita, o demônio manda o que não presta para cá. É hora de eliminar mais uma aberração. Que seja feito!
Prontamente cortaram a cabeça da criança que já estava preparada para tal ato em cima de uma mesa improvisada. Nesse exato momento os uivos começavam e juntavam-se com os gritos dos pais de Christopher que imploravam piedade.
— Não faça isso padre, o senhor não sabe se todos se tornarão lobos.
— Calem a boca, vocês são os únicos que são a favor dessas coisas. Tragam o próximo. Falou o Padre.
Um homem aparentando não estar certo do que fazia entregou a outra criança nas mãos dos responsáveis pela decapitação, mas ao virar-se, deixou uma triste frase escapar por seus lábios.
— Não acredito que permitirei que matem o meu filho.
— Você está tendo uma atitude sábia. Falou o padre.
Christopher mantinha-se imóvel vendo os seus pais inconsoláveis e todo aquele sangue que corria nas mãos dos assassinos. Não conseguia reagir, não sabia o que fazer. Fechou os olhos e tornou a abrir quando escutou mais uma vez:
— Cidade maldita, o demônio manda o que não presta para cá. É hora de eliminar mais uma aberração. Que seja feito!
O padre ordenou mais uma execução, mais um bebê seria sacrificado. Os uivos começaram e Christopher agora ligava os fatos, quando algum bebê era sacrificado os uivos dos lobos aumentavam. Ele sempre pensou que eram sonhos, mas parecia estar enganado.
— Então isso acontece sempre? Talvez seja melhor para a cidade. — Falava a si mesmo.
Os seus pais eram contra e isso ele ainda não sabia a razão.
O padre mais uma vez:
— Cidade maldita, o demônio manda o que não presta para cá. É hora de eliminar mais uma aberração. Que seja feito!
— Mais um? — Questionou Christopher, quase sussurrando.
Mais uma criança foi executada, mas dessa vez não se ouviu uivos, só os choros dos seus pais, que desta vez não estavam sozinhos, outras pessoas também choravam.
Os gritos do pai de Christopher ecoaram pelo celeiro:
— Eu disse que não são todos. Eu já havia avisado.
Um dos capangas desferiu um golpe com o cano da arma, fazendo-o desmaiar na mesma hora.
O silêncio tomou conta do ambiente, Christopher começou a entender e lembrar do remédio, o leite gelado que sua mãe fazia questão de deixar pronto, toda a proteção de seus pais, e sem perceber começou a uivar sozinho. Todos que estavam no celeiro assustaram-se, pois o som estava muito perto. Alguns homens foram tentar capturá-lo, mas ele conseguiu escapar pela floresta.
Temendo ser um ataque de lobos, o padre ordenou que todos fossem embora e deixassem o casal amarrado para servirem de iscas.
— Os deixem aí, os lobos estão com fome, vamos facilitar o jantar deles. — Finalizou o padre.
Christopher esperou a saída de todos e regressou ao celeiro. Assim que entrou, viu seu pai ainda desmaiado e foi recepcionado pelos gritos da sua mãe:
— Saia daqui, não fizemos nada contra eles. Saia daqui.
Christopher parou em meio a sangue e moscas que cobriam boa parte do solo do celeiro e tentou acalmá-la, mas quando foi falar, apenas uivou suave e triste. Olhou para as suas mãos e viu patas, deu uma passada de olhar no resto do corpo e percebeu os pelos escuros ouriçados. Tudo começava a fazer sentido.
A sua mãe, percebendo os gestos do lobo, perguntou:
— Christopher? É você?
Caminhou em direção a seus pais, mas antes de chegar, algo passou cruzando sua orelha e acertando o peito da sua mãe, quando virou para ver de onde vinha, mais duas passaram raspando seu lombo e atingindo a cabeça do seu pai.
Christopher uivou alto, e partiu para cima do padre, que já apontava a próxima flecha para matá-lo também. O disparo foi feito, Christopher com extrema velocidade desviou, saltou em seu pescoço e com uma só mordida quase arrancou a sua cabeça. Os outros que estavam ajudando o padre correram, mas foram encurralados pelos outros lobos que estavam na floresta. Os lobos destroçaram todos que passavam por perto. Quando pensava que tudo havia terminado e que todos os assassinos estavam mortos, virou para seus pais, suas orelhas levantaram-se fazendo com que pudesse ouvir o final dos batimentos cardíacos de sua mãe, que tentava falar algo, mas a voz não saía. Ela tentava avisar que ainda havia último sobrevivente e que estava vagarosamente chegando. A audição de Christopher estava totalmente voltada a ouvir as últimas palavras de sua mãe. Foi nesse momento que o homem acerta sua cabeça com uma pá, fazendo-o desmaiar. Antes que ele pudesse terminar o serviço, três grandes lobos, que voltavam ao celeiro, o impediram no momento em que ele tirava a faca da cintura. Um deles voou na direção do homem e, com um golpe só, quebrou sua coluna e o jogou na parede.
Ele acordou no outro dia, em sua cama, olhou suas mãos e pés, estava tudo normal, era um humano mais uma vez. Começou a rir e gritar:
— Eu não sou lobo, eu não sou lobo. Foi apenas um sonho.
Foi até o quarto dos pais e os dois ainda estavam deitados, pulou de felicidade, os sacudiu e quando os virou, viu os dois furos na cabeça do seu pai e um pedaço da flecha cravado no peito da sua mãe.
No reflexo do espelho, notou o sangue seco escorrido no seu rosto. Na porta, os três grandes lobos o aguardavam, chegara sua hora. Lá em cima, a lua não estava, não importava mais, seu corpo iniciou a transformação final. Era o destino, a matilha seria sua família. Voltou seu olhar a seus pais, não chorou, nem uivou, apenas os lambeu.