Luto E_Terno - DTRL29,5 #Luto#
Era uma cena bizarra. O sangue que escorria no lençol não era preto, era vivo, vermelho e cheirava a morte.
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Chamava-se Cosme, o dono da funerária “Luto & Terno”. Ela, filha de Ronaldo, o fornecedor de caixões, era Rosalinda, dona de feições que pouco jus faziam ao próprio nome.
Como dito, era feia, tão feia quanto bater em mãe, como diz o dito popular. Se sentada, era fácil notar a flácida barriga a repousar sobre as coxas rechonchudas e grifadas por trilhas de varizes. Os dentes tortos e encavalados brigavam por território, o que fazia que as gengivas parecessem maiores. Já os olhos, eram dessincronizados, como dois irmãos briguentos que faziam questão de seguir por caminhos diferentes. Apesar de tudo isso tinha cabelos bonitos, longos e sedosos. Todavia era no coração que ficava a qualidade maior. Possuía bondade tamanha que causava espanto, até mesmo aos que faziam consigo as mais mesquinhas piadas de mau gosto, como; “Lá vem a madame bola” “Olha só a Fera da Disney” “Vai Willie, vai!!!” Rosafeia! Rosahorrorosa!!!”.
Cosme tinha 25 anos. Herdara da mãe, Dulcineia Alvares, uma boa quantia. O pai, Aristeu Alcântara, foi o único parente vivo que conheceu. Nunca demonstrou afeição relevante ao pobre e pálido menino que nascera depois da hora, e que desde o nascimento, por insistência paterna só usava roupas na cor lúgubre do luto. Quando completou um ano, o pai providenciara os ternos infantis, pretos. O mancebo, ao tempo que crescia, carregava consigo a complacência que herdara do lado materno. Aristeu jamais lhe abraçou, sequer lhe pegou no colo quando recém nascido. Deixou-o, entretanto, aos cuidados de Dona Zefa, a empregada de confiança dele, a qual também foi responsável pelo parto do menino e que com isso tornou-se o laço mais afetivo que a criança pôde agregar a formação de sua índole.
Alcoólatra, desde a morte da esposa, o pai fedia a Whisky, e o pequeno Cosme, mesmo dormindo num quarto de localização distante do que o pai dormia, vez ou outra espiava o homem chorar copiosamente, agarrado a um retrato preto e branco no qual aparecia abraçado a amada. De uma porta a outra do corredor extenso, o piso de taco polido desenhava no chão falsos degraus que não podiam conduzi-lo ao colo do pai. O garoto, mesmo sabendo que não devia importuná-lo, percebia que por alguma razão que mais tarde se tornaria óbvia, o homem fazia questão de evitar o contato com o filho, seja nos horários de almoço e jantar ou nas trombadas rotineiras. Nem mesmo a cor dos olhos de folha seca era contemplada pelo homem, o qual dividia o teto, mas não o espaço barulhento do peito. Sempre baixava os olhos ao ver que o menino vinha em sua direção, e passava por ele como por um móvel da casa. Às vezes ficava fora por dias, e nesses intervalos é que Cosme fugia na madrugada e dormia na cama do pai.
Tito como era mais conhecido, não tinha metade da fortuna de sua finada esposa, e além disso nunca fez questão de usufruir desses bens. Na verdade se faltava amor ou aceitação pela “troca” que Deus havia feito pela vida de filho e mãe, em contrapartida existia a certeza de que era responsável pelo menino, aquele que nunca chamaria de filho, é verdade, mas que não seria abandonado na sarjeta, ou tampouco teria de si roubada a fortuna. O que era dele, era dele.
Ainda não tão velho assim, teve a vida interrompida voluntariamente quando o filho não aceito completara dezoito anos. Havia lá uma garrafa caída ao chão, e o líquido derramado em frente aos estilhaços de espelho, cada qual refletindo um pouco daquela trágica cena, contando a história de uma vida de amarguras como fosse um quebra cabeças. O sangue tal qual tinta pintava os pulsos, que não pulsavam mais. O chapéu não cobria os cabelos brancos nem a careca. Ao lado do corpo, o retrato dos dois, apenas ele e ela. A boca permanecia aberta num sorriso murcho. E de pé estava Cosme, olhando para o corpo do pai após tê-lo encontrado.
E sua companheira de toda vida, foi o que ele decidiu abraçar. Montar a funerária foi apenas mais uma forma de se maquiar sem deixar de ser o que era. A cor continuaria a predominar em sua vida. Caminhou, dirigiu com a morte. Empacotou-a dento de seu íntimo e seguiu com a dor mais amiga e fiel.
O tempo navegava até ele feito um presente de grego, a cada instante que se passava a solidão lhe afogava a alma, até que ela apareceu. O esquisito e a esquisita. Ele sempre de preto, pálido, e ela e sua feiura cândida. Tão solitários de dar pena aos corações mais duros. Ronaldo, o fornecedor dos caixões era um homem feliz demais para sua profissão. Chegava assobiando, entrando sempre com o pé direito na funerária. Não sabia o porquê de não ir com a cara dele, mas a verdade era que o homem representava tudo o quê esperava de uma figura paterna, de alguém que fosse aquilo que seu pai nunca se permitiu ser.
- Boa tarde, Cosme!
- Olá, Seu Ronaldo.
- Entre, Rosalinda – E ele assoviava, girando a chave do caminhãozinho baú que trazia os caixões – Venha, querida!
Os olhos de Cosme vislumbraram a mulher, que aparentava ter uma idade maior do que a que tinha. Tinha 35, mas se qualquer um tentasse adivinhar sua idade lhe daria sem pestanejar 45 anos com certeza que estaria sendo educado.
- Entre, por favor, Senhora. Seu Ronaldo, peça sua esposa para se sentar, enquanto tratamos das contas.
As faces de Rosa coraram-se de imediato, mas não o respondeu, somente dirigiu-se para uma poltrona negra de couro e acomodou-se. Apanhou uma revista de culinária. Amava cozinhar.
- É minha filha Rosa - Explicou – Trouxe-a para que a costureira da butique lhe faça um vestido novo.
Cosme não sabia o que fazer, pois sentiu algo diferente desde que botou os olhos em Rosa. O tempo passou e começou a cortejá-la. Sempre mandava flores para ela, por Ronaldo.
- Saiba que não quero te desrespeitar – Ele dizia.
Preocupado com o futuro da filha e as tantas esperanças que aquele coração recebia a cada flor entregue, decidiu-se por conversar com Cosme homem a homem.
- O que quer de fato com minha filha?
- S-S-Senhor, b-bem, eu...
- Sei que você, Cosme, é um homem rico e também conheço sua história, sei o quanto sofreu.
- Só quero o bem dela, Senhor.
- Falemos a verdade, minha filha não é uma mulher bela, pelo contrário e dói para mim admitir. Como pode isso?
- Explicaria se pudesse, e de fato não conheço as coisas do coração como deveria, mas ouso dizer que há um sentimento dentro de mim em relação a Rosa que mal posso entender, contudo sei o nome dele de tanto ouvir falar... É amor, amor verdadeiro.
Caiu o queixo do homem ao ouvir aquilo, afinal Cosme mal conhecia sua filha. O homem queria ficar feliz, afinal, Rosa já demonstrava um contentamento enorme com os cortejos de Cosme.
- Agora eu é que não sei o que dizer, rapaz.
- Permita-me casar com ela.
- Casar? Mas mal namoram. Entendo sua solidão, mas precisam se conhecer primeiro.
- Tudo bem. Permita-me isso então.
Após três meses o casamento foi marcado. Rosa entrou na Igreja com um lindo vestido, que não a deixou mais bonita. Viveram felizes dentro da mansão por dois anos, até que Rosa engravidou-se. Ronaldo era o futuro avô mais feliz do mundo, e Rosa com a gravidez conseguiu o impossível, ficar mais feia. Mas isso não era problema para Cosme, que se preparava para ser o pai que Aristeu não foi.
Dona Zefa caminhava com o candelabro em mãos. As velas acesas espantavam a escuridão, mas o vento fazia com que as chamas bruxuleassem ao ribombar dos trovões.
- Traga-me mais toalhas limpas, sua filha está vindo.
- O nome dela será Dulcineia, como o de mamãe – Dona Zefa sorriu para ele e o acariciou a testa.
- Busque as toalhas, rápido, vá.
A porta do quarto se fechou, enquanto Dona Zefa olhava para a imagem de Rosalinda dentro do quarto. Suava feito um porco temendo o abate.
- Ela vai se chamar Dulcineia, você sabia?
- Sim, eu e Cosme conversamos sobre isso, Dona Zefa – Respondeu, Rosa.
- Não estou falando com você, querida.
- Ahn?
- Mesmo morta você insiste em roubá-lo de mim? Já não basta o Tito?
- Com quem a senhora está falando?
Girou a chave e a porta foi trancada. Com a tesoura na mão caminhou em direção a Rosa, sentou-se a cabeceira da cama, pegou o travesseiro ergue-o, não deixando de olhar uma última vez para mulher.
- Você é realmente muito feia – E então pressionou o objeto contra face da mulher, sufocou-a enquanto os braços gordos tentavam em vão defender-se. Por fim, ergueu a tesoura e baixou... E mais uma vez... E novamente. Parou quando Cosme arrombou a porta.
De frente para ele, Zefa deixou a tesoura cair no chão. Ele passou por ela correndo, indo em direção a esposa e encarando com espanto a barriga encharcada de sangue. Abraçou-a querendo que aquilo não passasse de um pesadelo, mas tinha experiência suficiente para concluir que a vida é mesmo uma verdadeira desgraça.
Apanhou a lâmina do chão, os dedos envolveram o metal como se usasse um soco inglês. Dona Zefa fechou os olhos e uma lágrima brotou nesse momento. A lâmina penetrou fundo em seu próprio coração...
...E ele nasceu e morreu, de luto.