CLORIDRATO DE NAFAZOLINA

I

Naquele ano e alguns outros antes e depois, a hora de deitar era o ponto alto do meu dia. Não havia mais amores e nem muito dinheiro e eu já também já nem era muito bonito. A hora de deitar era o momento da leitura... e os livros proporcionavam mais prazer do que conversas idiotas e relações que me deixavam doente.

Havia uma pilha de livros ao meu lado. Livros de terror eram os meus prediletos, mas não era uma regra. Haviam pilhas de livros de poesias de Charles Bukowski e contos de Kafka tão fantásticos, que se me perguntassem “do que se trata este conto? ” Logo após eu ter terminado de lê-lo... ainda seria bem difícil dizer.

Stephen King era como um pai para mim. O pai do meu intelecto. O homem que curava as maldiçoes utilizando novas maldições. A confusão, o horror e a angustia presentes naquelas páginas causavam em mim um efeito inverso, de bom humor e paz de espírito. Um chá de morango, cidreira ou capim santo, uma tigela com frutas cortadas em pequenos cubos e toda aquela agonia em contos que chegavam a até exaustivas cem – ou mais – páginas, davam a mim, mais do que as pessoas podiam dar. O problema estava em mim? Eu estava cercado de gente chata? Quem vai saber...

II

E além dos livros havia o rock de fundo. Pink Floyd, Little Richard, The Beatles, The Beach Boys, The Ramones, Joan Jett, Misfts, The Cranberries... e mais um monte de outros, serviam de pano de fundo para minha leitura.

III

Era um fim de noite, destas como já lhes descrevi. Deitei e comecei a leitura mas tinha dificuldade em ficar imerso. Era o meu nariz. Estava entupido. Podia sentir o gosto do catarro em minha garganta. Tentei me distrair com a leitura e a música respirando pela boca mas não deu. O remédio se encontrava ao meu lado em cima da mesa de cabeceira. Cloridrato de Nafazolina. Dois pingos milagrosos em cada narina e eu voltava a respirar como um homem sendo salvo de um afogamento.

Tateei sem querer tirar os olhos do livro e ao senti-lo logo escapou-me às mãos caindo. O estranho foi que com certeza tinha caído, mas não ouvi o barulho no chão.

Tentei me levantar para acender a luz e resolver o assunto, mas me vi preso na cama. Não podia mover o meu tronco, e minha cabeça parecia estar colada no travesseiro. Mas meus braços estavam livres.

Usei toda a minha força para me reerguer, mas era como se eu tivesse com as pernas enterradas no colchão. Tentei gritar e logo percebi – para meu desespero total - que minha voz também se fora.

Tentei me sacudir e me debater, mas era um esforço inútil. Decidi me deitar e aguardar a chegada de alguma pessoa, mas logo me lembrei que eu tinha afastado todo mundo.

IV

Passadas seis horas, ou mais... ali, preso. Chorando, com uma sensação terrível de sufoco devido às duas narinas completamente congestionadas. Agora tinha vergonha de que alguém chegasse e me encontrasse, pois tinha molhado a cama de xixi e o quarto fedia numa mistura de urina com suor. Algo por dentro me dizia para tentar não levar tudo tão à sério e simplesmente pegar um livro e me perder dentro dele.

Abri um livro sobre zumbis que era um dos meus prediletos. Mas logo vi que estava empesteado de formigas. O livro tinha um cheiro doce.

Sacudi com força mas haviam centenas delas e começaram a picar minhas mãos. Gritei um grito mudo – apenas minha boca abria e fechava, inutilmente - e mais uma vez, num enorme chilique, tentei me debater querendo que aquele inferno se acabasse. Me ocorreu que eu estava ali, vivendo uma agonia bem semelhante às criações dos meus amados mestres. Larguei o livro no chão, lágrimas de desistência escorriam em meu rosto... E meus braços latejavam de dor. Simplesmente me entreguei e dormi de exaustão.

V

...E ao me entregar acordei num grito fino, porém alto o suficiente para despertar o resto da casa. Respirei fundo e olhei em volta. Estava tudo em seu lugar. Little Richard tocava “Blueberry Hill” e minhas narinas ainda estavam entupidas, mas o Cloridrato de Nafazolina estava ao meu alcance. Pinguei, não dois, mas SEIS PINGOS em cada narina de modo que senti o gosto do remédio descendo por minha garganta e alcançando minha língua.

Dei um sorriso aliviado, e apenas por via das dúvidas me levantei, só para ver como andava o funcionamento do meu corpo. Deitei-me novamente depois de um belo gole num chá que já estava gelado, mas ainda estava doce e muito saboroso. Peguei aquele livro de zumbis... e não haviam formigas. Não havia agonia. Não havia angústia. Apenas as angústias dos livros... que na mesinha jaziam.

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 03/02/2017
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