O último covarde herói

A vista deste lugar é mesmo bonita. Depois de tanto tempo eu finalmente parei para realmente ver este mundo. Estava sentado no telhado de um prédio pequeno, uns três andares, observando a cidade. Ou, pelo menos, o que havia restado dela. Muitos prédios já haviam caído há muitos anos. Alguns poucos que restavam de pé tinham as janelas quebradas e plantas crescendo ao seu redor. Lá embaixo, os carros estavam amontoados, quebrados, sujos e inúteis. Na verdade, eu nem me lembro mais como se dirige um. Era engraçado e bonito de ver como a natureza estava aos poucos tomando conta de tudo novamente. Nunca vi tantas árvores e outras plantas crescendo em calçadas antes.

O sol estava baixando neste momento deixando a vista ainda mais bonita. Não sabia que horas eram, nunca mais vi um relógio funcionando e também nunca me importei muito em aprender a ver as horas pelo sol. Acreditava que começaria logo a anoitecer. Mas mesmo com toda essa força da natureza, o silêncio era um pouco assustador. Não havia pássaros na cidade. Não me lembro quando foi a última vez que vi um ou ouvi um cantando. Interessante, alguns momentos em cima daquele prédio olhando a paisagem me fizeram esquecer tudo! Eu queria acreditar que isso fosse verdade. Eu queria realmente esquecer tudo. Talvez seja a solidão. Anos de solidão podem te deixar maluco! Anos? Do que eu estou falando, não se passou tanto tempo assim, passou? Quantas vezes eu risquei os dias do calendário mais de uma vez num único dia, rezando para que tudo acabasse? Por causa disso devo ter perdido minha noção de tempo e realidade. O ronco do meu estômago me sinalizando fome me fez sair do transe. Eu precisava comer. Mesmo que procurasse um modo de morrer, não queria que fosse de fome. Eu tinha medo. Medo de ir perdendo as forças, faminto e ao ver a luz da morte, alguém chegasse e dissesse: “Ei! Você está salvo, cara! Viemos buscar você!”. Mas quem eu estava enganando? Ninguém ia vir. Eu sou o único que sobrou aqui! O único neste mundo imenso que uma vez no passado comportou mais de sete bilhões de pessoas! SETE BILHÕES! Dá para imaginar? Quantas pessoas simplesmente... Simplesmente morreram? Sumiram! Foram devoradas pela crueldade da natureza cansada de ser destruída por nós!

Às vezes eu me pergunto por quanto tempo eu lutei. Por quanto tempo eu esperei uma solução. Cheguei aos restos da cozinha de um dos apartamentos que eu tomei como meu. Não havia sobrado muita coisa, sabe? Eu tinha muitas latas nos armários podres e já sem portas daquele lugar. Latas ainda dentro dos prazos de validade. Pelo menos era o que eu achava. Não tinha certeza do ano em que estávamos. Eu havia esquecido. Me forçado a esquecer, para não contar os dias que eu havia passado sem qualquer tipo de contato humano. Quando você não tem ninguém para conversar, muitas coisas acontecem com seu cérebro. Será que o nome que eu achava que era meu, era realmente meu? Ou era só o único nome masculino que eu conseguia me lembrar e o tomei como meu. Assim como havia feito com este apartamento. Este pequeno cubículo que algum dia num passado distante havia comportado uma família. Abri a lata.

Eu comi sem nem me importar com o que estava comendo. Meu olhar estava perdido no vazio daquele lugar. Comecei a imaginar a vida de uma suposta família que vivera ali. Eu havia olhado o apartamento todo antes de me instalar nele, é claro. Estava procurando por eles, mesmo sabendo que nem eles existiam mais. Como eu disse antes. Eu era o único. Encontrei um quarto que devia ter sido cor de rosa em seu auge. Com uma cama destruída pelo tempo e pelas traças. E por tantos outros que passaram aqui antes de mim. Devia ser o quarto de uma menina. Alguns pedaços de plástico que identifiquei como bonecas estavam jogas pelo chão quando cheguei aqui. Panos e algodão que pertenceram a algum bicho de pelúcia estavam espalhados por lá também. Um quarto de uma menina, possivelmente pequena, e agora, provavelmente morta. Num outro quarto encontrei uma cama de casal sem colchão e completamente destruída. Um berço já há muito apodrecido estava tombado em outro canto do quarto. Nunca consegui identificar o sexo do bebê. Também encontrei um pote de comida de cachorro por aí. Uma família completamente normal. Um casal feliz e talvez jovem, com uma filha pequena, um bebê e um cão. O clichê perfeito que as pessoas precisam para serem felizes, antes de um vírus tomar conta do mundo e espalhar o terror.

Eu também tive família uma vez. Uma esposa, cujo nome não me lembro. Um filho adolescente e malcriado, mas muito amoroso. Uma menina linda que me olhava com os olhos azuis e brilhantes e um largo sorriso no rosto quando eu chegava em casa. Disso eu não consigo esquecer. Um dia eu fui um homem muito feliz. Eu tinha uma família incrível e um bom emprego. Tinha amigos e um lar. Um lar que vi destruído um dia, ao chegar em casa e encontrar o corpo de minha garotinha largado em uma poça enorme de sangue no meio da sala enquanto minha mulher chorava desamparada num canto, também cheia de sangue.

“São monstros *****! Monstros! ”

Monstros? Minha filha foi assassinada em casa por algum bandido drogado! Era bem plausível ser chamado de monstro, mas não era. Realmente foi um monstro. Poucas horas depois meu filho chegou em casa também cheio de sangue nas roupas dizendo:

“Começou pai! O que todos nós já sabíamos que um dia iria começar! ”

E ele sorria de um modo doentio que me fez passar mal. Nem se importou em saber que sua irmã estava morta em meus braços. E ele estava certo. Havia começado. Monstros. Tudo que um dia eu achei que apenas faria parte da imaginação dos jovens, filmes e jogos de vídeo game, realmente havia começado. Os tais zumbis haviam ganhado vida! Pessoas que deveriam estar mortas estavam vagando pelas ruas matando tudo que se movesse.

Me forcei a assistir o jornal daquele dia. Um caos completo dominava o mundo. Algum cientista de um país não confirmado era fanático por zumbis e pensou em criar um deles por pura diversão. E o maldito conseguiu. Por diversão ele destruiu o mundo! Criou a arma mais letal que alguém poderia criar. Uma arma que caiu nas mãos erradas e essas mãos disseminaram o fim pelo mundo. O fim em forma de bombas carregadas por pássaros metálicos gigantes! Malditos aviões. No fim do jornal, percebi que minha mulher estava morta há algum tempo. Outra coisa que nunca vai sair da minha cabeça. Ver minha mulher se levantar com os olhos completamente brancos, com sangue na boca e pálida. Tão pálida que eu podia ver suas veias e artérias. Traços azuis e verdes correndo por seu corpo. Um som tão distinto saindo de sua garganta e ela andava a passos mancos em minha direção. Eu não sabia se começava a chorar ou a correr. Até ver meu filho enfiar uma faca dentro de um dos olhos dela e ela cair perdendo a vida uma segunda vez no chão. Meu filho me olhos rindo com lágrimas nos olhos. Ele estava em choque e em pânico, mas ao mesmo tempo, parecia animado de uma forma assustadora. E no mesmo dia que eu perdi minha filha para um monstro e minha esposa para meu próprio filho, eu tomei a pior decisão da minha vida. Metei meu menino com minhas mãos. Estrangulado. Quando terminei, eu não sabia dizer quem havia perdido a consciência primeiro. Eu ou ele.

Terminei de comer e larguei a lata sobre a pia para que fizesse companhia para todas as outras. Eu era realmente um pedaço de merda. Esqueci de tudo, mas não conseguia tirar de minha mente o dia em que minha vida acabou, mas continuei vivendo. Ou melhor, sobrevivendo. Os dias, semanas, meses e anos que se seguiram a esse dia em particular, foram um inferno. Me obriguei a aprender a viver naquele mundo. Já não precisava me preocupar com ninguém porque todos que eu amava morreram no mesmo dia. Aprendi a usar armas de fogo, facas, a fazer bombas caseiras. Me tornei o verdadeiro Magaiver! Por quê? Se eu já havia perdido tudo, por que continuar a sobreviver? Em honra a eles? Não. Eu sou um covarde. Eu tinha medo de morrer. Tinha medo de ser mordido e me transformar naquelas coisas. Eu me uni a outros que também estavam lutando para sobreviver. Nunca contei o que de fato havia acontecido comigo. Apenas dizia que perdi tudo e não tinha família, o que não deixava de ser mentira.

Retornei ao telhado para olhar a paisagem novamente. Agora o mundo estava tingido de laranja. O sol estava se pondo. Eu não queria dormir essa noite. Queira ver a lua e as estrelas. Isso era uma das poucas coisas boas que haviam sobrado neste mundo. Como a energia elétrica não existia mais, ver as estrelas a noite era um verdadeiro espetáculo! Uma colcha azul escuro salpicada de vagalumes. Era o que parecia para mim. Conheci pessoas que dariam a vida só por mais um dia olhando para aquela paisagem. Me deitei e fiquei observando o céu mudar de cor até escurecer. Era um pequeno conforto que me permitia. Foram tantos anos. Tantos anos de lutas incansáveis pela sobrevivência. E um dia. Um dia conseguimos! Mas não foi o bastante. O mundo de fato havia acabado. Aquelas coisas foram morrendo de fome quando os humanos começaram a diminuir de número. Eu me lembro de percorrer algumas cidades sozinho e encontrar pilhas e mais pilhas daquelas coisas apodrecendo. Deviam ter passado dias ali sob o sol e sem comida. O cheiro era insuportável! Mas o interessante é que não havia moscas e nem vermes sobre aqueles corpos. Depois de um tempo eu percebi que os animas desapareceram também. Encontrei alguns poucos mortos em algumas esquinas, mas só. Me perguntava se eles haviam se recolhido e se afastado da fúria do mundo sobre os humanos. Deviam estar escondidos. Claro, a adorada mãe natureza os estava protegendo. Ela só queria vingança contra nós. Seres sádicos e destrutivos que aos poucos estava acabando com o mundo. Os animais teriam sua proteção até todos os humanos morrerem. Daí eles teriam permissão para voltar e tomar conta de tudo novamente. Eles só precisavam esperar que eu morresse.

Eu ainda tinha um bom estoque de comida. Se eu contasse direito e parasse de descontar minha raiva no calendário, que nem sequer mostrava o dia certo em que eu deveria estar, mas eu não ligava, talvez a comida durasse por quase dois anos. É, parece muito tempo. Imagine para mim que estou sozinho. Seria uma eternidade. Todo o meu medo de morrer e minha culpa pelas pessoas que morreram por minhas mãos, me fizeram buscar muita comida e estoca-la toda só para mim. Eu mantinha um apartamento exclusivamente para todos os meus mantimentos e deixava outro para que eu dormisse e guardava na cozinha o que eu precisava, até que acabasse e eu tivesse que buscar mais no meu estoque. Um dia pensei em me livrar de toda a comida, mas meu medo de morrer de fome era maior. Às vezes me pegava rezando para que eu morresse antes de minha comida acabar, mas eu achava que isso nunca iria acontecer.

Tornei a me sentar e olhei para baixo. Havia uma pilha considerável de corpos lá. Tanto de zumbis quanto de pessoas que se cansaram de viver e meteram balas na cabeça. Alguns que estavam lá embaixo foram obras minhas. Outros eu simplesmente atirei pela janela para manter aquele prédio livre de corpos. Um dia eu faria parte daquela pilha também, mas quando? Até que me ocorreu: “Ei, o mundo é bem grande. Você mesmo disse. Sete Bilhões é muita gente! Talvez tenha mais alguém vivo em...”. Outro país. É, o mundo é grande. Até o país onde eu vivia era grande. Eu já não tinha tanta certeza eu estava agora por que eu andei bastante durante minha vida. Podia estar em qualquer lugar. Mas claro, ainda estava na América. Não podia mudar de continente andando. Então, e daí se existisse alguém vivo em outro país? Nunca chegariam aqui. Aviões, navios e helicópteros nem existiam mais. E mesmo que existisse, precisam de combustível. Talvez todas as pessoas que soubessem como usar um desses ou concertá-los já estivessem mortos. Era perda de tempo e esperança pensar em algo assim. Não. Eu morreria sozinho ali. Num dia desconhecido, numa cidade desconhecida. Um homem desconhecido morto aleatoriamente como tantos outros e sem ninguém para se importar.

Olhei para cima. O céu limpo me proporcionava um show único! O único show que eu nunca me cansei de ver. Deitei, fechei meus olhos e dormi. Dormi rezando para não acordar no dia seguinte. Pedindo paz, porque minhas armas há muito já não funcionavam. Eu já estava enrugado, de cabelos e barbas brancos, com dor nas juntas. Eu estava velho e cansado. Esperando meu fim. Um fim que demoraria em chegar. Um fim que eu esperava dia após dia, sabendo que ele chegaria, mas sem saber quando.

Stephanie Telmo
Enviado por Stephanie Telmo em 06/03/2017
Código do texto: T5932461
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.