O AGENTE DA MORTE

A Dra. Vanilde, médica intensivista, andava muito preocupada. Ultimamente estava tendo alguns sonhos estranhos, nos quais se via voando, solta, leve no ar, como se fosse um balão de gás. Subia, subia, leve como um balão de gás, até uma certa altura.  E ao olhar para baixo sempre via uma multidão que tentava agarrá-la, como se fosse um bando de crianças atrás de um balão de São João. Mas, na verdade, era uma turba nervosa, rancorosa, maligna, como uma matilha de lobos; e ela sabia que se eles a pegassem, seria trucidada como se fosse, efetivamente um balão de festa junina, cuja posse é disputada por vários grupos rivais. No começo do sonho tudo parecia ir bem. Ela voava como um pássaro, e ia cada vez subindo mais, se distanciando da malta assassina que rugia lá embaixo. Mas, a partir de certa altura, parecia que o gás acabava e ela começava a cair. Ficava pesada e perdia altura, e ela descia, descia, até que a multidão furiosa estava, novamente, arranhando seus calcanhares. E nesses instantes ela sempre acordava. 

Já fazia alguns meses que aquele sonho se repetia continuamente. Ela nunca fora alcançada pelos seus perseguidores, pois sempre acordava quando eles estavam a pique de pegá-la. A cada sonho parecia que eles estavam mais perto. Sentia o respirar deles. Era como se eles já tivessem entrado no espaço da sua aura, que é o contorno vital que a energia da vida irradia em torno do nosso corpo e que serve, muitas vezes, de proteção contra invasões da nossa intimidade biológica, que é aquele espaço vital que todos nós procuramos preservar. 
Acordava desses sonhos mais cansada do que quando voltava do seu plantão no hospital. E ele era estafante, como são todos os plantões de médico intensivista, que cuida de doentes, em sua maioria em estado terminal, ou com quadros clínicos tão comprometidos que necessitam de cuidados de uma UTI. Aliás, ser médica intensivista não era uma tarefa fácil. Era uma convivência diária com a morte. Em todo o seu curso de graduação em medicina, e depois na prática residencial, e mais tarde na pós-graduação feita para especialização em Unidade de Terapia Intensiva, ela havia sido constantemente advertida de que a sua luta com a morte seria muito mais intensa do que em qualquer especialidade. Ela teria que estar preparada para enfrentá-la todo dia, e suas perdas seriam muito mais freqüentes do que em qualquer clínica.
Mas ela sempre estivera disposta a enfrentar o desafio e durante mais de cinco anos naquela especialidade nunca se arrependeu do ramo escolhido. Enfrentava galhardamente doze horas de plantão, disputando com a morte cada minuto, cada centelha de vida de seus pacientes. E todo paciente que recebia alta na UTI era como se uma grande vitória tivesse sido obtida. Elas eram comemoradas com os colegas, com pizza e ás vezes, quando se tratava de um caso considerado perdido, até com champagne. 
 
A Dra. Vanilde não sabia precisar quando é que começara a ter aqueles sonhos e os sentimentos que agora a assustavam. Uma estranha crença, de repente se instalara em sua cabeça. Essa crença lhe dizia que morreria logo. E ela, que convivia diariamente com a morte, passou a temê-la de tal forma, que a perda de um paciente na UTI a transtornava de tal forma, que ela perdia o controle. Nessas ocasiões, havia sempre uma voz, na sua cabeça, dizendo que ela seria a próxima. As coisas evoluíram de tal modo que a direção do hospital resolveu afastá-la dos plantões e ela foi aconselhada a procurar um psicanalista. Com isso ela, que era um doce de pessoa, tornou-se agressiva, tensa, nervosa e começou a cultivar um grande ódio pelas pessoas e de tudo aquilo que ela antes tanto amava.

 O Dr. Ângelo Moret, o psicanalista com que ela foi se tratar, logo diagnosticou que ela estava sofrendo do chamado complexo da morte. Era, segundo ele explicou, um problema que afeta muitos médicos, especialmente aqueles que lidam diretamente com a morte, como são os médicos intensivistas e legistas.      
“ O primeiro estudioso a diagnosticar isso foi o Dr. Freud”, disse ele. “ Ele descobriu que o nosso inconsciente costuma agasalhar vários instintos naturais, que são originários da nossa própria natureza e são sublimados ou desenvolvidos conforme a nossa história de vida. O instinto da vida é um claro exemplo disso. Através desse instinto a nossa libido se torna um importante motor do nosso comportamento. Ele nos faz buscar a atividade sexual para sentir o prazer e para a preservação da espécie. Assim, valoramos o sexo conforme esse instinto é mais ou menos forte em nós, na medida que a nossa história de vida o sublima ou o reprime. 
“Do outro lado está o instinto da morte”, continuou ele.  Quando sublimado, esse instinto elicia uma força negativa que pode se manifestar em comportamentos destrutivos como o masoquismo ou até o suicídio. Quando reprimido ele se manifesta através de agressividade, ódio, medo mórbido de morrer, ou mesmo vontade de matar.”“O seu inconsciente deve estar entendendo que você o está reprimindo através dessa sua ansiedade de curar os pacientes, livrando-os das garras da morte. E ele se representa, em sua mente, através dessa turba agressiva que quer agarrá-la. Por isso é que você sempre acorda antes que isso aconteça. Pois no dia em que isso acontecer é por que  você efetivamente morreu,” disse ele, com um sorriso ambíguo e meio sinistro, que causou na Dra. Vanilde uma inquietante impressão de desconforto.

A Dra. Vanilde ficou assustada e impressionada com as estranhas explicações do Dr. Moret, e mais ainda com a péssima impressão cinestésica que ele lhe passava. Afora isso gostou do diagnóstico. Tinha sentido. Afinal, esse era um dos sintomas que ela tinha. Um medo mórbido da morte.
“ A cada vida que você salva” disse o Dr. Moret, “ o instinto da morte lhe diz que você está lutando contra ele. E ele está reagindo, cobrando isso de você. É como se ele estivesse querendo cobrar da sua própria vida o tempo que você salvando para os seus pacientes.Algo assim como se a própria Morte lhe dissesse: Vou cobrar de você o que você está roubando de mim.”
 
Algum tempo depois a Dra. Vanilde estava de volta ao hospital dando o seu plantão como intensivista. Estava completamente curada. Voltara a ser a profissional competente que sempre fora. Logo assumiu a chefia da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital. Durante cinco anos exerceu esse cargo e tornou-se uma das mais respeitadas profissionais da especialidade.
Ninguém entendeu porque um dia a polícia estava esperando a Dra. Vanilde na porta do hospital com uma ordem de prisão. Ela foi presa e indiciada como praticante de eutanásia. Acusada de vários assassinatos premeditados, a polícia apurou que ela usava a Unidade de Terapia Intensiva do hospital onde era a chefe, para abreviar a vida de muitos pacientes que apresentavam quadro clínico tendente a óbito. Já há vários meses ela estava sendo investigada pelas autoridades policiais, que inclusive haviam feito gravações comprometedoras de suas conversas com enfermeiras e médicos da unidade, doutrinando-os e aconselhando-os a desligar aparelhos, diminuir medicamentos, praticar procedimentos e protocolos médicos proibidos pela ética médica, com a clara intenção de abreviar a vida dos pacientes terminais.
No inquérito policial e depois, quando o Ministério Público quis ouvi-la para obter mais informações para formalizar a denúncia, ela não respondeu uma palavra. No seu ouvido havia uma única voz que dizia: “ Não se preocupe, parceira, você agora tem crédito suficiente para viver mais que todos eles. Você agora é uma das nossas.” 
A defesa da Dra. Vanilde alegou insanidade e ela foi submetida aos exames regulamentares. O diagnóstico revelou que ela realmente sofria de distúrbios psíquicos relacionados com o chamado “instinto da morte”. Apurou-se que alguns anos antes de os óbitos provocados começarem a acontecer na UTI daquele hospital, ela havia se tratado com um psiquiatra chamado Dr. Moret. Ela havia falado desse tratamento a vários colegas e seu entusiasmo com respeito aos métodos e aos conhecimentos daquele médico eram contagiantes. Devia a ele a sua cura. Várias diligências foram feitas pela polícia para encontrá-lo para que ele pudesse informar sobre o histórico da doutora. Mas tudo foi em vão. Era como se nunca ele tivesse existido. Ninguém o conhecia e nem no CRM havia qualquer registro de um psiquiatra com as características daquele Dr. Ângelo Moret, médico que tratou da Dra. Vanilde. Com o tempo todo mundo chegou á conclusão de que o tal médico não existia mesmo. Era uma coisa da cabeça maluca da doutora. Quando lhe disseram isso a Dra. Vanilde não retrucou. Mas por dentro ela sorriu. Ela sabia que não era verdade, pois o Dr. Moret costumava visitá-la toda semana, em sua cela, desde que ela fora presa. E ele sempre dizia que não se preocupasse com nada do que estava acontecendo, pois ela ia viver muito, muito tempo, e logo iria recuperar, com juros, tudo que estavam tirando dela.
“ Afinal,você adquiriu esse direito quando se tornou minha agente e já pagou um bom preço por ele”, disse ele com aquele sorriso ambíguo que tanto a assustava, mas agora era confortante e tranqüilizador. Por que agora ela sabia o que ele significava.