ESQUIZOFRENIA
 
   Naquele espaço extremamente claustrofóbico, centenas de condenados cumpriam suas sinas merecidas. As paredes ásperas e sem vida encolhiam-se num abraço cínico infligindo mais dor aos que ali foram jogados, tornando a sensação de confinamento um peso extra naquelas almas atormentadas. No ar existia tanta maldade, tanta podridão que as severas leis impediam o contato entre os apenados, um único esbarrão seria o estopim para uma grande rebelião, apenas as injurias eram ouvidas ressoando pelo corredor.
 
   Trancafiados na solitária o tempo passa sem fazer alarde, dias se tornam anos e anos se perdem na eternidade. O ódio presente em cada coração se multiplica em busca de uma possível vítima que sacie a grande sede de maldade, qualquer um pode ser o escolhido, basta possuir uma pequena fraqueza emocional. Cada individuo, de sua forma especial, alimenta sua raiva de modo tão pujante que se faz ouvir do outro lado do muro. Os gritos e lamentos combinados numa grande orgia uníssono minam até a vontade dos mais virtuosos sucumbindo-os à simpatia daqueles que somente a ruina tem a oferecer.
 
   A criatura humana é suscetível às mazelas do universo, palavras ditas ao pé do ouvido podem mudar valores adquiridos durante uma vida inteira.
 
   Ainda bem que as prisões existem, apesar de muitas vezes nos sentimos envolvidos por elas, mas aquela era especial, diferente. Cada cela tinha seu ocupante e este sua pesada carga de pecados misturada a seus próprios excrementos, apodrecendo-se no odor de suas feridas abertas fecundadas pelas larvas da insanidade. Ali onde a luz fora banida, somente o calor da fermentação de tanta carne morta fazia o ambiente ser tão quente quanto o deserto da Jordânia ao meio dia em pleno verão.
 
   Clemência, piedade... Eram palavras vãs naquelas bocas imundas. Ao se cansarem de tentar iludir as almas incautas, voltavam ás antigas blasfêmias. Dentre vários, seria impossível encontrar um de possível recuperação, certamente ali não haveria redenção. O esquecimento cessaria aquelas vozes para sempre malditas.
 
   Não tão alheio ao drama dos condenados, numa casinha simples, rodeada por pequenas árvores frutíferas, no fim da rua do velho Moinho, Lúcio tinha seus próprios problemas:
 
   - Eles estão dormindo. Mate-os agora.
 
   Atormentado desde jovem, nem mesmo ele discernia o sonho da realidade, vagava entre os dois mundos, sempre jogado de um a outro aleatoriamente. Os pesadelos e as visões eram tão nítidos que ninguém o persuadia do contrario.
 
   - Não posso, são meus pais. Respondia sem titubear enquanto seu olho direito piscava incessantemente, era um movimento imperceptível para o autor, mas se repetia quando queria encerar um assunto.
 
   - Eles não gostam de você. Te acham anormal, vão te jogar num manicômio. Nós somos sua família, eles não. Nós somos um só.
 
   Por mais que as vozes açoitassem sua mente, ele não se dava ao trabalho de encarar seu interlocutor, desistiu quando o médico tentou lhe convencer que aquilo estava apenas na sua imaginação.
 
   Caminhando de um lado a outro do quarto, desejava apenas o precioso silêncio que arbitrariamente lhe fora roubado. Numa tentativa de abafar aquela irritante ladainha tentou falar mais alto:
 
  - Eu sou normal... Sou normal... Normal...
 
  Enquanto seguia sem rumo algum, batia freneticamente em sua têmpora com a mão espalmada. Seus olhos vermelhos graças à abstinência de sono se tornavam miúdos e tristes, lágrimas já foram todas derramadas. Turvando seu raciocínio as vozes viravam ameaças. O calmante já não valia nada.
 
   Do outro lado da porta sempre trancada, angustiados, seus pais choravam abraçados.
 
   Dentre vários objetos inúteis, na cabeceira da cama, sobre uma mesinha improvisada um pedaço de rocha ganhava destaque. Vez por outra ele a segurava firme, apertava-a contra a testa, arremessava-a na parede, seu desejo era destruir tal objeto. Sem aviso tornava-se doce, ficava em silêncio encantado pelo artefato surrado já sem nenhuma aresta. Quem o visse compenetrado pensaria que tentava enxergar seu interior, viajava em fantasias. Mas a calma era passageira. Os xingamentos e maldizeres retornavam, mesmo assim não poderia se desfazer do singular pedaço de pedra.
 
   - Eles vão lhe internar. Ninguém gosta de você.
 
   As vozes falavam direto em sua cabeça, a dor o desnorteava. Fatigado, sentou-se aos pés da cama, suas pernas tremiam convulsivamente. Com um garfo surrupiado da mesa do jantar arranhava seu peito com a força de um leopardo. Seu corpo já não tinha mais espaço para outras cicatrizes. A dor era sublime. Era a única coisa capaz de silenciar as malditas vozes. A dor afugentava todos seus fantasmas, sentia-se livre e em paz com seu Deus.
 
   O sono chegou de mansinho, quando percebeu estava prestes a ser dominado, os calmantes exerciam suas funções. Esgueirou-se cama acima. Com a cabeça embaixo do travesseiro dormiu tranquilamente.
 
   Agora estava bem, encontrava-se em seu reino. Suas vestes brancas totalmente imaculadas arrastavam-se pela imundice sem ser contaminada. Na mão esquerda uma vela para afastar a escuridão, desnecessário, pois seus olhos acostumados enxergavam como se o sol banhasse aquela masmorra. Na direita um longo flagelo.
 
   O corredor era extenso, forçando as vistas seu fim não era divisado, centenas de portas trancadas se dispunham simetricamente ao longo da caminhada. Ele sabia aonde ir, qual porta escolher.
 
   Os incontáveis passos abafados pela poeira abundante do piso chamaram atenção dos prisioneiros, das celas surgiam pedidos de clemência, maldições e toda sorte de ameaças. Surdo, caminhava obstinado alheio à balburdia, seus olhos fundos fixavam-se no infinito. Deteve-se diante de uma dentre tantas outras iguais, um leigo não distinguiria, mas o guardião sabia ao certo o que cada cárcere selava. Naquela masmorra nada o ameaçava, ele era o soberano ungido pelo poder divino.
 
   A porta de uma madeira antiga não possuía frestas, a poeira denunciava o pouco uso, uma grande cruz de ferro fundido adornada por símbolos sagrados dominava-a de cima abaixo. Empurrou-a sem esforço. A seu toque um gemido mórbido ecoou pelo recinto calando momentaneamente os residentes.
 
   Lúcio entrou na cela. Ali haveria punição.
 
   Com a chama da vela, vários castiçais presos nas paredes foram acesos iluminando o local, nem os cantos ficaram imunes à luz. Estavam no interior estéreo de uma caverna. Diante de si, acorrentado pelos cotovelos e joelhos uma massa de carne rosnava furiosa. Dois pares de correntes cravadas no corpo detinham a criatura que debatia como um lambari fisgado pelo anzol.
 
   - Eles odeiam você. Sou seu único amigo. Liberte-me agora. Esbravejava o prisioneiro fustigado pela incomoda claridade.
 
   Lúcio estudava o grande homem com seus quase dois metros e meio de altura, seu corpo desprovido de pele deixavam nervos e músculos salientes. Os longos dedos em forma de garras se estendiam na direção do visitante, os olhos amarelos sem as pálpebras tinham algo de ameaçador, sem lábios, apenas os dentes se moviam durante as blasfêmias.
 
   Sereno, caminhou em direção ao condenado, este implorava pela liberdade. O flagelo agitou-se no ar. Três faixas de couro trançadas com pequenas esferas de metal incrustradas a cada dez centímetros por toda sua extensão fazia com que aquele instrumento de tortura parecesse um colar de pérolas que se findava em três pingentes do tamanho de bolas de gude cravejada de espinhos.
 
   A punição começou. Setenta vezes sete chibatadas não expurgariam seus crimes, mesmo assim o açoite estalava, suplicante o monstro recebia os golpes jurando desforra. Os urros de dor viajavam por todas as outras câmaras. O burburinho aumentava em solidariedade ao maldito flagelado. Vingança era a palavra de ordem. No fim, o condenado já nem se movia, seu sangue profano umedecia o piso de terra batida. O carrasco não demonstrava cansaço, não verteu uma única gota de suor, divino e imaculado deixou o recinto.
 
  De volta à realidade, seu aspecto era diferente. De súbito se jogou da cama no chão, seu corpo banhado em suor debatia-se em espasmos doloridos, a urina incontinente saia descontrolada. Delirante, gritava palavras incompreensíveis enquanto batia a cabeça no piso de tacos. Seu desejo era abrir um enorme buraco em sua existência e dentro dele atirar todos os seus temores.
 
   Ouvindo o barulho assustador, do lado de fora do quarto trancado, sua mãe lamentou:
 
   - O Lucinho não quer tomar os remédios. O que será do nosso filho?
 
   - Teremos que chamar os médicos. Sozinhos não conseguimos ajudá-lo. Sentenciou o pai desanimado.
 
   Quando a ambulância estacionou em frente à calçada, dois homens de uniforme branco além do condutor foram recebidos pelo casal. O paciente estava calmo, as pancadas continuas minaram sua resistência. Deixou-se subjugar, nem precisou ser medicado. Seguiu seus captores como um cãozinho acompanha o dono.
 
   Chorosa a mãe recusava abandonar o amado filho, era seu tesouro, o bem maior que jamais sonhara perder. Num abraço de despedida, em seu ouvido Lúcio segredou.
 
   - Eles se escondem na escuridão. Estão por toda parte fingindo ser como nós, estão todos livres mais eu sei quem são. Estão atrás de mim. Eu não sou louco... Não sou...
 
   Nada mais restava a fazer, a sombra da derrota pairava sobre aquela casa, nada mais fazia sentido, a noite foi longa e amarga, ter um filho morto talvez fosse menos cruel que ver alguém tão amado sendo levado como um demente para um lugar onde a sorte era desconhecida. O que seria de Lúcio num lugar privado de sua liberdade, passaria seus dias regados a drogas antidepressivas ou atado em seu leito. A tristeza fez morada no par de corações que ficava para trás.
 
   No dia seguinte ao da internação, a custo a mãe entrou no quarto, deveria fazer uma limpeza pois o mau cheiro contaminava o resto da casa.
 
   Jogou varias coisas fora, rabiscos em papeis rasgados, roupas sujas a muito não usadas, dobrou o lençol ainda sujo de sague e com cheiro de suor. A pedra rançosa estava sobre a mesinha, ela nunca entendeu o proposito daquela coisa apesar de temê-la como arma. Por alguns instantes segurou-a com seu olhar perdido. Sem muito pensar, ao arremessá-la no cesto de lixo teve a impressão de ouvir nitidamente alguém lhe condenar:
 
   - É culpa sua. Você não soube cuidar dele. Você não é uma boa mãe.
 
   Com o peito transbordando de remorso saiu chorosa buscando consolo nos braços do esposo.

* * * *
 
   Estava Ele sentado às portas do templo quando escribas e fariseus trouxeram uma mulher apanhada em adultério.
 
   - Mestre, esta mulher adultera segundo a Lei de Moisés deve ser apedrejada até a morte. O que o Senhor nos diz. Falando assim tencionavam testá-lo pois qualquer resposta poderia desmoralizá-lo.
 
   Olhando a turba furiosa e a mulher pecadora, Ele abaixou-se e começou a escrever no chão com seu dedo. Como insistiam na pergunta, levantou-se e disse:
 
   - Aquele que dentre vós esta sem pecados, que lhe atire a primeira pedra.
 
   Abaixando-se novamente terminou seu desenho. Era um triângulo equilátero tendo nos vértices a palavra da salvação, no centro uma pequena rocha do tamanho de uma maçã. Por fim fez um circulo em torno da figura.
 
   Das pessoas furiosas a seu redor, sombras demoníacas desprendiam-se como camadas de cera expostas ao sol. A pedra sedenta como uma espoja voraz tragava para seu interior todo o mal que desesperado tentava se agarrar a qualquer possibilidade de fuga. Nenhuma resistiu a tão poderosa sucção.
 
   Livres da possessão, os fariseus dispersaram pacificamente, cada um seguiu seu caminho sem nem saber o que faziam ali. Ele se levantou, olho nos olhos da mulher e disse:
 
   - Mulher, onde estão seus acusadores? Ninguém te condenou? Nem Eu tampouco te condeno; vai, e não peques mais.
 
   Pedro, tu és pedra e sobre ti erguerei minha igreja. Mais foi Paulo, um soldado convertido após a crucificação que se responsabilizou por guardar aquela prisão. Somente os fortes dominarão seus próprios demônios e aquela pedra, aquele claustro seria passando de mão em mão até o dia da redenção.
 
 
Temas: Prisão, em família e sonhos.
Total de Palavras: 1937 Palavras

 

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