- A VIDA SEM DORA - DTRL 29.5
A primeira mulher que amei na vida se chamava Dora. Era minha vizinha e melhor amiga. Fazíamos tudo juntos, estávamos sempre na casa um do outro, e tínhamos uma vida feliz e perfeita até que meu mundo se precipitou e a perdi para sempre.
Era o início dos anos oitenta. Morávamos numa vila na área industrial da cidade. Não tínhamos dinheiro e o único menino que tinha um videogame Atari da turma era o filho do capataz da fábrica onde nossos pais trabalhavam, e assim mesmo, um equipamento de segunda mão, com o console lascado na borda.
A vida era simples e pequena, como se morássemos em um planeta reduzido, um micromundo onde todos os habitantes se conheciam. Não pensávamos em escapar de nossa rotina, a vida daquele jeito nos bastava, era uma espécie de Éden suburbano. Essa aparente calma fazia com que nossos pais fossem muito permissivos, quase negligentes e nos deixassem por nossas contas, brincando pelas ruas até escurecer.
Meu pai havia sido demitido há alguns meses. Quando não estava fazendo algum de seus bicos, ficava em casa conosco, vestido de calça de pijama e camiseta, bebendo cervejas na varanda enquanto mamãe ia ao trabalho numa loja de doces.
Por volta da metade daquele ano, a nossa paz foi sacudida por profundos abalos. Crianças que moravam pelas vizinhanças começaram a desaparecer. Sempre meninas entre dez e doze anos. A primeira delas estudava na minha sala.
Amanda Rodrigues era uma garota mirrada e sem atrativos. Não era nossa amiga porque sentava nas cadeiras da frente com a turma dos mais adiantados. Morava na parte rica do bairro e nunca voltava a pé para casa. Em condições normais, Amanda nunca teria aquele destino, mas o azar promove seus desvios e joga as pessoas em caminhos que jamais trilhariam. Um dia o pai teve que ficar além do horário normal em seu emprego e ligou para a escola avisando que a filha voltasse com alguma coleguinha. A menina avisou que iria andando sozinha para casa e nunca mais foi vista.
Depois foi a vez de Raquel, que desapareceu voltando da mercearia, num sábado à tarde. Dois dias adiante, foi Suzana, quando pendurava as roupas no varal. Ao longo daquele mês, perdemos Elisabeth, Janaína, Maria, Helena, Adriana... Todas elas sem qualquer pista ou explicação.
O sumiço de pessoas conhecidas fez nossos pais acordarem da ilusão de segurança em que supunham viver. A escola baixou as portas e já não podíamos sair de nossas casas a não ser acompanhados dos adultos. As brincadeiras deveriam se limitar aos muros da vila onde morávamos.
Vivíamos entediados e nosso humor piorava a cada dia de confinamento. As opções eram poucas e, de certa forma, nossas brincadeiras foram ficando mais agressivas.
Dora reclamava. Dizia que eu estava diferente, muitas vezes se aborrecia conosco e ia para sua casa, ajudar a mãe. Mas sempre fazia as pazes.
As coisas estavam sob um certo controle até o dia em que fomos longe demais. O dia em que resolvemos dar uma lição em um vizinho nosso.
Aristides era um motorista aposentado, um homem azedo e fofoqueiro que morava na última casa da vila, perto de um matagal que pertencia ao imóvel onde deveria haver um espaço de convivência, projeto sempre deixado para depois. Seu Aristides odiava crianças e barulho. Então, para que ficássemos sempre longe da casa dele, passava os dias nos observando de sua cadeira de balanço na varanda, para depois contar as travessuras aos nossos pais. O que mais nos irritava, no entanto, era o homem agir como se o terreno lhe pertencesse, e o fato de ele manter seu cachorro numa corda longa, para que pudesse correr atrás de nós, caso cruzássemos a frente de sua casa.
Numa daquelas tediosas tardes, e sem ter coisa melhor a fazer, um dos garotos propôs uma vingança contra o velho. Jogaríamos porções de carne com laxante para o cão, e ficaríamos sentados no muro assistindo o cachorro adubar o canteiro bem cuidado do velho o dia inteiro.
Dora foi contra, pediu que eu não participasse. E para falar a verdade, eu nem estava com muita vontade, mas acabei participando para não pegar mal com a turma. Pegamos um saco pequeno com carne moída e levamos para a minha casa. Fizemos a mistura e coloquei na geladeira por algum tempo. Depois, na hora em que o velho foi para o banheiro, pegamos em minha casa e demos para o cachorro.
Era para ser uma brincadeira inocente. Mas algo deu errado.
Jogamos a bola de carne batizada e o cachorro a comeu. Mas ele logo estava ganindo e sua boca começou a sangrar. Assistimos, com uma mistura de remorso e aflição, o cão espumar e vomitar a carne moída misturada com seu sangue e pedaços de estômago. Era para ter apenas laxante, mas ali havia cacos de vidro e veneno. Ficamos olhando aquela cena horrível sem ter coragem de fazer qualquer coisa, nos perguntando quem teria feito aquela maldade. O pobre Plínio nos olhava e latia, debilmente, esperando que fizéssemos alguma coisa para salvá-lo.
O velho Aristides, é claro, ao sair pela porta da cozinha e nos ver enfileirados como corvos, todos pousados no muro, olhando o seu cachorro agonizar, deduziu tudo e ficou nos xingando e jurando vingança. Era tarde demais. Mesmo que levássemos Plínio ao veterinário ele não sobreviveria.
Quando Dora chegou o cachorro ainda estrebuchava. Os olhos já estavam baços e a língua esverdeada pendia para fora da boca. O dono, de joelhos, tentava manter a cabeça do cão em seu colo, já sem esperanças de salvá-lo, chorando e praguejando contra nós.
Dora não falou nada, mas seu olhar de reprovação dispensava qualquer comentário.
Pedi que minha mãe trouxesse um colar para ela. Ia dá-lo para selarmos a paz. Deixei o pacote com a sua mãe. Dora estava lá mas não respondeu nada. Não agradeceu ou o colocou no pescoço. Era um colar prateado com um pingente de unicórnio. Todos os dias eu conferia se estava usando.
Por termos matado o cachorro do Seu Aristides, ficamos todos sem poder sair para brincar, nem mesmo dentro dos limites da vila. Alguns meninos me culpavam porque a carne ficou um tempo na minha geladeira. Passamos a trocar acusações e desconfiávamos uns dos outros. Estávamos no auge da nossa tolerância, quando anunciaram que o assassino das meninas havia sido preso. Um mendigo que andava pelo centro com a mochila da primeira menina foi levado à delegacia e depois de algumas horas sendo interrogado, confessou tudo.
Liberdade. Nossos pais ficaram tão felizes que esqueceram do castigo. A escola reabriu e, aos poucos pudemos brincar na rua. Dora, no entanto, ainda não me perdoara. Não queria mais andar com a gente. Não respondia quando chamávamos e quando íamos ou voltávamos da escola, ficava numa distância em que podíamos vê-la, mas não conversar com ela.
Geralmente íamos atrás, observando Dora caminhar. Mas naquele dia ela não apareceu no portão. Ainda a vi pelo pátio, porém os meninos me chamavam e eu fui.
Ia feliz por ter percebido que ela estava usando o colar que eu havia dado. Naquela tarde iria novamente a sua casa, para fazermos as pazes. Também havia decidido pedí-la em namoro. Nos meus planos, tudo daria certo.
Dora não chegou a sua casa no fim da manhã. A tarde ia passando e as pessoas começaram a procurar por ela em todos os lugares. Chamaram a polícia, usaram cachorros, mas nada.
Demorei a dormir, e quando consegui tive pesadelos. Sonhei com Dora correndo e sendo perseguida por um carro. Então era alcançada e jogada na parte de trás do veículo. Enquanto o carro se afastava eu via o seu rosto cheio de dor olhando para mim, mas os seus olhos se transformavam nos olhos do cão do seu Aristides.
A culpa me consumia. Pensava em todo o encadeamento de fatos que levou ao desaparecimento dela, e em como bastava que um dos elos desta corrente de tragédias não tivesse ocorrido, para que ela ainda estivesse entre nós.
Não tendo como velar o corpo de minha amada, ia todos os dias ao pequeno cemitério que ficava perto de nossa casa e colocava flores na cova vazia onde o prefeito havia erguido um túmulo homenageando todas as meninas.
Meus olhos se enchiam de lágrimas e eu colocava uma flor solitária como um tributo aos sonhos perdidos. Fiz isso por meses, até que a lembrança daqueles dias negros foi se esmaecendo nos meus pensamentos.
Dora não foi encontrada, nem as outras meninas sequestradas.
O tempo passou e meus pais se separaram. Fui morar com minha mãe na capital e papai continuou morando na mesma vila. Sempre bebendo suas cervejas e fazendo bicos.
Passei muitos anos sem voltar para aquela cidade. Um dia recebi uma ligação. Meu pai havia tido um ataque do coração e não havia nenhum parente para ficar com ele. Pedi licença no trabalho e fui para lá.
Passamos os primeiros quinze dias no hospital. Quando ele teve alta, resolvi ficar mais uma semana com ele até encontrar uma enfermeira.
Uma tarde, papai me pediu que pegasse alguns documentos em caixas velhas que ficavam na parte alta do armário. Quando fui pegar a caixa que ele pedira, veio outra junto com ela, deslizando para o chão e espalhando todo o seu conteúdo. Abaixei-me para colocar as coisas de volta, e foi quando percebi um objeto brilhando entre os papéis. Era uma joia. Um colar prateado, com um lindo pingente... de unicórnio. Sentei no chão e fui abrindo vários envelopes que estavam guardados lá. Havia de tudo. Fotos de meninas nuas e amarradas, anéis, brincos, calcinhas.
Olhei para cima e lá estava papai. Os passos ainda vacilantes, a mão trêmula e fraca segurando um revólver. O silencio foi, afinal, cortado pelo estampido de um tiro. Quando a polícia chegou ainda saía fumaça pelo cano da arma.
Papai foi enterrado sem honras ou luto, enquanto o seu corpo baixava eu colocava uma flor na sepultura de Dora.
TEMA: LUTO
Era o início dos anos oitenta. Morávamos numa vila na área industrial da cidade. Não tínhamos dinheiro e o único menino que tinha um videogame Atari da turma era o filho do capataz da fábrica onde nossos pais trabalhavam, e assim mesmo, um equipamento de segunda mão, com o console lascado na borda.
A vida era simples e pequena, como se morássemos em um planeta reduzido, um micromundo onde todos os habitantes se conheciam. Não pensávamos em escapar de nossa rotina, a vida daquele jeito nos bastava, era uma espécie de Éden suburbano. Essa aparente calma fazia com que nossos pais fossem muito permissivos, quase negligentes e nos deixassem por nossas contas, brincando pelas ruas até escurecer.
Meu pai havia sido demitido há alguns meses. Quando não estava fazendo algum de seus bicos, ficava em casa conosco, vestido de calça de pijama e camiseta, bebendo cervejas na varanda enquanto mamãe ia ao trabalho numa loja de doces.
Por volta da metade daquele ano, a nossa paz foi sacudida por profundos abalos. Crianças que moravam pelas vizinhanças começaram a desaparecer. Sempre meninas entre dez e doze anos. A primeira delas estudava na minha sala.
Amanda Rodrigues era uma garota mirrada e sem atrativos. Não era nossa amiga porque sentava nas cadeiras da frente com a turma dos mais adiantados. Morava na parte rica do bairro e nunca voltava a pé para casa. Em condições normais, Amanda nunca teria aquele destino, mas o azar promove seus desvios e joga as pessoas em caminhos que jamais trilhariam. Um dia o pai teve que ficar além do horário normal em seu emprego e ligou para a escola avisando que a filha voltasse com alguma coleguinha. A menina avisou que iria andando sozinha para casa e nunca mais foi vista.
Depois foi a vez de Raquel, que desapareceu voltando da mercearia, num sábado à tarde. Dois dias adiante, foi Suzana, quando pendurava as roupas no varal. Ao longo daquele mês, perdemos Elisabeth, Janaína, Maria, Helena, Adriana... Todas elas sem qualquer pista ou explicação.
O sumiço de pessoas conhecidas fez nossos pais acordarem da ilusão de segurança em que supunham viver. A escola baixou as portas e já não podíamos sair de nossas casas a não ser acompanhados dos adultos. As brincadeiras deveriam se limitar aos muros da vila onde morávamos.
Vivíamos entediados e nosso humor piorava a cada dia de confinamento. As opções eram poucas e, de certa forma, nossas brincadeiras foram ficando mais agressivas.
Dora reclamava. Dizia que eu estava diferente, muitas vezes se aborrecia conosco e ia para sua casa, ajudar a mãe. Mas sempre fazia as pazes.
As coisas estavam sob um certo controle até o dia em que fomos longe demais. O dia em que resolvemos dar uma lição em um vizinho nosso.
Aristides era um motorista aposentado, um homem azedo e fofoqueiro que morava na última casa da vila, perto de um matagal que pertencia ao imóvel onde deveria haver um espaço de convivência, projeto sempre deixado para depois. Seu Aristides odiava crianças e barulho. Então, para que ficássemos sempre longe da casa dele, passava os dias nos observando de sua cadeira de balanço na varanda, para depois contar as travessuras aos nossos pais. O que mais nos irritava, no entanto, era o homem agir como se o terreno lhe pertencesse, e o fato de ele manter seu cachorro numa corda longa, para que pudesse correr atrás de nós, caso cruzássemos a frente de sua casa.
Numa daquelas tediosas tardes, e sem ter coisa melhor a fazer, um dos garotos propôs uma vingança contra o velho. Jogaríamos porções de carne com laxante para o cão, e ficaríamos sentados no muro assistindo o cachorro adubar o canteiro bem cuidado do velho o dia inteiro.
Dora foi contra, pediu que eu não participasse. E para falar a verdade, eu nem estava com muita vontade, mas acabei participando para não pegar mal com a turma. Pegamos um saco pequeno com carne moída e levamos para a minha casa. Fizemos a mistura e coloquei na geladeira por algum tempo. Depois, na hora em que o velho foi para o banheiro, pegamos em minha casa e demos para o cachorro.
Era para ser uma brincadeira inocente. Mas algo deu errado.
Jogamos a bola de carne batizada e o cachorro a comeu. Mas ele logo estava ganindo e sua boca começou a sangrar. Assistimos, com uma mistura de remorso e aflição, o cão espumar e vomitar a carne moída misturada com seu sangue e pedaços de estômago. Era para ter apenas laxante, mas ali havia cacos de vidro e veneno. Ficamos olhando aquela cena horrível sem ter coragem de fazer qualquer coisa, nos perguntando quem teria feito aquela maldade. O pobre Plínio nos olhava e latia, debilmente, esperando que fizéssemos alguma coisa para salvá-lo.
O velho Aristides, é claro, ao sair pela porta da cozinha e nos ver enfileirados como corvos, todos pousados no muro, olhando o seu cachorro agonizar, deduziu tudo e ficou nos xingando e jurando vingança. Era tarde demais. Mesmo que levássemos Plínio ao veterinário ele não sobreviveria.
Quando Dora chegou o cachorro ainda estrebuchava. Os olhos já estavam baços e a língua esverdeada pendia para fora da boca. O dono, de joelhos, tentava manter a cabeça do cão em seu colo, já sem esperanças de salvá-lo, chorando e praguejando contra nós.
Dora não falou nada, mas seu olhar de reprovação dispensava qualquer comentário.
Pedi que minha mãe trouxesse um colar para ela. Ia dá-lo para selarmos a paz. Deixei o pacote com a sua mãe. Dora estava lá mas não respondeu nada. Não agradeceu ou o colocou no pescoço. Era um colar prateado com um pingente de unicórnio. Todos os dias eu conferia se estava usando.
Por termos matado o cachorro do Seu Aristides, ficamos todos sem poder sair para brincar, nem mesmo dentro dos limites da vila. Alguns meninos me culpavam porque a carne ficou um tempo na minha geladeira. Passamos a trocar acusações e desconfiávamos uns dos outros. Estávamos no auge da nossa tolerância, quando anunciaram que o assassino das meninas havia sido preso. Um mendigo que andava pelo centro com a mochila da primeira menina foi levado à delegacia e depois de algumas horas sendo interrogado, confessou tudo.
Liberdade. Nossos pais ficaram tão felizes que esqueceram do castigo. A escola reabriu e, aos poucos pudemos brincar na rua. Dora, no entanto, ainda não me perdoara. Não queria mais andar com a gente. Não respondia quando chamávamos e quando íamos ou voltávamos da escola, ficava numa distância em que podíamos vê-la, mas não conversar com ela.
Geralmente íamos atrás, observando Dora caminhar. Mas naquele dia ela não apareceu no portão. Ainda a vi pelo pátio, porém os meninos me chamavam e eu fui.
Ia feliz por ter percebido que ela estava usando o colar que eu havia dado. Naquela tarde iria novamente a sua casa, para fazermos as pazes. Também havia decidido pedí-la em namoro. Nos meus planos, tudo daria certo.
Dora não chegou a sua casa no fim da manhã. A tarde ia passando e as pessoas começaram a procurar por ela em todos os lugares. Chamaram a polícia, usaram cachorros, mas nada.
Demorei a dormir, e quando consegui tive pesadelos. Sonhei com Dora correndo e sendo perseguida por um carro. Então era alcançada e jogada na parte de trás do veículo. Enquanto o carro se afastava eu via o seu rosto cheio de dor olhando para mim, mas os seus olhos se transformavam nos olhos do cão do seu Aristides.
A culpa me consumia. Pensava em todo o encadeamento de fatos que levou ao desaparecimento dela, e em como bastava que um dos elos desta corrente de tragédias não tivesse ocorrido, para que ela ainda estivesse entre nós.
Não tendo como velar o corpo de minha amada, ia todos os dias ao pequeno cemitério que ficava perto de nossa casa e colocava flores na cova vazia onde o prefeito havia erguido um túmulo homenageando todas as meninas.
Meus olhos se enchiam de lágrimas e eu colocava uma flor solitária como um tributo aos sonhos perdidos. Fiz isso por meses, até que a lembrança daqueles dias negros foi se esmaecendo nos meus pensamentos.
Dora não foi encontrada, nem as outras meninas sequestradas.
O tempo passou e meus pais se separaram. Fui morar com minha mãe na capital e papai continuou morando na mesma vila. Sempre bebendo suas cervejas e fazendo bicos.
Passei muitos anos sem voltar para aquela cidade. Um dia recebi uma ligação. Meu pai havia tido um ataque do coração e não havia nenhum parente para ficar com ele. Pedi licença no trabalho e fui para lá.
Passamos os primeiros quinze dias no hospital. Quando ele teve alta, resolvi ficar mais uma semana com ele até encontrar uma enfermeira.
Uma tarde, papai me pediu que pegasse alguns documentos em caixas velhas que ficavam na parte alta do armário. Quando fui pegar a caixa que ele pedira, veio outra junto com ela, deslizando para o chão e espalhando todo o seu conteúdo. Abaixei-me para colocar as coisas de volta, e foi quando percebi um objeto brilhando entre os papéis. Era uma joia. Um colar prateado, com um lindo pingente... de unicórnio. Sentei no chão e fui abrindo vários envelopes que estavam guardados lá. Havia de tudo. Fotos de meninas nuas e amarradas, anéis, brincos, calcinhas.
Olhei para cima e lá estava papai. Os passos ainda vacilantes, a mão trêmula e fraca segurando um revólver. O silencio foi, afinal, cortado pelo estampido de um tiro. Quando a polícia chegou ainda saía fumaça pelo cano da arma.
Papai foi enterrado sem honras ou luto, enquanto o seu corpo baixava eu colocava uma flor na sepultura de Dora.
TEMA: LUTO