O Despertar
“A vida é um breve sonho”
“A vida é um breve sonho”
A vida Giulian:
O amanhecer acompanhado de breve confusão ao acordar estendia seu manto entorpecente sobre Giulian. “Sonhos loucos” pensou bocejando, o corpo apegado ao cansaço de uma noite turbulenta. As cores povoavam sua mente, um flutuar do próprio ser, sensação de navegar em nuvens quentes de vapor. Esse flutuar estava só na sua imaginação, o corpo nessa realidade sombria e real sentia as dores de uma violenta queda despenhadeiro abaixo.
A sempre sonolenta esposa dormindo o sono dos anjos, imóvel e tranquila, ressonava baixo com lentos subir e descer. Faltava preparar lhe o café e partir antes que ao acordar desse por sua falta. Alguém precisava aproveitar o que as areias do sono de Morfeu tinham para oferecer no seu esplendor.
Encontrou com a rua, que o esperava todas as manhãs com seus carros e movimento, respirou fundo o ar fresco da madrugada. “Que dor que não me larga”, aquilo se repetia a cada passo, um sofrer ao imaginar que adoecesse. O trabalho foi monótono como sempre, repetitivo, constante e exaustivo. Outro alívio igual ao da manhã foi a brisa da noite que acabava com tudo isso.
Amanhecer, retorno da confusão ao acordar, algo estava muito errado. Não conseguiu abrir os olhos, estavam selados, como uma ausência de pálpebras e não a junção da pele. A sua posição pareceu não fazer sentido, como se as suas pernas fossem uma e os braços embaralhados. Todo seu ser estava torcido em voltas que não podia compreender. E após tentar inutilmente se acalmar, percebeu que estava flutuando. “Que alívio, estou sonhando”. Precisava só esperar passar, mais uns instantes para retornar a sua vida, a realidade, ao cômodo e ao habitual .
Não sabia precisar o tempo. A cabeça ou o que sentiu ser seu crânio, estava cheio de bolinhas de gude chacoalhando no vazio. Tinha alguns graves problemas nesse momento para lembrar de onde era e seu próprio nome. A noção perdida de tempo o apavorava, mas mais ainda aquele esquecer que o dominava. Repetia fatos em suas ideias de bolinha de gude que se agitavam deixando o momento infinitamente pior. Esperava pelo fim daquele pesadelo.
Ouviu ruídos indistintos, alguém entrava no quarto, tentou gritar e um som horripilante saiu de sua boca, como uma harpa desafinada sendo tocada por gatos demoníacos, ou algo muito próximo disso. Em seu pavor, o corpo ao qual desconhece como próprio, agitava se em contorções inumanas. O forte desejo de abrir os olhos e acordar, se resumia ao contorcer e grunhir.
Sentiu a presença de algo, uma mão suave segurou o que ele ainda entendia como sua cabeça, e começou a abrir seus olhos com algo afiado e morno, que cortava com precisão e não machucava. Abriu os olhos. Aquilo era muito pior, se pudesse falar pediria para o cegarem definitivamente.
Não entendeu o que se ilustrava a sua frente. Nada que lembrasse conhecer, só formas coloridas. Tomado de pânico, gritou. Não recebeu resposta nem de sons ou movimentos do ambiente. Tentou respirar e nada mais correspondia aquela intenção. Perguntas se assomaram em sua mente e ao lembrar... “Onde está minha esposa?”, aquele som de harpa do inferno saiu por diversos locais. Recebeu uma resposta que fazia uma vibração ao seu redor, nada compreendeu. “Onde está meu corpo”, era o que mais temia perguntar, algo como choro agudo e um vibrar o consumiram por muitos instantes imprecisos, não há mais tempo a contar.
A vida de …
Amanhecer? Não houve momentos de repouso ou o entrar na longa noite. Não havia noite, não havia o repousar. O sono não o tomaria novamente, só aquela vigília eterna e o nunca mais deixar levar pelos sonhos do panteon. O despertar foi um momento confuso e o viver o alívio esperado há muitos tempos que o furtaram uma vida plena e livre. Sua doença nunca mais o tomaria, como a tantos tomou. Agora era livre e precisava ajudar um alguém a quem muito desejava.
O centro de repouso e retorno estava lotado. Agora que relembrava da sua vida real e após aprender a se expressar com seus sons, locomover com seu vibrar tão próprio e apropriado, sentiu pena de ver todos seus semelhantes nos quartos de recuperação. Muitos flutuavam e se contorciam de forma difusa, e os líquidos nas paredes passavam suas vidas “humanas”, naquele pesadelo terreno, tedioso e limitado.
Seguiu para as centrais, levou um pouco para se alimentar no caminho. Precisava achar aquele alguém a que tanto almejava ter. Com a perícia dos cuidadores, havia algo semelhante à esperança humana. Aquela vida perdida que o dominou com tantos períodos de tempo pareceu tão distante, que não podia estar mais contente pelas probabilidades de isso acontecer.
O novo centro de repouso estava cheio, já na entrada teve que forçar passagem através de vários grupos. O perigo era desfazer suas ideias numa passagem daquela. Mas estava ansioso por achar aquele alguém. Tinha algo que era sua honra de fazer, antes que pudesse seguir com sua vida.
Todos os seres mudaram seus tons de cores e espectros. Havia um show de luzes nas salas. Aquelas futilidades o aborreciam, e ainda dentro de um centro de cuidados, não havia consideração pelos doentes que nada podiam manifestar. Ao chegar à sala de sua obsessão, Giulian que agora não tinha um nome humano, mas apenas um som entre tantos, falou em sua voz de vibração e estática, um algo entendido e parecido com “Cassandra”.
A vida humana da amiga passava na tela. Giulian permaneceu esperando por um tempo incontável aguardando a autorização do cuidador, para que pudesse cumprir seu desejo. Acompanhou o que viu na tela com olhos que viam além e se sentiu envolver após algum tempo. No líquido, Cassandra sentada na mesa de escritório que era ao lado da sua, apareceu com o rosto inchado de tanto chorar.
A vida de Cassandra:
Amanhecer. Rápido despertar, o sono não a segurava por mais nem um minuto. Tinha que ir trabalhar. Alguém a esperava, uma pessoa que continha todo seu desejo e se tornou a razão de sua vida. Mas não da forma que todos pensavam e comentavam no serviço. Ela preferia outro gênero. E não era a parte amorosa que a atraia, era algo além. Sentia que Giulian tinha as respostas e que sua vontade irrefreável de fugir e ir para outro lugar poderia ser explicada.
Ele tinha sonhos muito profundos e ricos em histórias fantásticas. E mesmo com momentos em que pouco lembrava, para ela era algo de uma realidade muito melhor do que essa. Queria sonhar o mesmo que ele, mas não conseguiu nada nem perto das magníficas e cheias de ficção científicas produções cerebrais de seu amigo. Algo lhe dizia que aquilo era o certo.
Agora, quase um ano depois, as buscas foram reduzindo e todos haviam sido consultados do paradeiro de Giulian. Onde até a esposa dele se tornou sua amiga mais próxima. Nada mais restava de esperança. Esse era o fim de Cassandra, não tinha nada no mundo inteiro que significasse algo perto do que aqueles sonhos. A decisão já estava tomada e lentamente para que sua coragem não fugisse no momento, ela montou um plano de suicídio. Era muito mais difícil, quando não se é impulsivo e quando precisa ter a certeza que funcionaria. Não era algo para chamar a atenção, mas para sair daquele mundo ao qual não pertencia.
A vida de …
Era o grande fim, aquele que nenhum ser esperava ter que passar, mas consistia em grande honra de conceder. Giulian agora no mundo ao qual pertence e que finalmente despertou do pesadelo de ser humano, poderia finalizar com a existência de Cassandra. O cuidador preparou as ferramentas, enquanto ele observava os últimos momentos de sua amiga na tela líquida na parede. Ela se contorcia na cama, espumando pela boca e enfunando os lençóis ao redor de seu corpo convulsivante. Após algumas doses de heroína e uma quantia grande de cocaína, aquela overdose seria fatal.
Cassandra sabia o que estava fazendo. Desde seu nascimento assim como ele, ambos sabiam que algo estava muito errado, destoante. Giulian caíra no sono de sua doença quando estava perto de seu desenvolvimento final, quase uma fase adulta, no auge de iniciar uma vida livre do corpo de seu pai. Cassandra era sua irmã. Brotando do corpo do progenitor e prontos para descolar e sair para vidas individuais. Mas a doença pegava os filhos que permaneciam no corpo doente e antes que fossem separados do pai, foram todos levados para o centro, repousando até sair do pesadelo coma. O progenitor morreu a alguns tempos, sem antes poder ver seu filho voltar.
Com a faca de cera incandescente, que consegue penetrar e cortar definitivamente o corpo semi-físico desses seres, Giulian decepou a cabeça da amiga. Finalizado sua amaldiçoada vida humana e infelizmente não pode trazê-la para a realidade. A forma que o “crânio” se assemelha é algo perfeitamente esférico. E a mente permanece funcionando mais algum longo tempo. Giulian pode levar a irmã para casa.
A vida de Giulian:
Após o seu planeta completar as voltas na estrela anã vermelha onde orbitava, a vida fluia em pleno vapor. Nada o deixava mais contente que saber que muitos como ele estavam livres. E ainda mais o extasiava seus novos filhos que grudados ao seu corpo, lhe faziam sentir completo. A doença ainda assola alguns lugares por todo o planeta, mas poucos foram os reincidentes.
Amanhecer. Confusão mental em extremo, tudo girava à sua volta. Não sabia o que era, mas sentiu o que seria a pior sensação de toda a infinitude de sentir que jamais imaginou ser condenado outra vez. Sentiu estar em um corpo humano. O seu grito foi o mais alto que aquele hospital já presenciou e o impossível aconteceu, todos os vidros foram estilhaçados e por um momento as duas dimensões piscaram uma ao redor da outra.
A dor de um pai que perde seus filhos e vê sua felicidade acabar para sempre, atingiu todos os cantos dos universos. Só lhe restava esperar e ansiar que houvesse uma cura e um novo despertar.
Temática: sonhos
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