ROMASANTA

A guerra transformou as cidades em ruínas. A ordem, a lei, foram perdidas. As pessoas se dividiram no caos em ovelhas e lobos. Os primeiros fugiram para a floresta, com medo, tentando se esconder e os lobos seguiram atrás, famintos. Até que finalmente veio o fim das batalhas e a terra desolada voltou a ser reclamada, a sociedade ruída retorna devagar rumo ao controle de outrora, ou ao menos à falsa noção de segurança. As engrenagens da civilização voltam a rodar lentas, mesmo que com dentes desgastados.

Os criminosos que reinaram em meio ao pandemônio sem controle se escondem. Misturados em meio aos perdidos e vitimados, lobos em peles de cordeiro, fogem da punição. Alguns, porém, ainda deslumbrados pelo poder de espalhar o terror desafiam os soldados. Esperando no campo o inverno chegar para selar todas as estradas e sepultar o mundo em um manto de gelo e morte. Estes homens acreditam que só necessitam vencer o inverno e a fome para renascerem como nobres e homens ricos no mundo pós-guerra.

Eles atacam fazendas vizinhas e emboscam os viajantes nas trilhas. Longe demais das cidades eles se consideram intocáveis, senhores do interior. No entanto os governantes não estão dispostos a relevar seus crimes e desejam fazer deles um exemplo para todos de que ninguém está fora do alcance da justiça. Os soldados recebem ordens para procurá-los assim que a neve começa a derreter.

***

Chovia muito para aquela primavera. Era como se os deuses quisessem lavar todo o sangue derramado nas últimas estações de uma só vez. A mansão abandonada foi encontrada depois de investigar e varrer a área por alguns dias, os relatos das vítimas denunciavam um comportamento violento e cruel. Os soldados se aproximaram prontos para o combate pesado.

No entanto o que encontraram foram corpos mutilados, sangue e tripas espalhados pelos aposentos. Membros roídos até os ossos. Talvez um animal selvagem pudesse ter feito aquilo, um favor da natureza eles consideraram. Entretanto ao ler o diário do líder do bando eles conheceram uma outra história.

Havia um homem acorrentado na adega abandonada. Ninguém sabia dizer ao certo por quanto tempo ele estava daquele jeito ali, trancado, mas assim que o encontraram decidiram libertá-lo. Alguém que estivesse preso daquela forma só podia ser um desajustado como eles e assim, curiosos, libertaram o homem sem se preocupar com as consequências de suas ações.

Sem consciência, em febre, o homem sofria uma dor constante, se contorcendo. Por dias ele permaneceu assim e os bandidos consideraram que ele não iria durar muito mais, mesmo assim cuidaram dele como podiam. Mesmo o coração sádico pode ser simpático quando julga encontrar um igual. A cada dia ele piorava até que finalmente em uma noite ele se calou. Nesta mesma noite, mais tarde, uivos foram ouvidos do lado de fora, lobos espreitavam a casa. Ansiosos por ter carne para comer os homens saíram para tentar acertar a alcateia. Nenhuma prece foi feita para o moribundo sem nome.

O sangue quente das feras fervia sobre a neve derretendo o gelo e a lua brilhava no céu, cheia, derramando seu véu de prata. A morte das criaturas despertou algo no homem, algo de outro mundo. O que saiu da casa para caçá-los no luar não existia neste mundo, ao menos, não deveria existir. Eles tentaram alvejá-lo, mas as balas só pareciam irritá-lo ainda mais. Alguns fugiram para a floresta e o inominável os seguiu. Seus gritos ecoaram pelo vale por toda a noite. Os que ficaram na casa experimentaram o mais puro pavor ao ver na noite seguinte algo se aproximando de volta.

Cercado de lobos o ser que não era nem homem nem lobo os liderava. Eles se esconderam dentro da residência e barraram como podiam as portas e janelas. Mas aquilo conhecia melhor do que qualquer um a mansão e se esgueirou por uma caverna próxima até as paredes rachadas do porão para chegar à adega. Em silêncio, usando as sombras, ele furtivamente abateu um a um. O líder do bando foi o último e em desespero deixou no diário a localização de onde o saque dos roubos que eles haviam cometido estava e com mão trêmula registrou seu pedido de perdão a Deus por todos os seus pecados. O homem acreditava piamente que o que tentava derrubar a porta do seu quarto era um demônio enviado do inferno para fazê-lo pagar por toda a dor e sofrimento que ele causara.

Os restos dos criminosos foram enterrados como indigentes sem direito a qualquer rito ou funeral. Desprezados pela história eles desapareceram dos registros, esquecidos e desimportantes sem deixar saudades para ninguém.

***

Os soldados encontraram as correntes e nada mais sobre o tal homem. O local onde o tal tesouro estava localizado fora escavado e não havia mais nada ali. Os políticos e militares sem saber o que fazer sobre o caso resolveram classificá-lo como sigiloso e nenhuma outra palavra foi dita sobre o assunto. Os locais consideram a mansão e seus arredores amaldiçoados e se recusam a se aproximar.

Após algum tempo um caixeiro-viajante começou a viajar pela região do vale vendendo quinquilharias, entre elas, parte do que poderia ter sido os pertences roubados no saque dos criminosos. Os guardas começaram a investigar e descobriram que onde este tal comerciante passava, pessoas desapareciam somente para serem reencontradas mortas e mutiladas como os corpos dos criminosos. Sem poder ligar o homem aos crimes ele foi liberado, não antes sem ser interrogado e torturado. Romasanta era seu nome e ele riu ao abrirem suas algemas e antes de partir disse para os guardas:

"O homem é o lobo do homem... Quem quer que seja que vocês procuram é alguém muito perturbado, mas apenas um homem. Um homem capaz de entrar em suas casas e degolar sua família inteira sem acordar ninguém, mas ainda somente um homem. Um homem esperto e rápido que não deixa pistas e lembra-se de cada insulto feito, contudo nada mais do que um simples homem. Que Deus esteja com vocês para que os senhores possam encontrá-lo logo, antes que ele os encontrem."

"Uma boa noite e boa sorte."

Uivos ecoaram na noite enquanto ele se distanciava na estrada sumindo nas trevas.

José Rodolfo Klimek Depetris Machado
Enviado por José Rodolfo Klimek Depetris Machado em 20/12/2016
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