EDIÇÃO DE ANIVERSÁRIO

I

Ele está aqui bem ao meu lado. Junto com outros exemplares de outros autores. E eu amo todos eles. Eu fui criado para amar livros. É um amor que dura até a última página. Quando leio o ultimo parágrafo o fogo se extingue instantaneamente e o que era uma preciosidade se torna um monte descartável de papel. Todos, exceto ele. É um livro de horror com uma história “BASEADA EM FATOS REAIS”.

A primeira vez que tentei lê-lo foi há mais ou menos nove anos atrás. Não sei como, mas uma edição antiga do livro apareceu em minha casa. Fiquei empolgado... eu não era um grande devorador de livros na época. Folheei e achei que tinha mais páginas do que minha atenção poderia suportar. Mas algo nele me causava uma imensa curiosidade mórbida. Eu já sabia que o conteúdo era difícil de ingerir. É um livro famoso. Todos conhecem a história e sabem que é uma história terrível. E aquela frase na capa... aquela frase... faz tudo ficar mais intenso... mais difícil de tragar... “BASEADO EM FATOS REAIS. ” .

Minha namorada estava grávida na época. Foi uma época difícil... éramos jovens demais. Mas eu ficava feliz em ver sua barriga crescendo e imaginava o bebê. E ficava pensando em como ele seria. Parecido comigo ou com a mãe... ou com os dois. Por que não? Eu ficava citando nomes em voz alta para saber qual soava melhor, mas no fundo desde o inicio eu já tinha dois nomes na cabeça... um caso fosse menino e outro caso fosse menina.

Na noite que comecei a ler o livro os pesadelos começaram. Ela acordou tremendo e não quis me dizer sobre o sonho. Parecia aterrorizador demais para descrevê-lo. E então se virou e dormiu novamente. Eu segurava o livro contra o peito. Um pensamento veio em minha cabeça. Um pensamento como se tivesse sido posto em minha mente de fora pra dentro. “JOGA ESSA PORCARIA FORA! ”.

Nos dois dias seguintes o esqueci na estante e parecia que tinha perdido o interesse. Não tinha chegado a ler nem vinte páginas. Mas numa noite de insônia, me lembrei que ele estava lá, senti um medo intenso. Como se aquele livro carregasse em si um poder... o poder de me causar mal-estar.

Mas eu estava intrigado e curioso. E não conseguia me conformar que um objeto pudesse estar ligado àquele sentimento ruim e aos pesadelos de uma adolescente grávida. Pesadelos são comuns nessa fase... pensei.

Estava entretido. A história se desenrolava num mistério sem fim. Podia sentir que meu coração batia descompassado, mas tentei ignorá-lo. De repente ela, deitada ao meu lado, começou a gemer como se sentisse dores na barriga. Fiquei preocupado, larguei o livro no chão. Ela segurava a barriga com força. Eu segurei suas mãos e a beijei na bochecha várias vezes, numa tentativa de acalmá-la daquele sonho ruim. Novamente um sonho ruim enquanto eu lia aquele livro. Desta vez cogitei a ideia da influencia. Mas parecia absurdo.

No dia seguinte estávamos no quarto, mas era dia, estávamos acordados ouvindo musica e o livro estava em minha cabeceira. Ela fitou o livro com um olhar de nojo. Disse que não sabia por que eu estava perdendo meu tempo com aquela coisa horrível.

Alguns dias se passaram até que o busquei novamente querendo continuar minha leitura. Nem mesmo eu sabia dizer o motivo de estar querendo tanto ler aquilo, pois não estava curtindo aquela leitura. Simplesmente tinha um impulso de continuar lendo e lendo sem parar.

Naquela madrugada ela acordou gritando e acordando a todos. Chorava e me apertava. Eu olhei para o livro e ele estava ali parecendo me olhar de volta. Joga esse livro fora... Ela pediu. Na manhã seguinte ele estava no lixo.

II

Quase dez anos depois – e tudo ficou diferente – eu me tornei um verdadeiro leitor. O prazer de ler um livro pra mim é algo descomunal. E as coisas que outrora me davam prazer, se tornaram venenosas ou rebeldias sem sentido.

Estava numa banca de revista me levantando e me abaixando, olhando, mexendo e folheando tudo. Nossa... Como eu adoro fazer isso. Até que o vi. Estava ali, ERA ELE! Só que agora estava com uma capa nova e muito mais sombria do que a anterior. Na capa dizia: EDIÇÃO DE ANIVERSÁRIO.

Senti novamente aquela curiosidade de anos atrás. Pensei nos fatos passados, mas me convenci de que tudo aquilo era bobagem de duas crianças influenciáveis que viviam um momento de tensão. E que todo aquele estresse tinha se revelado uma tolice já que nossa criança nasceu com toda saúde do mundo. Acabei comprando o livro e comecei a ler exatamente de onde parei. Mas durante a leitura experimentei novamente sensações estranhas. Uma delas... a sensação de estar sendo observado pelo próprio livro. Parece brincadeira, más não é.

Mesmo assim, continuei. Passei a sentir um embrulho no estomago sempre que lia as falas da personagem principal. Era uma menina de doze anos, possuída pelo demônio. Durante a leitura de suas falas, todos os dias, eu acabava interrompendo a leitura e correndo para o banheiro com uma diarreia intensa. Sentado na privada eu reproduzia em minha mente a imagem da garota com o rosto totalmente desfigurado, seus olhos brancos, mortos. Seu sorriso cruel estampado na face destruída, cheia de cicatrizes e feridas. Podia ouvir sua voz gutural em minha mente dizendo coisas grotescas, sexuais...obscenas. Eu ria nervosamente tentando fazer aquilo soar ridículo.

“É só um livro idiota...”.

III

O que quero dizer é que tudo parecia fruto de uma imaginação supersticiosa que acreditava numa espécie de “energia” depositada num conteúdo que, de certa forma, exaltava o mal.

O pesadelo tomou reais dimensões apenas há três dias atrás. Quando, ainda na metade da leitura, senti um aperto no peito. Tive uma certeza de que algo ruim iria acontecer e que a presença do livro estava diretamente ligada a todo azar que pairasse sobre minha casa.

Era hora de parar com a teimosia e acreditar no mal que aquele exemplar estava me fazendo.

Com o livro debaixo do braço, desci o elevador. Estava decidido a atirá-lo no primeiro cesto de lixo que encontrasse do outro lado da rua. O elevador parou e as luzes se apagaram.

Engoli seco e meu corpo inteiro tremeu. Não havia o menor vento, mas as páginas começaram a passar sozinhas até chegarem exatamente onde eu tinha terminado a leitura. Enfraqueci de medo e o deixei cair no chão. Num acesso de raiva comecei a pisotear a Edição de Aniversário incessantemente e com muita força enquanto soltava grunhidos de raiva.

A porta se abriu e a luz voltou. O zelador do edifício estava ali parado em minha frente, me olhando com assombro. Quando o fitei, ele tentou sorrir, sem graça, e com uma voz meio nervosa brincou: Não gostou da leitura patrão? Eu não respondi. Ainda tentando me recompor, peguei a Edição de Aniversário e saí apressado ganhando a rua.

Atirei o livro no primeiro lixo que encontrei, empurrando-o para que ficasse bem no fundo e bem escondido, pois não queria que alguém achasse que tirou a sorte grande por encontrar um livro novinho em folha e o levasse pra casa. Pessoas passavam na rua me olhando como se eu fosse maluco..., mas eu estava aliviado demais para me importar.

Antes de voltar para casa resolvi ir até a orla ver o mar. Estava realmente aliviado e feliz. Bebi uma água de coco e fiquei sentado pensativo enquanto observava as ondas. A maré estava cheia e ondas gigantes que faziam uma espécie de dança pra mim. Pensei em Deus naquele momento e me toquei de que não pensava em Deus desde que tinha comprado aquele livro. Fiquei ali por mais ou menos uma hora.

Entrei em casa e me esperavam para o jantar. Eu estava animado e conversando. Me sentia mais leve.

Não durou muito tempo.

IV

Ia entrando no quarto e acendi a luz quando dei de cara com a Edição de Aniversário. Estava no chão bem no meio do caminho. Destacava-se por ser bem negro num chão bem branco. Senti como se meu coração fosse perfurar o meu peito e correr sozinho pela casa. No mesmo instante caí de joelhos e vomitei no chão e um pouco em cima do livro.

Me recuperei rapidamente e limpei o chão antes que chamasse atenção. Limpei o livro com um pano molhado, só que não consegui tirar o cheiro. Mas de fato o mau cheiro lhe caiu muito bem.

O feriado de São João estava próximo. No dia seguinte iríamos para nossa casa de praia e de noite acenderíamos uma fogueira. Tudo em que pude pensar durante todas as horas sem pregar os olhos, era na imagem da Edição de Aniversário sendo derretida pelo fogo da fogueira. Enquanto isto ela estava ao meu lado na estante, a espreita.

Ela me olhava o tempo inteiro, e agora eu tinha certeza disso.

Quando a fogueira se acendeu corri em sua direção. Segurava o livro com as duas mãos. Ninguém entendeu quando o atirei no fogo. Com um riso sem graça inventei a primeira desculpa que veio em minha cabeça: Foi uma promessa que fiz. Sentei ao lado da fogueira e fiquei ali assistindo o livro queimar. Quero ver você voltar agora, desgraçado.

Mas ele voltou. Assim que a fogueira se desfez e eu subi para o meu quarto. O encontrei em minha cama... em cima do meu travesseiro, como quem quer ter a total certeza de que será visto.

Desta vez não me desesperei. Pois no fundo sabia que ele iria retornar.

Tomei então a decisão de que iria lê-lo até o final. E o passaria para outra pessoa em seguida. Talvez assim ele “se cansasse” de mim. Talvez tudo que esse maldito livro queira era ser lido. Por todos. Disseminado... como uma praga.

Ele está aqui bem ao meu lado, enquanto escrevo esta história que ninguém vai acreditar. E que é baseada em fatos reais.

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 04/02/2017
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