O EQUILÍBRIO DO TERROR
O senhor Bertrand entrou na taberna, sem prestar muita atenção nas pessoas que lá estavam. Só queria refrescar-se após o longo e quente dia de trabalho. E para isso, nada melhor do que uns bons goles de cerveja.
No ambiente escuro da taberna, a fumaça grossa de cigarro temperava o ar de mistura com cheiro de bebida e de suor. As paredes de pedra cinzenta davam ao lugar um ar de calabouço. Seo senhor Bertrand tivesse observado entre as mesas rústicas, perceberia a presença de dois novos freqüentadores sentados em um dos cantos, na penumbra.
Os dois homensidênticos, obviamente gêmeos, trajavam ternos muito bem cortados e ajustados. Ainda que um estivesse vestido com terno negro e o outro com terno branco, o que realmente os diferenciava era a expressão de suas faces.
Bertrand podia não estar interessado nos demais fregueses do bar, mas os gêmeos manifestavam vivo interesse em sua figura. Na verdade, observavam-no desde sua chegada. Parecia mesmo que estavam ali com esse exclusivo propósito. Enquanto olhavam para ele e conversavam entre si, o homem de preto gesticulava como se estivesse argumentando em defesa de Bertrand, dando a impressão de estar ponderando a opinião do homem de branco.
O gêmeo de branco, por sua vez, possuía,o tempo todo, uma expressão debochada e cruel em seu rosto. Meneava a cabeça negativamentee ria, com desdém, a cada argumentação de seu irmão. Seu olhar ígneofixava-se no homem com uma evidente ânsia de prejudicar. Um olhar que, de tão cruel, poder-se-ia imaginar, seria capaz de arranhar a pele olhada.
Bertrand estava mergulhado em seus pensamentos. Preocupava-lhe a saúde da mãe, já muito idosa e desenganada pelos médicos. Com apenas três meses de vida estimados pela Medicina, dona Aurora já não reconhecia ninguém e apenas balbuciava sons desconexos. Seus belos olhos negros, que foram irresistíveis na juventude, agora estavam vazios, sem expressão.
Bertrand imaginava se não seria mais humano suspender-lhe a medicação para que ela pudesse finalmente expirar e encontrar a paz.
Por vezes não via sentido em manter a vida de um corpo que já não abrigava mais uma mente. Esses pensamentos traziam-lhe uma perspectiva de alívio, mas soterravam-no em vergonha. Como poderia estar pensando nisso? Encerrar avida de sua própria mãe?
Pagou sua conta e saiu pela porta dupla mergulhando de novo no calor daquele dia. Ao chegar à casa verificou a situação de Dona Aurora. Ela dormia e respirava tranquilamente. Se ele fingisse esquecer os últimos meses, poderia mesmo dizer que ali estava um mulher dormindo em plena posse de sua saúde. Tanta serenidade trouxe de volta os pensamentos sobre uma morte misericordiosa. Seria só apertar o travesseiro contar seu rosto.
Pensou que a combinação do dia quente com a bebida e a angústia constante trazida por essas ideiasobsessivas, já estavam afetando sua mente, pois, por um breve instante poderia jurar que havia um homem sentado à cabeceira de sua mãe, a encará-lo. Esfregou os olhos e o homem deterno branco sumiu.
Saiu do quarto e sentou-se na sala olhando pela janela. Lembrou-se de uma cena de sua infância quando sua mãe e seu pai ainda eram jovens e todos estavam à mesa do almoço. Todos felizes, sorridentes, seu pai acabava de ser promovido. Aurora explicou-lhe que a vida ia melhorar. Isso poderia significar mais brinquedos no Natal. À noite, ao levantar-se para tomar água, viu seus pais conversando e rindo na sala, até que sua mãe puxou seu pai pela gravata levando-o para o quarto, rindo baixinhoe com a ponta da língua entre os dentes. Agora, já adulto riu-se por pensar que aquilo era algum tipo de brincadeira, e entendia bem o motivo de tantos mimos entre eles na manhã seguinte.
Quando seu pai morreu pensou que sua mãe choraria a até morrer também. Mas eles já eram velhos e ele já era um homem feito. Dona Aurora recolheu-se aos trabalhos de seu artesanato e às pequenas festas em família. Nunca mais houve outro homem em sua vida, mas nem por isso parecia triste. Apenas resignada.
Sem se dar conta, Bertrand estava com um sorriso sereno nos lábios. Aqueles pensamentos trouxeram umasensação de calma que havia tempos não sentia.
Naquela noite sonhou que acordava perdido em meio a uma terrível tempestade. Acordava no meio de um vasto descampado que se estendia até onde sua visão alcançava. Sem entender o que fazia ali e atordoado pela trovoada que o ensurdecia resolveu fugir. Mesmo não vendo nenhum abrigo, fosse de mato ou de uma construção, de uma roca ou do que quer que fosse, resolveu fugir. Mas a despeito de seu esforço para correr dali, seus movimentos eram débeis e dominados por uma lentidão que o desesperava.
A trovoada não era como nenhuma outra que já tivesse visto. E mais ainda, a cada nova tentativa de acelerar sua fuga, os trovões tornavam-se mais furiosos. A tempestade o repreendia.
Estreitava os olhos para protegê-los das gotas de chuva que machucavam-lhe o rosto como agulhas, e de repente viu surgir a figura de uma mulher. Ela estava distante, e se destacava no meio do campo vazio. Não conseguia ver o rosto dela, pois a chuva era intensa e os trovões perturbavam seus pensamentos.
Mas eis que subitamente, a chuva e os trovões cessaram, e ele pôde ver a mulher estender os braços em sua direção.
_ Filho... – disse ela.
O pesadelo acabou e Bertrand sentou-se na cama, ofegante e banhado em suor. Sentia-se como se estivesse acabando de escapar de uma afogamento. Mãos trêmulas e coração acelerado.
“-Ela me chamou de filho!” – pensou. Imediatamente, correu para o quarto da mãe. Lá chegando, percebeu que aurora se mexia na cama inquieta e tomada por uma forte tosse rouca.
Olhando aquele quadro, ele não sabia se sorria ou chorava, uma vez queera aprimeira vez em meses que a mãe saía da imobilidade em que se encontrava. Aurora havia se tornado pouco mais que um cadáver que fechava os olhos à noite e os abria durante o dia. Nada mais que isso. Mas agora ela tossia e se debatia.
Antes que pudesse se aproximar mais do leito da mãe, viu surgir dois homens idênticos, à cabeceira da cama. O homem de branco falou primeiro, e sua voz era fria e metálica. Ele apenas disse: _ Mate-a!
O outro homem, de roupa negra, estendeu a mão espalmada para Bertrand, como se pedisse paciência, falou com uma voz serena: _ Não faça isso, Bertrand! Sua mãe irá espiar suas culpas naturalmente. Não faça nada precipitado.
Ainda olhando incredulamente para aqueles dois homens, Bertrand tremia, e piscava os olhos insistentemente, como se esperasse que os dois desaparecessem com a limpeza dos olhos.
Mas eles não desapareceram, e reunindo forças para falar, ele perguntou:
_Quem são vocês? – questionou com um de voz inicialmente débil.
_ Meu nome é Amoroso. Sua mãe tem uma dívida comigo. E agora eu vim cobrar. – disse o homem de branco.
O homem de preto falou em seguida:
_ Meu nome é proibido para você. Eu sou o seu anjo da guarda.
Bertrand não acreditava que estava acontecendo. Pensou que era um sonho dentro de outro sonho, mas não. Era bem real.
_Sente-se, Bertrand! – ordenou, Amoroso- _Ouça o motivo que nos traz até aqui.
Bertrand puxou a cadeira acolchoada que estava sempre ao lado da cama enquanto olhava para Aurora, que estava imóvel novamente. Amoroso falou:
_ Sua mãe me procurou em um momento típico da existência de vocês. Um momento de desespero e fraqueza.Quando seu pai morreu, sua mãe procurou uma de minhas filhas para que o trouxesse de volta à vida. Eu a atendi. Meu irmão, como sempre, tentou demovê-la de sua intenção. Mas em sua cegueira, ela não lhe deu ouvidos. Já eu, sempre atendi àqueles que estão desesperados de amor. Mas agora eu vim aqui para cobrar a promessa. Vim para levá-la Mas sua mãe está se recusando a morrer. E eu não posso matá-la. Para isso, preciso de você. Preciso que você a mate. Em troca, eu lhe darei algo que você quer muito, algo que você quer desde que era um menino.
_ Não quero falar com você. – disse Bertrand.
Em seguida dirigiu-se ao seu anjo da guarda: _ O que você vai fazer? O que tem para me dizer?
_ Eu estou aqui para aconselhá-lo. Apenas aconselhá-lo.Para convencê-lo a ficar do lado do Bem. Meu irmão tomará atitudes diferentes das minhas para convencê-lo a matar sua mãe. Eu estou aqui para ajuda-lo a resistir. No fim, a decisão será sua. Assim como foi no caso de sua mãe. Eu tentei argumentar com ela para que não fizesse o pacto com Amoroso, mas ela estava cega em sua paixão, enão me ouviu.
Enquanto Bertrand tentava assimilar o absurdo daquela situação, questionou-se se não estava enlouquecendo ou se não seriam dois vigaristas tentando impressioná-lo para roubá-lo ou aplicar algum golpe.
Amoroso interrompeu-lhe os pensamentos:
_ Não somos golpistas, Bertrand. Não queremos roubá-lo, nem aplicar-lhe nenhum outro tipo de golpe. E tampouco você está enlouquecendo.
De olhos arregalados, Bertrand encarou Amoroso. A demonstração foi eficiente, ele não tinha mais dúvidas de que estava diante de seres sobrenaturais. De repente, um fato para o qual ele não tinha atentado emergiu em seu pensamento: como assim, trazer seu pai de volta à vida?
_Onde está meu pai? – perguntou ao homem de branco.
_Quero saber onde ele está.
O anjo respondeu-lhe:
_ Seu pai mora na Rua Constantine, número 26. Se quiser visitá-lo, nós o acompanharemos. Eu sei que você adoraria vê-lo novamente. sonhou com isso várias vezes desde que era menino.
Bertrand olhou para a mãe imóvel na cama e concluiu que não haveria problema em deixá-la por algumas horas e saiu de carro em companhia dos dois irmãos.
Enquanto cruzavam a cidade na madrugada, Bertrand questionava seus acompanhantes:
_ Por que vocês se dizem irmãos? – perguntou.
_ Porque somos! – grunhiu Amoroso.
_Não vê que somos idênticos? – continuou – _Nós nos separamos por causa da Queda. Eu caí, junto com Lúcifer e os outros. Meu irmão seguiu fiel ao Céu. Ele é um anjo. Eu sou aquilo que vocês chamam de demônio.
Por um momento, Bertrand teve vontade de rir, sentiu-se em uma daquelas cenas de desenho animado em que o personagem tem um diabinho em um ombro e um anjinho no outro. Mas o riso foi só uma possibilidade remota, não havia graça nenhuma na situação.
Depois da fala de Amoroso, o silêncio reinou no carro. Chegando ao seu destino, Bertrand saiu do carro e pensou no que diria quando batesse à porta de uma pessoa às duas horas da madrugada com um conversa estranha. Muniu-se de coragem e apertou a campainha. Os gêmeos ao seu lado, um de cada lado. Nada. Nenhuma resposta de dentro da casa. Apertou novamente. Ouviu um distante e impaciente“Já vai!”. O olho mágico se abriu deixando entrever um pouco da luz fosca do interior da residência.
_O que você quer? – perguntou a voz familiar do lado de dentro. Uma versão envelhecida da voz de seu pai.
_Preciso conversar com o senhor. – disse Bertrand.
_ A essa hora? Você deve estar louco! Eu estou armado, meu chapa! Suma daqui enquanto é tempo.
Bertrand ouviu palavras na sua cabeça e disse:
_Eu preciso falar-lhe sobre sua vida antes de o senhor acordar no descampado. O senhor se lembra? Lembra da mulher velha com um olho vazado?
Ao soarem as últimas palavras, a chave revirou na fechadura atabalhoadamente, empunhada por uma mão nervosa. A tranca metálica estalou umas três vezes e a porta se abriu revelando a figura de um homem velho de pijama e arma em punho. A arma tremia na mão do velho.
Ao mesmo tempo em que Bertrand se espantava ao reconhecer a face de seu pai no rosto daquele velho, uma voz soava mais uma vez dento de sua cabeça: “_ Ele não pode nos ver, só vê você!”
_Entre e não tente nada! Eu te mato comum único tiro. – disse o velho com voz firme e mãos trêmulas.
Bertrand entrou devagar, tentando demonstrar que era inofensivo. Estava nervoso. Aquele era o encontro mais desejado de sua vida. Mas não era exatamente como ele esperava.
_ Como você sabe dessas coisas? – perguntou o velho.
_Quem te mando aqui?
_Ninguém me mandou... Quer dizer... Não, ninguém me mandou.
_ Como você sabe da velha? Eu nunca contei sobre ela nem para a minha mulher!
_Por que nunca contou? Teve medo de quê? – perguntou Bertrand, sentindo que o velho estava intrigado. Teve um pouco de medo de que a ousadia da pergunta desencadeasse a raiva do homem, mas tal não aconteceu. O homem mandou-o sentar e apontando-lhe a arma falou:
_Porque eu tive medo de que ela pensasse que eu estava louco. – disse o velho, acalmando a voz.
_Eu não pensarei isso. Pode me contar. Pense que a forma como eu descobri essa passagem da sua vida pode ser muito pouco usual, e que se eu contar a qualquer outra pessoa, também serei julgado louco.
O velho balançou acabeça positivamente, e sentou-se, mas sempor a arma de lado.
_Ela estava com a mão sobre meu peito quando acordei deitado em um campo imenso, um campo em que a vista se perdia. Ela olhava diretamente para meus olhos, como se estivesse na expectativa de que eu acordasse. Eu estava enrolado em um lençol.
_Quando teve certeza de que eu estava desperto, deu uma risada medonha e disse:“_Amoroso, meu pai, cumpri a missão que você me deu. Um morto a menos para os portões.” Então ela jogou-se no chão,se transformou em uma cobra e fugiu rapidamente entrando em um buraco mais à frente de onde eu estava.
_Levantei-me e me dirigi ao buraco onde ela desapareceu, mas do nada armou-se uma tempestade, a trovoada mais violenta que eu já vi. E quando eu tentava me aproximar do buraco, meus movimentos eram lentos, eu não avançava! Por mais que corresse, mais eu ficava. E quando voltava a insistir, a trovoada piorava. Então desisti daquela loucura toda e decidi ir embora dali. Foi então que percebi que eu não tinha para onde ir porque...
_Bem, eu não tinha nenhuma lembrança da minha vida antes daquele momento.E ainda não tenho. Apenas saí coberto com aquele lençol e finalmente fui parado por policiais, que entenderam que eu era um homem perdido e sem memória e me levaram para um hospital. Para todos os efeitos, minha vida começou ali.
_ Quem vive aqui com você? _ perguntou Bertrand.
_ Minha mulher, meus dois filhos e um neto pequeno. – respondeu o velho.
Bertrand não conseguiu conter o choro e levantando-se disse: _Obrigado por sua gentileza em me receber. Eu vou embora.
Olhando para seu envelhecido pai, ele sentia o coração apertar, ao pensar que toda a sua infância maravilhosa junto dele tinha sido perdida no tempo. Todas as brincadeiras, os carinhos e a vida junto de usa mãe, tudo havia sido perdido.
O velho, olhando fixamente para Bertrand percebeu a familiaridade dos traços espelhados no rosto do visitante.
_Oh, meu Deus... – exclamou o velho, tocando a face de Bertrand.
_Preciso ir, senhor! – disse Bertrand, levantando-se decidido. Não queria causar dor àquele homem a quem tanto amava e de quem tinha tido tanta saudade.
Sem dizer mais nada, apenas saiu da casa e andou na direção do carro acompanhado pelos dois homens, invisíveis para o velho, mas que estiveram presentes durante toda a conversação.
_Por que não contou a ele como descobriu sobra a velha? – perguntou Amoroso.
_ Não quero que ele sofra. – respondeu Bertrand.
_Você fez muito bem. – disse o homem de preto, que continuou:
_ A partir de agora, você estará livre para decidir. _ disse o anjo da guarda.
_ Você terá de resistir ao poder de convencimento de meu irmão, terá de confiar em mim. Cuidado! Não ceda ao medo nem à raiva.
Enquanto o anjo falava, Amoroso ria baixinho.
Bertrand voltou para casa e dormiu. No dia seguinte ao acordar, sentiu um mal estar repentino teve um mal estar repentino e sentiu sua boca encher-se subitamente.
Eram fezes!
Correu o mais que pôde, não acreditando no que acontecia, e lavou-se freneticamente. Mas o cheiro continuava e o gosto horroroso não saía de sua boca.
_E então, vai matá-la para mim, ou não? – ouviu a voz de Amoroso.
_ Jamais. – gritou em resposta.
Neste momento, as fezes desapareceram como que por mágica, sem deixar vestígio ou cheiro.
_ Resista, Bertrand. – disse o anjo da guarda.
Bertrand percebeu que aquele seria o jogo de Amoroso para forçá-lo a matar Aurora. Mas decidiu que não cederia. Amoroso teria de aumentar a dose na tortura.
Entendendo que a atitude de sua mãe ao procurar a feiticeira de olho vazado era motivada pelo amor que ela sentia pelo marido, Bertrand teve pena de Aurora. Compreendeu que ela tinha sido enganada pelo demônio que ganhou sua alma, mas que não lhe devolveu o amado. Seu pai continuou a viver, mas sem se lembrar de Aurora ou de ninguém da parte anterior de sua vida. Um truque desonesto de alguém que nutria imenso ódio pelos humanos.
Convencido de que era presa de um demônio, comprou muitas bíblias e com as folhas delas forrou todas as paredes de casa. Monitorava o estado da mãe constantemente, mesmo sabendo que a única ameaça a ela era ele mesmo.Pensou que estava protegido com sua casa forrada pela Palavra, mas quando a noite veio, foi alvo de nova investida do demônio que queria convencê-lo a dar cabo da vida de sua própria mãe.
À noite, Bertrand começou assentir fome. Comeu de tudo o que havia na casa, mas nada lhe satisfazia. Foi quando começou a sentir um cheiro irresistível. O estômago roncou, apesar de não estar vazio. Saiu pela rua, farejando como um cão de caça, buscando a fonte daquele cheiro maravilhoso. Na rua, debaixo de uma chuvinha fina, o cheiro de terra molhada era um tempero a mais para o sinistro apetite que sentia crescer dentro de si. Seu olfato levou-o à fonte do delicioso cheiro. Bertrand parou diante do portão de um cemitério. A presença de um vigia o espantou dali.
Ele procurou um ponto desguarnecido ao longo da rua, e escalou o muro lançando-se dentro do cemitério. Uma vez lá dentro, correu desorientado pela profusão de cheiros que se apresentavam tão atraentes naquele momento. Continuou a correr sem saber onde parar, até que tropeou numa cova rasa, que ainda não havia recebido o acabamento de cimento. Caiu com o rosto enfiado na terra molhada. Suas narinas foram invadidas pela mistura de cheiro de terra molhada e carne em decomposição. Começou a cavar avidamente, não se importando com o sangramento nos dedos feridos pela escavação. Finalmente, a visão do corpo ali enterrado. A presença dos vermes que pululavam no cadáver, não o intimidou: arrancou um naco da carne do defunto e comeu. Comeu sofregamente, como quem come a iguaria mais deliciosa que existe.
Fartou-se de seu diabólico manjar, até que repentinamente, recobrou a noção normal das coisas. Foi possuído por uma náusea, um asco incomensurável e vomitou de nojo e terror. Terror de si mesmo, do que havia feito. Era só desespero. O cheiro da podridão exalando de suas entranhas, a boca e os lábios sujos pela massa putrefata que devorara...
_ E então, Bertrand? Vai fazer aquele servicinho para mim?
Era Amoroso, zombando de seu sofrimento.
_ Saiba que posso ser ainda mais convincente do que isso. – disse o demônio.
Mas outra voz fez-se ouvir na escuridão do cemitério:
_ Não se entregue! Você não será derrotado. Acredite em mim, você está no caminho certo. Resista! - era o anjo da guarda.
O pobre homem já não tinha mais resistênciamental para suportar aquilo, e gritou em agonia. Foi quando o vigia apareceu, de arma em punho, ordenando ao intruso que pusesse as mãos atrás da cabeça.
Na confusão mental em que se encontrava, Bertrand não entendeu a ordem e levantou-se bruscamente, indo em direção ao vigia, que atirou.
O tiro fatal lançou-lhe ao chão. Enquanto o sangramento abundante extraía sua vida, a face de Bertrand iluminou-se com um sorriso. No meio de toda aquela miséria, ele se libertava. Via diante de si, o descampado do sonho e sua mãe, de braços estendidos para ele:
_Filho... Eu sabia que você não falharia comigo. Obrigado. Seu sacrifício me salvou.
Ele abraçou a mãe e sentiu novamente o conforto que sentia quando era apenas um menino. Ganhara aeternidade. Ao seu lado, o anjo da guarda surgiu sorridente: _ Você salvou sua mãe da ira de meu irmão, e salvou a si mesmo! Parabéns!
Naquela manhã, o “Primeira Hora”, principal jornal da capital saía com a seguinte manchete:
Noite de Terror
DEVORADOR DE CADÁVERES É MORTO AO PROFANAR TÚMULOS
Mãe do profanador é encontrada mortana residência da família
FIM
TEMA: EM FAMÍLIA
Total de palavras: 3451 Palavras
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