Sonho Japonês
 
"Assim como uma pequena planta deve enfrentar muitos obstáculos antes de se transformar numa árvore, nós precisamos experimentar muitas dificuldades no caminho da felicidade absoluta" ( Nitiren Daishonin ).
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   Mário Kazuo, descendente de japoneses, retornou ao Japão, juntamente com sua esposa Ana e seu filho, de cinco anos, Yuri. Dessa vez foram para ficar e contemplavam a casa em que morariam dali em diante. Era uma casa de arquitetura antiga, típica japonesa, grande e bonita, com portas longas e elegantes.

  Ana, que era brasileira, sentiu um aperto no peito ao relembrar que deixara sua mãe enterrada. Há três meses ela falecera durante a noite, enquanto começou a gritar e a debater. Tentaram acordá-la de todas as formas, mas ela revirou os olhos em um último espasmo e morreu nos braços da filha. Ana chegou a conclusão de que seria melhor se mudar de vez para o Japão, onde seu marido já tinha trabalho e tentar superar. Porém, desde a morte da mãe, ela passou a sofrer com constantes pesadelos que a assombrava.

   — Gostou da casa, filho? — Mário perguntou a Yuri, segurando sua mãozinha.

   — Sim, papai. Terei mesmo um quarto só para mim?

   — Claro! Eu prometi, não foi?

   O menino sorriu, entusiasmado, já correndo pela casa, observando cada canto novo. Ana tinha os olhos cheios de lágrimas, estava comovida e esperançosa.

   — Seremos felizes aqui, querida — Mário abraçou-a.

   — Hahaue (mãe)! Chichiue (pai)! — Yuri gritou.

   Os dois correram ao encontro do filho.

   — O que foi?

   — Quero este quarto aqui! — O menino tinha um sorriso estampado no rosto.

   Ana respirou aliviada do susto e acabou sorrindo também.

   — Tudo bem, Yuri. Mas a mamãe já falou para você não gritar.

   — Sumimasen — Ele se curvou, pedindo desculpas.

   — Certo, filho. Mas, conta aqui para o papai: por que você gostou tanto deste quarto?

   Yuri ergueu a cabeça, sorrindo. Sem dizer nada, apontou o dedo para o teto. Seus pais se entreolharam.

   — O que tem lá? — Ana perguntou.

   — O que você está vendo, Yuri? — Insistiu o pai, ríspido, assustando o menino que começou a chorar.

   — Você assustou ela! — Ralhou o garoto.

   Yuri saiu correndo, indo brincar em outro lugar.
 


"Que bosque é este? Não o reconheço, mas é lindo. Há um campo cheio de flores vermelhas e amarelas. Quero correr entre elas. O cheiro é bom! Pego uma e aspiro seu perfume. Mas quando olho de novo, vejo uma abelha saindo por entre suas pétalas. Me assusto e a deixo cair. A abelha balança as asas e vai crescendo, crescendo, até ficar do tamanho de um touro. Grito, e corro em meio as flores. Ouço o barulho das asas dela bem atrás de mim. Me viro e a abelha está voando bem acima de mim. Ela mira seu ferrão no meu rosto e..."
 
 
   — Querida! Querida! — Mário balança a esposa, que acorda assustada, com suor escorrendo pela fronte.

   — A abelha!

   — Não tem abelha nenhuma, Ana. Foi só mais um pesadelo.
Ana se levantou e tomou um banho, ainda sentindo o perfume de flores, na intenção de acalmar seus pensamentos. Mário voltou a dormir e ela não se deitou, temerosa por outro pesadelo. Foi ao quarto do filho checar se estava coberto. Ao se aproximar, ela notou que a luz estava acesa e ouviu vozes.
Sorrateiramente, abriu uma brecha na porta e viu o filho sentado, com as pernas cruzadas e cantando uma canção infantil.

   Seu coração acelerou e um arrepio percorreu seu corpo. Nem ela nem o filho conheciam aquela melodia. Entrou rapidamente no quarto.

   — Filho? Por que não está dormindo?

   — Eu estava cantando, mamãe.

   — E onde aprendeu esta canção? — Ana engoliu em seco, temendo a resposta.

   — Minha amiga me ensinou.

   Ana estava trêmula e seus olhos percorriam cada centímetro do quarto, procurando por algo que nem mesmo ela tinha certeza do que era.

   — Agora quero dormir. Estou cansado — O garoto bocejou.

   — Tá bom, vem, deita com a mamãe — Ana se aconchegou ao lado do filho.

   — Canta para mim — Pediu o menino.

   Ana começou a entoar uma canção que sempre cantava para o menino, mas Yuri a interrompeu.

   — Essa não. Aquela que eu estava cantando.

   — Mas eu não a conheço, filho.

   — É só fechar os olhos e cantar.

   Ana acariciou os cabelos negros do filho e fechou os olhos. Sem perceber, começou a cantar a mesma música que o filho cantara. Ela não podia explicar, mas as palavras saíram de sua boca no mesmo ritmo em que cantaria uma música já conhecida.

   Sem se dar conta, Ana também adormeceu, e logo acordou assustada por um novo pesadelo. O dia já estava claro e seu filho dormia sereno. Ela se levantou e foi à cozinha preparar o Asagohan.

   Ana estranhou ao perceber que a porta da geladeira estava aberta e a caixa de leite caída no chão.

   Mário chegou pouco tempo depois, acompanhado de Yuri.

   — Filho, você derramou o leite ontem à noite? — Ana perguntou ao garoto, que desviou o olhar — Pode falar, não vou brigar com você.

   — Não fui eu.

   — Então foi o papai?

   — Também não.

   — Então quem foi? — Ana perguntou, já exaltada.

   — Foi a Yumi, mamãe. Mas ela está pedindo desculpas, foi sem querer.

   A cor sumiu do rosto de Ana, e ela não disse nada, apenas olhou para o marido.

   —Quem é Yumi? — Mário tomou a palavra.

   — Minha amiga.

   — Filho, sei que está difícil se adaptar a um novo país e ainda não ter amigos, mas também não precisa inventar histórias, está bem?

   — Não é mentira. Ela está aqui — O garoto se levantou, com cara de bravo — Pede desculpa. Agora, papai.

   — Yuri, pare com isso! — Mário gritou.

   — Pede desculpa! — O garoto gritou de volta.

   A tigela de arroz que estava em cima da mesa caiu no chão, assustando a todos.

   — Pede desculpa, AGORA! — Yuri começou a chorar, gritando cada vez mais alto.

   As cortinas começaram a balançar devido a um forte vento, e a torneira se abriu.

   — Shitsureishimashita! Desculpe, Yumi — Ana se curvou —
Desculpe por duvidar de você.


   O vento cessou e a torneira fechou.

   Yuri se aproximou da mãe.

   — Ela quer saber se você a desculpa por ter derramado o leite — Sua voz era doce e mansa.

   — Sim, eu desculpo.

   O menino se virou na direção do pai.

   — Pede desculpa.

   Mário repetiu o gesto da esposa. Yuri sorriu e voltou para seu quarto cantando.

   Ao ver o garoto se afastar, Ana se voltou ao marido.

   — Precisamos sair daqui.

   — Não podemos. Não sem antes saber quem é este espírito.

   — Isso é loucura, Mário! Fantasmas não existem!

   — Cale-se! — Mário falava baixo — Quer colocar nosso filho em perigo?

   — Ele já está em perigo.

   Ana foi ao quarto do garoto, na intenção de tirá-lo da casa, mas a porta estava trancada.

   — Yuri? Filho, abra a porta!

   — Não! Você quer me separar dela!

   — Filho, por favor! — O pavor foi crescendo no peito de Ana

   — Abra!


   — Não, Hahaue! Não vai me separar dela! Ela é minha amiga!

   Mário, ouvindo os gritos, se juntou a eles e conseguiu abrir a porta. Yuri estava com a mão erguida, como se estivesse de mãos dadas com alguém.

   Ana puxou o braço do menino, mas ele permaneceu no mesmo lugar, como se alguém o tivesse puxando pela outra mão.

   — Ana, solte nosso filho — Mário ordenou.

   Ana o soltou e ele se agachou em um canto do quarto.

   — Ela está triste! E a culpa é de vocês! — O garoto chorava
 
   — Ela disse que vai embora.


   — Então vá logo e deixe nossa família em paz! — Ana empurrou o marido e foi para o quarto fazer as malas.
Mário agachou próximo ao filho e o abraçou.

   — Você pode perguntar para a Yumi o que ela quer da gente? Se ela precisar de ajuda para alguma coisa, nós podemos ajudar — Mário falava calmamente.

   O menino olhou para o lado e pela primeira vez, Mário percebeu uma luz azulada refletir.

   — Ela não quer nada, Chichiue. Ela só quer ser amada.
Mário sentiu a garganta fechar e engoliu em seco.

   — Papai, Yumi disse que gosta de você. Ela gosta de todos nós.

   — Agradeço, filho — O homem juntou as mãos e se curvou
 
   — Arigato, Yumi.


   — Não deixa ela ir embora, por favor — O garoto implorou.

   — Conversarei com sua mãe e tudo ficará bem.

   Ao ver seu filho sorrir, Mário o deixou e foi conversar com a esposa. Ele não conseguia explicar, mas sentia no fundo da alma que Yumi não lhes faria mal.

   — Eu não fico mais nenhum dia aqui — Ana fechava as malas enquanto chorava.

   — Por favor, tente entender.

   — Entender o quê? Que podemos ser amigos de um fantasma?

   — Não sabemos quem ela é, e nem "o quê" é — Ele falava baixo olhando para os lados — Pode ser perigoso para Yuri. Tenha cautela!

   Depois de muito conversarem, Ana aceitou passar mais uma noite na casa e sair sorrateiramente no dia seguinte.

   Apesar da mãe implorar para que o garoto dormisse com ela, ele não quis sair de seu quarto. Ana passou praticamente a noite toda acordada, com medo, sempre indo ao quarto do filho espiar. Mas o menino dormia tranquilamente. Quando não foi mais capaz de conter o sono, fechou os olhos e mergulhou no mundo dos sonhos.
 

 
   "Está quente aqui. Apesar de não poder ver o Sol, sinto o calor queimando minha pele. A paisagem é avermelhada e tudo ao meu redor está em ruínas. Há templos desabados e carros incendiados. Onde estou? Caminho lentamente, olhando para todos os lados, tentando encontrar um caminho para onde seguir. Depois de horas caminhando, meus pés estão cheios de bolhas e minha roupa ensopada de suor, enfim vejo uma porta. Mas não há casa, nem paredes. Apenas uma porta amarela, bem no meio do caminho, sem nada sustentando-a. Chego perto e a toco. Não há fechadura. Tento empurrar, mas ela não abre. Minha boca está seca, estou com muita sede. Colo meu ouvido à porta. Ouço sons de água corrente. Uma cachoeira? Começo a esmurrar a porta, gritando. Eu preciso de água! Mas ela não abre! Desisto, escorrego por ela e sento no chão, chorando. Repentinamente a porta se abre e eu caio de costas no chão poeirento.

   Me levanto rápido e olho ao redor. Há uma cachoeira sim, mas não é de água. Um líquido vermelho cai lá de cima e segue seu curso como um rio. Do líquido sai uma fumaça branca, e o calor se torna mais insuportável ainda. Volto correndo para a porta, mas ela se fecha antes que eu a atravesse. Tento dar a volta por ela, mas há uma força intransponível.

   A água vermelha começa a ondular, soltando bolhas como se estivesse em ebulição. Barulhos arranham o fundo de minha garganta,mas não consigo gritar. O pavor me cala e me paralisa.

   A água eleva-se em forma gelatinosa e molda-se à forma de um homem gigante. Porém, ele possui quatro braços e duas cabeças".
 
 
   Mário acordou com a esposa remexendo e grunhindo na cama. Ele acendeu a luz e chamou por ela.

   — Querida, acorda!

   Ana suava e suas mãos estavam geladas e trêmulas. Por mais que Mário a chamasse, ela não abria os olhos.
 
 
   "Aquele monstro vermelho sai andando do meio das águas borbulhantes e vem em minha direção. Seus braços não terminam em mãos, mas em garras afiadas. Corro. Corro para o mais longe possível, o quanto minhas pernas cansadas aguentam. Ele se aproxima rápido. Olho na direção dele bem na hora que ele lança um de seus braços e me agarra".
 

   Mário segura a esposa com força, sacudindo-a e gritando por seu nome.

   — Acorda, Ana! Por favor, acorda!

   Em vez de acordar, Ana começou a convulsionar em seus braços. Mário se desesperou. O medo de perder a esposa da mesma forma da sogra o assolou.

   — Papai — Yuri adentrou o quarto e ao seu lado, uma menina japonesa. Apesar de não ser nítida sua imagem, dava para reconhecer  a expressão de uma menina — A Yumi disse que pode ajudar.

   Mário deitou a esposa de lado e encarou o que podia enxergar de Yumi.

   — Então me ajude, por favor. Salve minha esposa!
Yumi se aproximou de Ana e sussurrou ao seu ouvido:

   —"Dou meu sonho para o bom Baku comer".
Yumi se afastou e Ana parou de tremer e de sua boca saiu uma voz rouca e abafada.
 
 
   "Depois de muito me chacoalhar, o monstro me joga com força no chão e me chuta. Meu corpo dói. Meus braços sangram onde ele tocou. Sem ter o que fazer e sem esperanças, me encolho e tento proteger a cabeça com os braços.

   Ouço uma voz. Uma, duas, três vezes.

   Será que estou ficando louca? Então, repito:

   "Dou meu sonho para o bom Baku comer"

   "Dou meu sonho para o bom Baku comer"

   "Dou meu sonho para o bom Baku comer"

   O monstro que me agredia grita e se afasta. Caio deitada no chão, sem forças. Vejo uma criatura surgir. Ele é grande, tem o corpo e uma tromba de elefante, patas de tigre, olhos de rinoceronte, rabo de boi e enormes presas de marfim.

   Ele pula para cima do monstro vermelho e o morde, arrancando um braço. O monstro tenta acertá-lo, mas ele é mais rápido e forte, arrancando uma das cabeças da besta. O monstro tenta fugir, porém a criatura pula, jogando-o no chão e o engolindo.

   Não sei se grito ou agradeço.

   A criatura se volta para mim, aproximando-se lentamente. Coloca as patas dianteiras em meu peito e olha no fundo de meus olhos. Vejo refletido neles, a imagem de uma menina japonesa de cabelos negros, lisos e curtos".
 
 
   Ana sentou-se de supetão, puxando o ar com dificuldade.

   — Mamãe! — Yuri abraçou-a, chorando, recebendo um beijo de volta.

   Um pouco cambaleante, a mulher se ergueu e caminhou até o quarto do filho. Ela viu a figura de Yumi, exatamente igual a imagem que viu nos olhos da criatura.

   — Você me salvou!

   Ana ajoelhou aos pés da silhueta translúcida da garota, que refletia uma luz azulada.

   — Zashiki-Warashi não salvou Ana. Baku salvou — Yumi respondeu.

   — Mas foi você que o chamou.

   — Hai! Sim, mas Yumi prometeu. Zashiki-Warashi vai embora.

   — Arigato — Ana curvava-se constantemente — Por favor, me perdoe, não vá embora. Fique!

   Ana nunca mais teve pesadelo algum. Viveu longos anos felizes e quando chegou sua hora, uma menina de olhinhos puxados e cabelos negros, segurou sua mão, beijando-a.