O rapaz tímido chegava todos os dias às 7 horas no trabalho, e tinha que sair às 17 horas. Mas sua patroa não era uma pessoa normal. Ela era uma sádica, uma pessoa infeliz e monstruosamente feia. Não faltava a ela disposição para humilhá-lo na frente dos outros funcionários, e quase todos os dias, faltando apenas dez minutos para o fim do expediente, lhe pedia favores... trabalhos urgentes. Que acabavam fazendo com que o rapaz tímido ficasse até as oito ou nove da noite, chegando todos os dias morto de cansaço do trabalho... irritado, exausto.

O lugar onde ele trabalhava era um casarão antigo, com portas grandes, quadros e esculturas cristãs. Havia um homem que trabalhava ali há trinta anos... ele sempre contava a história do homem que morou há muitos anos atrás no casarão, e se suicidou após fazer a sua noiva em picadinhos. Soube que ela queria fugir com outro homem. O lugar ficou muitos anos abandonado e agora era um órgão público, cheio de escritórios e de gente de bem. Mas a energia de lá era má, é o que velho homem dizia. E o mal jazia naquela mulher. Aquela supervisora... que se sentava numa poltrona enorme, de couro... achando que tinha poder sobre o pobre menino.

Em quatro meses ele passou por humilhações terríveis, ela o tratava como um cachorro, aos berros... e mesmo podendo ver a tristeza em seus olhos, continuava a pressioná-lo, usa-lo para descontar nele todas as suas ânsias, raivas e mágoas, inseguranças particulares.

Chegando num dia frio de garoa, o menino desceu do ônibus com sono, andou até chegar ao portão do enorme casarão, e ao parar de frente àquela imensidão de concreto - palco de seus dias mais sofridos - disse em voz baixa:

     - Acabou. – E quase conseguiu sorrir.

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Sentou em sua escrivaninha e logo seus colegas de trabalho perceberam que havia algo diferente em seu rosto. Ele estava quase... bonito? Sorria um sorriso sincero mostrando dentes brancos e uma boca linda que ninguém nunca tinha notado. Seu “bom dia” estava alto, confiante. Sua dinâmica no serviço estava impecável. De onde vinha essa nova energia que brotava do rapaz tímido? O tempo passava... ele ouvia as broncas de sempre, os gritos, ela atirava com fúria papeis, projetos em sua mesa. De forma agressiva, violenta, desnecessária. Mas ele não ligava... seus pensamentos voavam.

Enfim... anoiteceu. E – Obviamente - ela queria deixa-lo por mais tempo do que tinha escrito no contrato. Ele aceitou de bom grado, não ficaria ninguém na casa, apenas o rapaz e a supervisora.

As luzes foram se apagando e apenas a sala onde estavam ficaram acesas. Um portão grande ao lado dava num salão enorme repleto de quadros antigos, dos antigos moradores do casarão.

     - Dona Marta, por favor... é que não posso demorar, pois vou perder o      ônibus...

E ela latiu, nervosa:

     - Você precisa mesmo é fazer o seu trabalho direito rapazinho! Se não      errasse tanto, não estaríamos aqui. Agradeça eu não ter te mandado           embora de uma vez!

Já eram dez horas e ele teria que enfrentar um bairro perigoso e pedir a Deus para que seu ônibus não demorasse.

     - Acabou... isso precisa acabar...

Ela então foi ao banheiro dizendo “Não vá embora. Ainda não acabamos! ”. Ele sorriu.

Quando a supervisora retornou, não o encontrou em sua cadeira. E bufando de impaciência – que na verdade ocultava o prazer de ter um motivo para escorraçá-lo - procurou ao redor até encontra-lo no salão ao lado, de costas, olhando fixamente para o retrato do antigo morador do casarão.

     - Santo Deus!! O que você está fazendo parado feito maluco, rapazinho?!      Quer perder seu emprego?

Bradou a mulher enlouquecida, gorda, cheia de bijuterias por todo o corpo, vestindo o seu terno apertado, junto aqueles óculos ridículos que deviam ter custado muito mais que o salário do rapaz.

Sem se virar, ele respondeu,

     - Todos se foram.... O seu “Santo Deus” também já se foi... e já faz      muitos anos que ele se foi...

Um vento terrivelmente forte veio por todos os lados fazendo com que todas as portas e janelas se fechassem com força. O resto de luz que existia se apagou e a supervisora foi arrastada por uma força invisível para dentro de sua sala. Ela berrava palavrões e tentava se segurar em alguma coisa. Era ridículo. Caída ao lado de sua poltrona de couro tão cara, tão desejada, tão importante... tentou mais uma vez bradar em vão:

     - Onde está você?! Vai levar demissão por justa causa rapazinho!! É      JUSTA CAUSA! É JUSTA CAUSAAA!! Hei!! Me ajude aqui! Chame      alguém!!

Uma risada ecoou por todos os cantos da casa, fazendo com que ela se calasse sentindo um terrível arrepio na espinha. De repente, como se falasse em seu ouvido, e estivesse realmente ao lado da mulher, ele respondeu sussurrando: “Você ainda não está com medo suficiente...”.

E então as peles dos braços e das pernas da supervisora começaram a se rasgar, como se estivessem sendo cortados com estilete... e ela urrava e chorava de dor, desmaiando em seguida, mas sempre que desmaiava sua cabeça era arremessada contra o piso antigo do chão. Tentava se mexer, mas não podia, parecia um besouro gordo caído no chão, gritando e bradando para ninguém, pois parecia que nem o rapazinho se encontrava mais na casa.

Vários outros cortes se faziam em diversos pontos diferentes do seu corpo e ela chorava e urrava em total desespero. Seu corpo foi mais uma vez arrastado, sendo arremessado várias vezes nas paredes da grande sala. Ouviu um estrondo como se algo bem grande tivesse caído na sala ao lado.

Fez-se silencio por alguns minutos e aos poucos ela foi sentindo seu corpo novamente. As portas e janelas se abriram, ela não conseguia correr, estava exausta, seus braços e pernas estavam retalhados... ela ofegava e tremia de dor, deixando um rastro de sague por onde passava.

Ao se aproximar da escadaria que a levaria ao portão de saída, pensava consigo mesma... “aquele rapazinho será preso. Vou acabar com a vida dele! Bastam apenas alguns telefonemas. Isto não vai ficar impune! Deus sabe o que faz! ”.

Novamente escureceu e a grande porta se fechou em sua frente. Uma risada ecoou novamente por todos os lados. A supervisora se ajoelhou como fazem os mais crentes dos cristãos. E então, Mais uma vez sentiu um sussurro, como se estivesse colado atrás dela, bufando em seu pescoço. “Já lhe disse que Deus não está aqui...” E foi empurrada por mãos invisíveis escada abaixo deixando seu rastro de sangue arrogante e azul por todos os degraus até quebrar o pescoço no fim da escada.

O resto da noite passou calmo e em silencio.

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Todas as portas se abriram e o sol nasceu. Funcionários iam chegando e se chocando com aquela visão. A ditadora estava morta no chão. Às sete horas, todos os trabalhadores estavam parados, abismados, em volta do corpo da supervisora. Estava morta num grito angustiado de medo. Sua boca estava escancarada e seus olhos quase pulavam da face. Ninguém estava triste. Não sentiam pena e nem pesar. Apenas observavam, calados. Alguns até sorriam.

O rapazinho nunca mais foi visto.


 

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Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 27/02/2017
Reeditado em 17/03/2017
Código do texto: T5925280
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