FELIZ HALLOWEEN, SENHOR
 
A filha do Dr. Jonas mora na Austrália há dez anos já. Foi para a terra dos cangurus quando fez 22 anos para fazer um curso de aperfeiçoamento do seu inglês e nunca mais voltou. Casou-se por lá e tornou-se cidadã australiana. Voltar para o Brasil, nem pensar. Por isso, o Dr. Jonas costuma viajar para a Austrália ano sim, ano não.
No ano passado nasceu o primeiro neto australiano dele. Por conta disso ele foi á Sidney para conhecê-lo. Como todo avô babou quando viu o garoto. Um menino esperto, com uma pele rosada e uns lindos olhos azuis, herdados do pai, que é um australiano de origem irlandesa.
Dr. Jonas apaixonou-se imediatamente pelo neto. Todo dia costumava sair com menino, pela manhã, para tomar sol. Sidney é uma linda cidade, com muitos parques. Sua filha morava próximo a um deles, e era lá que o Dr. Jonas costumava passear com o neto pela manhã.
Foi em um painel no parque que o Dr. Jonas viu aquele cartaz com a foto de um garoto loirinho, de cerca de sete ou oito anos de idade. Ali dizia o nome, a idade, o endereço, telefone e dava outras instruções para quem, eventualmente, tivesse alguma informação que pudesse ajudar a identificar o paradeiro do garoto. Em letras garrafais, bem destacadas do texto, a palavra MISSING. Ali se dizia que o menino fora visto pela última vez em frente á casa dele, brincando com seu skate. A casa ficava no mesmo bairro em que morava a filha do Dr. Jonas, apenas a dois quarteirões dali.
Dr. Jonas viu aquela foto bem umas dez vezes. E sempre experimentava o mesmo sentimento de tristeza e pena, ao pensar na angústia que a família daquele menino devia estar sentindo. Imaginava o que sentiria se isso acontecesse com seu neto. A dor que sua filha e genro sentiriam. A dor que ele próprio sentiria.  
A data do sumiço do garoto era de um mês atrás, 28 de setembro. Quase um mês e nenhuma informação sobre o seu paradeiro.
 
Os australianos comemoram o Halloween no dia 31 de outubro. Naquele dia o bairro onde a filha do Dr. Jonas mora acordou todo enfeitado. Fibras de vidro ou algodão, com aranhas falsas penduradas, abóboras estilizadas de Jack o’ Lantern, máscaras de bruxas, vampiros e monstruosidades de todo tipo pendiam das varandas e das cercas, em quase todas as casas do bairro. Enquanto andava pelo bairro, empurrando o carrinho do neto, o Dr. Jonas pensava nas raízes dessa estranha tradição que os anglo-saxônicos espalharam pelo mundo, para comemorar o dia dos mortos. Os países latinos, como o Brasil, comemoravam essa data de outra forma. Levavam flores e velas aos cemitérios. Era uma forma bem mais mórbida que aquela adotada pelos povos anglo-saxônicos, que haviam transformado a data em uma bem humorada tradição. Dali a pouco uma multidão de pequenas bruxas, vampiros, magos, lobisomens e zumbis de todos os tipos estariam percorrendo as ruas do bairro, batendo nas portas das casas, dizendo trick or treat?
O Dr. Jonas passou em frente á casa do garoto desaparecido e não pode deixar de sentir um mal estar no peito e uma sensação de aperto na garganta. A casa era a única naquela rua que não estava enfeitada para o Halloween. Nenhuma aranha falsa na varanda, nenhum cabeça de abóbora no jardim, nada de máscaras horrendas nas portas. Parecia uma casa mal assombrada.
O Dr. Jonas suspirou fundo pensando na tristeza daquela família, e instintivamente olhou para o netinho, dormindo serenamente no carrinho, relaxado, como se o mundo fosse um lugar perfeito e seguro, onde uma criança podia dormir tranqüila sem precisar temer absolutamente nada. Agradeceu a Deus por isso e continuou o seu caminho, de volta para casa.
Estava na porta da casa da sua filha quando viu as primeiras crianças, vestidas com suas fantasias, batendo na porta das casas. Logo elas estariam ali também, com aquelas mascarras horrendas, gritando: tricks ou treats. Júlia, sua filha, tinha saído para fazer compras. Davey, seu genro, estava no trabalho. Então cabia a ele, além de cuidar do bebê, atender á garotada que viesse em busca de guloseimas. Júlia havia enchido um pote com balas e pequenos tablets de chocolate, que deixara em uma mesinha num canto da sala. Assim, quando as crianças batessem á porta tudo já estava preparado para cumprir a tradição.
 
O Dr. Jonas divertiu-se muito ao atender três turminhas antes de receber a visita daquele estranho garoto. Olhou pela janela da sala a pequena monstruosidade que tocava a campainha. Pensou que nenhuma das crianças que ele atendera até aquele instante estivera tão bem fantasiada como ele. Usava uma roupa comum de criança, uma calça de moleton azul, uma jaqueta de napa com o distintivo da Kookaburras, a famosa equipe nacional masculina de hóquei sobre a grama que representa a Austrália em competições internacionais. Só que tanto a calça quanto a jaqueta estavam tão puídas e deterioradas, como se tivessem estado enterradas durante muito tempo.
Mas quando abriu a porta com um punhado de balas na mão o Dr. Jonas não pode conter um arrepio que lhe subiu pela espinha acima e foi se alojar no alto do couro cabeludo, arrepiando todos os seus cabelos, como eles fossem um emaranhado de arame farpado.
O susto foi por causa da aparência do garoto. Com certeza a mãe daquela criança, ou quem quer que seja que tenha maquiado aquele menino, era um verdadeiro artista. Nenhum maquiador de Hollywood teria feito um trabalho melhor. Transformara o garoto em um verdadeiro zumbi. O rosto era de alguém que acabara de sair de um túmulo. Usava uma máscara mortuária que faria inveja a um defunto real. Era perfeita, feita de um material que imitava tão bem a pele humana que seria difícil dizer que não se tratava de uma pele de verdade. Tinha um rosto corroído por vermes, cujas ulcerações, nos cantos da boca, nos olhos e no nariz eram tão assustadoras e repulsivas, que o Dr. Jonas não pode conter uma sensação de repulsa e nojo, que lhe embrulhou o estômago.
“ Cruz credo. Essa gente sabe se fantasiar. Não é que esse menino até cheira como defunto?” pensou ele, com um esgar de nojo, ao sentir o cheiro fétido que aquele menino exalava, quando ele postou-se á sua frente e disse, com uma voz trêmula e cavernosa, a tradicional frase do Halloween: tricks ou treats.
Lutando para superar o nojo e a repulsa que aquele criaturinha lhe causava o Dr. Jonas pegou um punhado de balas dentro do pote e sem se aproximar, praticamente jogou-as para o garoto. Ele pegou algumas no ar e abaixou-se para pegar as que haviam caído no chão, depois levantou a máscara horrenda para o Dr. Jonas e disse, com um sorriso medonho: “Happy Halloween, Sir.”
Apesar do desagradável sentimento que estava experimentando, o Dr. Jonas teve a impressão de que já havia visto aquele menino em algum lugar. Num estranho insight, como se um flash tivesse iluminado a sua memória, ele descobriu, debaixo daquela mascara medonha, o rostinho de um menino lourinho e sorridente, que ele já vira anteriormente. Imediatamente veio á sua mente a imagem do painel do parque onde ele costumava passear com seu neto.
Sim. Não havia dúvida. Era ele, o menino desaparecido. O Dr. Jonas o viu sair para a rua, mas estranhamente não entrou em nenhuma outra casa. Ao invés, olhou para tás, como se estivesse chamando sua atenção e caminhou em direção ao parque. Imediatamente, e sem pensar muito a respeito, O Dr. Jonas olhou para o netinho que dormia pesadamente no carrinho. Concluiu que ele não iria acordar tão cedo e saiu atrás do garoto. Viu-o entrar no parque e desaparecer atrás de algumas árvores.
O Dr. Jonas procurou-o por mais de meia hora, sem divisar por onde ele teria ido. Foi então verificar o painel com a foto do garoto desaparecido. Precisava ter certeza. Logo suas dúvidas se dissiparam. A certeza de que aquele monstrinho era o menino mascarado agora era total. Pensou em se internar no espesso bosque para procurá-lo.  Mas logo lembrou-se que deixara o neto sozinho em casa e voltou correndo. Viu com alívio que o bebê não acordara e dormia tão tranqüilo quanto o deixara. Pegou o telefone e ligou para o número que constava no painel.
Em menos de uma hora um batalhão de policiais e bombeiros vasculhavam o parque em busca de um menino mascarado, que um senhor brasileiro havia visto, e que ele jurava, por todos os santos, era o menino desaparecido do cartaz no painel. Três horas depois eles encontraram sinais de terra removida, em um canto escuro do bosque. Depois de cavarem o local encontraram o cadáver já bastante decomposto de um menino de cerca de oito anos, vestido com uma calça de moleton e uma jaqueta de napa com o distintivo dos Kookaburras. Os peritos concluíram que ele havia sido enterrado ali ha cercca de um mes. Provavelmente fora sequestrado, violentado e morto por algum psicopata. Seu rosto, já parcialmente decomposto pelos vermes, era uma máscara horrenda que superava qualquer fantasia mórbida que algum maquiador pudesse ter inventado para comemorar o Halloween. Mas nos seus lábios carcomidos, o Dr. Jonas pode identificar o mesmo sorriso medonho que, algumas horas antes, havia lhe dito: “Good Halloween, Sir.”
O Dr. Jonas disse á sua filha que nunca mais iria voltar á Austrália, nem para ver o neto. Eles combinaram que agora ela que teria que vir ao Brasil. Ou então eles se encontrariam, todo ano, em algum lugar do mundo onde não se comemorasse o Halloween. Este ano eles combinaram se encontrar em Cancun, no México. O Dr. Jonas acha que os rituais maia de sacrifício que alguns artistas locais gostam representar para os turistas nas piramides de Chicém Itza são menos assustadores do que as coisas que costumam acontecer nesse dia em que os povos anglo-saxões costumam homenagear os seus mortos.