1002-TERROR NO VELÓRIO DE MANOEL GIBÃO

Dois defuntos aguardavam, paciente e placidamente, os respectivos enterros. Na ala das salas de velórios do Cemitério Municipal de Ventoleve, parentes e amigos cochichavam animadamente; os coveiros esperavam ansiosos, os dois últimos enterros, marcado para quatro e cinco horas daquela tarde.

O tempo chuvoso que se estendia por uma semana inteira, prometia continuar assim: pesadas pancadas de chuvas de manhã, seguidas por sol forte durante o dia e outra pancada à noite. “São as chuvas de março, fechando o verão” — lembranças de Jobim.

O edifício abrigava as salas de velório e o escritório, bem como um amplo saguão de entrada, com a entrada e saída do cemitério.

Nuvens escuras, quase negras, assomaram-se no horizonte, por volta das três horas. Prenhas de chuva prenunciavam forte temporal. Aproximavam-se rapidamente, impulsionadas pelo vento que balançava as copas das frondosas árvores ao longo dos muros do cemitério.

Os familiares do defunto das quatro horas acharam melhor antecipar o enterro, prevendo o temporal. Medida muito acertada, pois nem bem os coveiros acabaram os trabalhos do sepultamento, começou uma chuva fina, antecipando a chuva pesada e em seguida um temporal com raios, trovões e ventania.

Quando os acompanhantes do enterro chegaram ao edifício, grossos pingos molharam os últimos – os dois coveiros, puxando o carrinho de mão com ferramentas.

A maioria dos que participaram daquele enterro e sepultamento estava com seus carros estacionados ao redor da Praça da Saudade, defronte o cemitério, e as caronas resolveram a situação dos demais.

Já a esta altura o tempo escurecera como se noite fosse. Quer pela escuridão, quer pela chuva, não havia mais condição de realizar o enterro marcado para as cinco.

Os presentes ao velório do defunto cujo enterro seria ás cinco e esperavam enterrar seu morto naquela tarde, ficaram sem ação, sem saber o que fazer.

O administrador do cemitério chamou os filhos do falecido, e disse: mas o administrador do cemitério chamou os filhos do falecido e disse:

— Vamos transferir o enterro para amanhã, ás oito horas. Vamos trancar a sala do velório e fechar o edifício...

— Mas, seu Silveira, a gente... — começou a falar um dos filhos, talvez querendo interpor alguma outra idéia.

— Não tem perigo, senhores. Fica tudo bem trancado e amanhã, abriremos o edifício e o velório ás sete.

Não houve, de imediato, concordância. Pessoas simples, não afeita a tais emergências, queriam ficar no velório, passar a noite com o defunto.

— Não, não é possível. Não temos segurança suficiente e ninguém vai querer ficar trancado aqui dentro, sem possibilidade de sair. O defunto fica sozinho, não há perigo. — afirmou o administrador.

O temporal agora caia com força total. Relâmpagos e trovões, o matraquear da chuva no telhado do edifício em nada ajudavam na solução o problema.

Apesar de ser uma ordem, viúva, filhos, e filhas, genros e noras, cada qual tinha um desejo, uma opinião diferente da daquela: deixar o ente querido, falecido, sozinho pela noite e madrugada. Alguns até revelaram superstição.

— E se ele for levado por almas do outro mundo?

Apesar da seriedade do assunto, um qualquer se saiu com esta:

— E também vai que ele não queira ficar nesta solidão e saia do caixão.

Temores absurdos de gente simples, mal informada e desorientada.

Enfim, assim que houve a concordância ao determinado pelo administrador, foram saindo da sala de velório e dirigindo-se à larga porta de saída do edifício e do cemitério.

Ouviram-se as badaladas das 18 horas. Três mulheres caíram de joelho e começaram a rezar Ave Maria e Salve Rainha.

Lá fora, a chuva continuava. Parecia que crescia em intensidade. Junto com a chuva, uma forte névoa chegava até o chão, ou do chão se elevava. Névoa forte, impenetrável. Pelos vidros da porta de entrada, fechada (mas não trancada) por causa da chuva, nada se via alem do que estava a pouco mais de metro, ou metro e meio.

Quem chegou à porta para abri-la e dar passagem aos que queriam sair foi o coveiro Vicentão, já de roupa trocada e pronto também para ir embora.

Forçou a porta, que abria para fora, e não conseguiu abrir.

— Ara gente, que vento forte!

Outros homens chegaram para ajudar Vicentão a empurrar a porta. Não conseguiram.

— Está trancada!

— Não, não está, vamos empurrar com mais força, gente.

Então já era meia dúzia de pessoas num esforço. E nada da porta ceder.

— Parem, parem! — O administrador chegou agitando o molho de chaves.

—Não adianta, seu Silveira. Ela não está trancada. – falou em altas vozes o Vicentão, já um pouco nervoso com a situação.

E nada adiantou mesmo.

Alguém gritou:

— Valei-me São Pedro, Guardião da chave do céu!

Alguém sugeriu, gritando:

— Vamos pelas portas dos fundos.

— Ela se abre para o cemitério e não existe outro portão ou saída.

Mesmo assim, alguns se dirigiram à portados fundos do edifício, também larga como a de entrada. Ela já estava chaveada e uma grosseira tranca ajudava na segurança.

Silveira, com os molhos de chaves, abriu o cadeado. Outros homens tiraram a tranca.

— Vamos abrir.

A porta foi aberta, entre brados de “OH! E “Não falei?”

O temporal recrudesceu. Raios caiam nas proximidades do cemitério e os trovões eram ensurdecedores.

— Santa Bárbara, São Jerônimo!

O edifício estava totalmente envolto pela densa névoa que nada deixava ver além de poucos centímetros, de um metro, no máximo.

Quando os mais afoitos, os que estavam na frente da pequena multidão, lançaram-se para frente e sentiram uma estranha sensação. A névoa não os deixava passar!

Os três primeiros agitavam-se como se estivessem lutando conta algo tênue, mas ao mesmo tempo resistente. Agitavam os braços, movimentavam os pés para frente, tentando dar passos, mas não conseguiam ir à frente.

Os demais estancaram. Os três agitavam-se á beira da névoa, na conseguiam penetrá-la e todos à beira da porta observavam com horror aquela cena.

Um dos três voltou á porta. Exausto, todo ensopado, os olhos esbugalhados de terror.

—Não adianta, gente. Não consigo entrar nessa maldita neblina.

Os dois outros ainda se agitavam, como se estivessem lutando contra a névoa. Forçaram e forçaram, até que aos poucos foram cansando e caíram ao chão.

— Eles caíram mortos! — Alguém gritou.

Vicentão se adiantou do grupo e também se lançou contra aquela massa branca. No primeiro momento, foi com tanta força que quase desapareceu dentro da névoa, mas reapareceu, como se estivesse sendo empurrado de volta. Não lutou contra a névoa, voltando com o terror estampado na grande face.

— Que coisa, sô. Parece um paredão de algodão.

— Isto é coisa do diabo! — alguém gritou.

— Não invoca o coisa-ruim, não, sô.

Celulares foram acionados. Conseguiram-se conexões e logo pessoas responderam dizendo que a névoa estava sobre toda a cidade, mas que podiam caminhar e dirigir carros, apesar da pouca visibilidade.

Alguns pediram aos amigos ou parentes para virem de carro ao cemitério a fim de salvá-los daquela situação.

Á vista dos dois corpos caídos e semi-escondidos pela névoa, ninguém mais se atreveu a tentar sair pela porta de trás. Voltaram à porta da frente para novas tentativas de abri-la. Tentaram quebrar a porta da frente, inutilmente. Ao contrário da névoa, que era macia e resistente, a porta parecia ter sido feita de concreto. Nem mesmo os pequenos vidros se estilhaçaram.

— Minha Nossa Senhora! O que tá acontecendo?

A pergunta surgida do pequeno grupo ficou sem resposta. Nem mesmo o administrador, homem atilado e de bom senso, tinha palavras de explicação.

Um clima de medo se instalou entre todos. As mulheres, ajoelhadas ao redor do caixão, rezavam um interminável terço. Os homens conversavam, uns em vozes altas, a maioria em cochichos velados. Uma criança de colo dormia tranquilamente deitado numa pequena cama feita sobre duas cadeiras postas lado a lado.

Celulares anunciaram chamadas. Atendidas, tiveram mais notícias de terror: os carros tentaram penetrar na espessa neblina que cercava o cemitério, e não conseguiram. A névoa, apesar de macia, punha resistência contra os veículos e contra qualquer pessoa que tentasse penetrá-la.

Um clima de terror se instalou no velório. Os homens (e algumas mulheres mais decididas) não se conformavam. Mas se limitavam a clamar ou exclamar frases sem efeito.

— Garanto que se o padre Venâncio estivesse aqui, ele daria um jeito.

— Telefonem prá ele vir nos ajudar.

Um celular foi acionado. Quem atendeu foi próprio padre, que já estava na Praça da Saudade, defronte o cemitério. Depois, o dono do celular informou:

— O padre já está aqui, na Praça. Diz que ninguém consegue atravessar a névoa. Nem ele, com água benta, conseguiu abrir uma passagem.

O terror se implantou entre todos.

Na porta do fundo, três homens tentaram arrastar um dos corpos caídos dentro da névoa. Não conseguiram.

— Eles estão presos pela névoa!

Ouviram-se barulho de vidros quebrados. Alguns tentaram abrir os vitrôs e as janelas.

Conseguiram pular para fora. Inutilmente, pois a névoa cercava todo o edifício.

Alguém de fora informou pelo celular que a muralha de névoa cercava todo o cemitério, não sendo possível nem pular o muro, de uma grande extensão.

Ninguém saia ninguém podia entrar. .

Além, podia-se ouvir o ribombar dos trovões, viam-se os raios, e o barulho da chuva no telhado do edifício era intermitente.

Noite de terror

À meia-noite estavam todos exaustos pelo medo, pelo pavor e pelo terror que cada um sentia com maior ou menor intensidade.

Um clarão como se de mil raios iluminou o mundo, cegando momentaneamente todos. Um trovão feito de milhares de tambores batidos ao mesmo tempo ensurdeceu quem o ouviu.

Gritos e exclamações se ouviram como que saídos de uma só boca:

— Valei-me Santa Bárbara!

— Misericórdia, Jesus!

— É o fim do mundo!

— Vade retro, Satanás!

— Vamos morrer! Vamos morrer!

Algumas mulheres caíram ao chão. Desmaiadas ou gemendo histericamente. Um velho tombou morto, da cadeira em que estava sentado.

Pelo espaço espalharam-se as notas dos sinos da Igreja de São Domingos, em doze plangentes badaladas da meia-noite.

O ar se tornou gelado. A névoa começou a se dissipar, subindo em formas de entidades etéreas.

<><><>

A porta do edifício se abriu obedecendo a forças inexplicáveis e por ela passou pequena multidão de desesperados. Muitos caíram nos braços de parentes e amigos que os aguardavam do lado de fora. Outros saíram em desabaladas carreiras, sem destino, completamente alucinados.

Ninguém voltou e entrou no edifício, onde só permaneceu tranqüilo, quieto e em paz, esperando ser enterrado, o corpo de Manoel Gibão, generoso doador de esmolas e espórtulas, autor jamais suspeito de mais de vinte assassinatos por encomenda.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 14 de março de 2017

CONTO # 003 da série MAIS 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 17/03/2017
Reeditado em 18/03/2017
Código do texto: T5943956
Classificação de conteúdo: seguro