A FACE DO LUTO - DTRL 29,5

Aquele é apenas um corpo apodrecendo debaixo da terra. Aquele não é mais o homem sonhador que todos disseram amar, depois que morreu. O importante é a alma. O corpo foi apenas o objeto emprestado, que utilizara enquanto vivera em terra. Era o que eu me obrigava a pensar. É o que eu preciso acreditar.

Mesmo assim, todos os dias, me vejo sentado sobre esse túmulo de pedra negra, reluzente e escaldante debaixo do Sol. Sempre que olho para essa placa com o nome "Odair Dias", não consigo conter as lágrimas.

Foi tudo muito rápido. Em um momento todos nós estávamos reunidos, brindando o Natal, cantando "Jingle Bell, Jingle Bell", no melhor que conseguíamos com nossas línguas enroladas. Hoje penso, se não tivéssemos bebido tanto, ou se estivéssemos reunidos em uma sala de estar de uma casa de família, à beira de uma árvore de Natal, apenas trocando presentes, ainda estaríamos todos juntos? Talvez. Mas, isso não significa que estaríamos felizes. Apenas... vivos.

Aliás, o que é viver? Não é aproveitar ao máximo nosso tempo nessa passagem indecifrável por essa "vida"?

Foi o que eu fiz. Foi o que fizemos.

Já na tarde de sábado, reunimos no quintal da casa do Zé. A churrasqueira trabalhava quente, e a cerveja, bem gelada. Com o cair da noite, mais pessoas chegaram. E com elas, mais bebidas, mais e mais entorpecentes que fizeram nossa alegria (ou tristeza e tédio maquiados, se quiser assim chamar).

O domingo continuou no mesmo ritmo. Poucos tiraram alguns minutos para dormir. Alguns deitaram à luz do luar mesmo, fazendo da grama verde do jardim, a melhor cama que já dormiram.

Vânia, menos eufórica do que nós, pediu para que agrupássemos para uma foto. Ajuntamos ao lado da piscina, abraçados e alguns ajoelhados à frente dos outros, para que ela conseguisse enquadrar a todos.

Assim que ela pressionou o contador regressivo, correu para se juntar a nós e também aparecer na foto, que dissera, guardaria para mostrar aos futuros netos o melhor Natal de sua vida. O flash disparou, e um estrondo gigante ecoou. A luz bateu forte, mas não vinda do flash , mas sim do farol de um caminhão desgovernado que bateu contra o muro da casa, jogando-se contra todos ali reunidos. Nossos corpos foram soterrados por pedaços de concreto, tijolos, rodas e ferragem.

Alguns foram jogados desacordados dentro da piscina, e não precisa ser muito esperto para saber o que aconteceu. Outros, tiveram seus braços ou pernas (e cabeças) esmagados pelo peso do veículo. Pelo tempo que ainda tive, antes de perder a consciência (ou já sem ela, nunca saberei) juro ter visto outro clarão, dessa vez vindo do Céu, mas não era branco, e sim vermelho. Um vermelho intenso e brilhante, como uma bola de fogo, e de dentro dessa bola, emergiu um homem. Eu estava de barriga para baixo e com as pernas presas, só erguia a cabeça, e ouvia gritos desesperados ao meu lado. Tentei gritar também, mas só consegui olhar admirado para o homem de terno preto que vinha em minha direção. Ele se agachou e tocou em minha fronte com o indicador.

Apaguei.

Quando acordei, ainda estava no hospital. Ao abrir os olhos, aquela luz branca me fez lembrar o acontecido. Gritei (ou pensei ter gritado) e então minhas forças se esvaíram de novo, e apaguei mais uma vez.

Nesse meio tempo entre o Natal e o ano novo, não me lembro de muita coisa, foram muitos lapsos, muita luz e novamente escuridão. Me lembro, certa noite, de conseguir me levantar e andar cambaleante pelo hospital. Muitos ocupantes dos quartos vizinhos, eram meus amigos, todos engessados ou com membros faltando. Não tive coragem para conversar com eles.

E é claro, recebi, por diversas vezes, a visita do homem de terno preto.

Depois disso, só me lembro de estar aqui. Olhando para essa placa, para esses túmulos e me perguntando o "por quê?". Entendi que poderia ficar aqui o resto da eternidade, e não saberei a resposta. Em uma das visitas do homem misterioso, mesmo com muito medo, pelo estranho frio na espinha que ele me ocasionava, perguntei quem ele era. Me disse que se chamava "Luto", e que eu só conseguiria me livrar dele , e da dor que estava sentindo no peito, se o encarasse de frente e parasse de fugir. Mas, eu não queria. Tinha certa apreensão pela aparência dele, que sempre mudava. Teve vezes, que ao olhar para ele e tentar encará-lo, senti ódio e queria esmurrá-lo até perder as forças. Outras vezes, tinha vontade de deitar minha cabeça em seu ombro e chorar até adormecer.

Entretanto, só quando entendi (e aceitei) dar as mãos ao homem de terno, e parar de querer saber o motivo, foi que consegui sentir nele a paz que eu tanto ansiava, e acabei deixando aquele túmulo para trás, e finalmente consegui superar meu próprio luto e disse adeus para meu velho corpo terrestre.

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V. HONORATO