Aquarela - DTRL 29,5

"A vida é um soco no estômago."

(Clarice Lispector)

“Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá.

O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar.”

(Aquarela )

*

Tirou os sapatos logo que chegou na praia. Queria sentir a textura da areia e a sua temperatura. Ela estava morna por causa do Sol e um pouco úmida por causa do mar. Esse mesmo mar molhava os pés da moça com as suas ondas que iam e vinham. Ela andava bem próxima ao mar.

Enquanto andava pela praia a moça pensava no passado. Pensava nas vezes em que passeou pela praia na companhia de seu namorado. Ela sempre andava descalça já ele nunca retirava os sapatos. A imagem dos dois andando pela praia poderia ser entendida como uma metáfora das personalidades deles. A moça gostava de sentir tudo que a vida tinha a lhe oferecer de forma direta. A vida para ela era como uma longa praia em que sempre andava descalça. Enfrentava com os pés descalços as areias frias da calmaria e as areias quentes das provações da vida.

Já para o rapaz a vida era como uma praia em que a areia estava sempre quente demais. Sempre teve dificuldade de encarar as coisas de frente. Sempre teve dificuldade de enfrentar as coisas como elas realmente eram… Sempre buscava formas de proteger seus pés na longa estrada que a vida era… Talvez isso tenha contribuído para a morte precoce dele. Talvez não. Talvez isso tenha apenas o poupado de dores durante o tempo em que ele ficou na terra.

Um vento forte bateu e a moça sentiu a dor bater mais forte. Ela não havia conseguido chorar no velório. Era como se a ficha ainda não tivesse caído… As lágrimas que não caíram estavam a fazendo sofrer ainda mais. Sua alma estava se afogando nas lágrimas que não derramou.

Foi na praia para encarar a dura realidade. Para que entendesse que a partir de agora iria ter que caminhar sozinha pela praia. Sem seu companheiro.

Perdeu a noção do tempo. Tudo parecia acontecer em câmera lenta. Até que em determinado ponto viu um figura distorcida há alguns passos de distancia. Um vento trouxe um cheiro de flores. Mas não flores comuns, eram as usadas em velórios. Era o cheiro da saudade.

A moça olhou com mais intensidade e viu o rosto muito idoso da figura. O rosto que carregava o peso de muitos anos a encarava também. Aquela mulher idosa era a realidade, sua idade era avançada porque ela já estava nesse mundo há muito tempo. Podia se mostrar com diferentes rostos, mas a sua essência era sempre a mesma. Assim como seu objetivo.

Ela havia inconscientemente fugido dela o dia todo, mas não iria mais fugir. Afinal foi para isso que veio na praia.

Abriu os braços. Se preparou para o abraço frio da realidade enquanto fechava os olhos.

Mesmo de olhos fechados sabia que ela estava se aproximando, pois a cada passo parecia que a realidade se tornava mais clara. Parecia que um grande vazio se formava em seu peito e aumentava. O cheiro de flores também ficava mais forte. Quando a figura estava bem próxima, para seu espanto e desespero ela não a abraçou.

A moça ficou sem ar quando a realidade lhe deu um forte soco no estômago de repente. Era difícil respirar. A realidade não esperou que ela se recuperasse do primeiro soco para lhe atingir novamente. Dessa vez do lado esquerdo do peito. O pior era que a dor parecia ser na alma e não no corpo. Parecia que era a sua alma que se contorcia sem ar dentro dela.

Abriu os olhos ainda sem ar e viu que a realidade havia mudado de rosto. Não era mais uma senhora idosa, a realidade agora se mostrava com um rosto todo distorcido. Se mostrava assustadora. A moça tentou desviar o olhar. Todavia a realidade a agarrou com braços fortes e a obrigou a olhar em seu rosto assustador. A face dela era o retrato da ausência. A garota derramou as lágrimas que não conseguiu derramar no velório. Ainda chorava quando percebeu a aproximação de outra figura.

A segunda figura era uma mulher de rosto dividido. O olho direito dela lagrimava tristemente e o esquerdo brilhava de alegria. O lado direito do rosto era pálido e o esquerdo corado. A mulher dividida eram as lembranças. A realidade devia ter a atraído.

A moça teve medo dela, mas do que teve da outra figura. Começou a se contorcer nos braços da realidade, queria fugir, antes que as lembranças a alcançassem, porém falhou. Sentiu quando a mulher de rosto dividido agarrou seus pés. Uma das mãos dela era fria e a outra quente. O frio e o calor começaram a subir pelas suas pernas e várias imagens começaram a passar pela sua mente.

Viu a si mesma e ao seu falecido namorado jantando juntos. Ela lembrava daquele dia. Havia preparado a comida favorita dele. Aquela lembrança aqueceu seu coração, mas a sensação boa durou pouco, pois logo lembrou que ele nunca mais jantaria com ela. Nunca mais comeria a comida favorita. Esse era o mal das lembranças. Elas aqueciam o coração, mas logo depois se tornavam cortantes como vidro. As lembranças a deixavam com sentimentos divididos.

Fechou os olhos, aquelas lembranças a machucavam. Todavia fechar os olhos não adiantou, pois as lembranças estavam dentro dela e a mulher de rosto dividido continuava a segurar seus pés. Várias imagens começaram a se pintar em sua mente.

Aos poucos a realidade com seu rosto assustador foi sumindo da sua frente. O toque da mulher de rosto dividido foi ficando mais fraco. As lembranças foram se descolorindo, enquanto iam se descolorindo ela ainda conseguiu ver uma última imagem. Viu o último passeio que ela e o namorado deram naquela praia, há apenas alguns dias antes de ocorrer o que ocorreu. A imagem do passeio parecia uma aquarela pintada a mão, ela foi descolorindo aos poucos, mas lentamente que as outras, primeiro seu namorado foi perdendo as cores, como se desbotasse, até sumir completamente. Por último viu a si mesma andando descalça e sozinha antes de tudo sumir.

Quando abriu os olhos novamente estava sozinha na praia e era quase noite. Sentia uma dor no coração e a última lembrança da aquarela descolorindo ainda estava colorida em sua mente. A moça ficou pensando na vida e em como as vezes ela não passava de uma frágil aquarela.

Apesar de está escurecendo ainda conseguiu ver uma última figura que vinha na sua direção. Era uma criança. O futuro. Quando chegou perto a moça pegou na pequena mão do futuro e seguiu em frente... Com os pés ainda descalços na areia morna.

“Vamos todos numa linda passarela

De uma aquarela que um dia, enfim, descolorirá.”

(Aquarela)

Tema: Luto

Ana Carol Machado
Enviado por Ana Carol Machado em 07/01/2017
Reeditado em 27/05/2024
Código do texto: T5875029
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