BEM-VINDO AO INFERNO


Carlão era um sujeito extremamente infeliz que vivia se queixando da má sorte que tinha na vida. Nada dava certo para ele. Desde pequeno acostumou-se a ver os outros se darem bem e ele só se ferrando. Todo mundo arranjava namorada, ele não. As meninas o tratavam com indiferença e raramente olhavam para ele. Quando o faziam, dava para notar que o contemplavam com desprezo e certo desagrado que alguém poderia interpretar  até como nojo. Se alguém dissesse para o Carlão que isso era consequência do fato de ele andar sempre mal arrumado e sujo, ele se aborrecia e ficava bastante agressivo. Dizia que as garotas eram umas vadias que só se interessavam por rapazes cheios da grana e ele, como era pobre, não tinha nada para oferecer a elas. Chamava as garotas de Marias-Gasolina e ele, como não tinha carro, jamais teria qualquer chance.
Quando chegou o tempo de procurar emprego foi a mesma coisa. Todos os colegas conseguiram entrar para o mercado de trabalho, e depois de algum tempo, a maioria já havia se tornado profissional em alguma ocupação ou até mesmo já haviam montado empresa própria. Ele não. Trabalhou como ajudante no comércio e na indústria, tentou aprender uma profissão na área de prestação de serviços, como barbeiro primeiro e depois como marceneiro, mas nunca passou de aprendiz. Em todas essas tentativas, depois de um, ou no máximo dois meses, ele desistia, dizendo que não tinha jeito para a coisa. Por fim, acabou mesmo ganhando a vida como servente de pedreiro, trabalhando como um cavalo velho (como ele dizia) para ganhar cem contos no fim da semana, dinheiro esse que gastava todo no bar da esquina, tomando tudo em pinga.
Seus colegas, que haviam se dado bem na vida, tinham estudado, fizeram cursos noturnos, ou então tinham se tornado práticos em alguma profissão. Quando perguntavam ao Carlão porque ele não fazia isso também, ele dava de ombros e dizia que isso não ia adiantar nada porque ele não tinha sorte na vida.
Invejava alguns e odiava a todos, sem ter admiração por ninguém. Amor nunca soube o que era.  Sentia-se desprezado e evitado por todo mundo, rechaçado como se se fosse um leproso. Ninguém o convidava para nada e ao cabo de algum tempo se viu sem nenhum amigo, completamente solitário e sem lugar para ir. Por fim, cansado daquela vida sem esperança, tornou-se ladrão de residências, assaltante de postos de gasolina e acabou até matando uma vítima que certa vez resistiu á sua tentativa de assalto. Pegou cadeia e cumpriu dez anos, saindo em liberdade vigiada.
 
No entanto, tinha sonhos de ser um homem feliz. As duas coisas que mais desejava era ficar rico e ter uma mulher muito bonita, com quem pudesse constituir uma família. Mas achava que a segunda coisa só aconteceria se ele, um dia, conseguisse a primeira. Por isso, logo voltou a roubar e á medida que o tempo passava se tornava um ladrão mais perigoso.
Um dia o Carlão dia teve um sonho. Sonhou que em determinado lugar, lá no alto da serra que ele podia avistar no horizonte, havia uma caverna e em baixo dela uma linda cachoeira. Nessa caverna um riquíssimo tesouro havia sido escondido há muitos séculos atrás por um bando de assaltantes dos tempos da Inconfidência Mineira. Ele havia lido em algum lugar que naqueles tempos muitos assaltantes de estrada costumavam assaltar as caravanas que vinham das Minas Gerais, levando o ouro extraído para o porto de Paraty ou do Rio de Janeiro. E eles escondiam o produto do saque nas cavernas daquelas serras. E quem o achasse seria o seu dono.
No começo Carlão não ligou muito para o sonho. Ele não era de acreditar nessas coisas. Mas o sonho se tornara intermitente. Era toda noite a mesma coisa.  E cada vez mais nítido e mais detalhado. Mostrava até o caminho para a caverna. E até o advertia para não acreditar nas pessoas que encontrasse pelo caminho, porque elas iam dizer para ele que sonho era besteira e iriam tentar impedi-lo de chegar até o tesouro.
O sonho se repetiu tanto que, um dia, Carlão se convenceu de que era a fada da sorte que estava lhe falando durante o sono. Ele, que sempre se queixara da má sorte, estava agora tendo a chance de mudá-la. Era só ter a coragem e a disposição para encontrar a tal caverna.
Assim pensando, lá se foi ele em busca do tal tesouro. Embora o sonho fosse nítido e mostrasse com clareza o caminho, a tal caverna não parecia ser muito perto. Seriam vários dias de caminhada, tendo que atravessar inclusive uma floresta, pois, ao que parecia, a caverna ficava no alto de uma serra, bem distante do lugar onde ele morava.
Depois de caminhar por várias semanas, Carlão, cansado, parou em uma casinha, á margem da estrada. Uma moça, de deslumbrante beleza, o recebeu. Era a moça mais bonita que ele jamais vira.  Carlão imediatamente encantou-se com ela. A garota era extremamente gentil e hospitaleira. Hospedou-o, cuidou dele, deu-lhe comida e uma boa cama para descansar. E ao fim de três dias naquela casa  Carlão estava perdidamente apaixonado por ela e ela por ele. Ela, então, lhe propôs que ficasse morando lá, que se tornasse seu marido, se ele quisesse. Pois ela tinha muitas terras e muitos bens. Seus pais haviam morrido e ela estava se sentindo muito sozinha. 
 ─ Se trabalharmos juntos ─ disse a moça ─ poderemos ficar ainda mais ricos.
Carlão gostou da ideia, mas imediantamente pensou no enorme trabalho que teria para manter aquela fazenda. De repente, sentiu-se cansado e impotente.Trabalhar não era sua praia.
“ Eu não posso ficar aqui com ela, agora”, pensou. “Primeiro tenho que achar a caverna dos meus sonhos. Depois, quem sabe eu volto.Contrato bastante gente para trabalhar para mim e vou viver feliz até o resto da vida.”.
E sem se importar com as súplicas, os argumentos e nem mesmo com as lágrimas da moça, ele partiu, deixando a jovem desconsolada.
Depois de caminhar mais duas semanas, chegou á uma fazenda, onde avistou uma grande casa, em meio a uma enorme plantação. Parecia ser uma fazenda muito rica. Havia um imenso rebanho de bois no pasto, que devia valer uma fortuna. Mas ele não viu viva alma naquela fazenda. Nenhum empregado. A fazenda aparentava estar completamente vazia e abandonada. Caminhou até a enorme varanda da imensa casa, em estilo colonial, bateu na porta e ouviu, lá dentro, uma voz que pediu para ele entrar. A voz parecia sair de um quarto, situado no andar de cima. Estranhou não encontrar ninguém lá dentro, só aquela voz que pedia para ele ir até o quarto. Mas ainda assim, bem desconfiado e com receio, ele entrou.
Subiu até o quarto e lá encontrou um homem muito velho, deitado em uma cama, sorrindo para ele, com o resto das forças que parecia ainda haver nos músculos do rosto.
─ Que bom que você apareceu, meu filho, disse o velho ─ com um fio de voz. ─ Eu já estava perdendo a esperança que alguém aparecesse.
─ O que houve aqui? ─ perguntou Carlão. ─ Porque não há ninguém nesta fazenda?”
─ Foi uma epidemia de cólera, meu filho. Ela matou cinco pessoas em uma semana e todo mundo ficou com medo e fugiu─ respondeu o velho.
─ E o senhor, porque ficou? Não tem medo de pegar a doença?
─ Eu estou muito velho, meu filho. Vou morrer de qualquer jeito. E depois eu sou o dono desta fazenda. Não tenho filhos, nem parentes, nem ninguém que possa tocar isso para mim. A epidemia já passou, já não há mais nenhum foco da doença, mas as pessoas tem medo e não querem voltar.
Carlão passou mais três dias na fazenda, cuidando do velho. Ao fim desses três dias o velho morreu, mas antes de morrer chamou-o para perto de si e perguntou-lhe se queria ser seu herdeiro. A fazenda era muito rica, mas ele teria que trabalhar bastante para recuperá-la. Tinha muitas coisas para fazer. Recontratar trabalhadores, recuperar clientes e fornecedores, cuidar do gado, das plantações,enfim, um trabalho de administração bastante intenso.
Carlão pensou no trabalho que iria ter e ficou cansado de repente.
“Não posso ficar com esta fazenda”, pensou. “Tenho coisa melhor para fazer. Preciso correr atrás do tesouro do meu sonho”. E assim pensando, ele disse não ao fazendeiro, e saiu, poucos minutos depois de o velho render o espírito.
 
Depois de mais de um mês de caminhada, Carlão chegou, enfim, á cachoeira dos seus sonhos. Reconheceu-a imediatamente como a visão que não saia da sua mente. Não havia o que por nem tirar. Era exatamente como a sonhara. Uma visão maravilhosa! A água descia de uma vertiginosa altura, em lindos feixes dourados, que reverberavam ao sol. Um arco-íris de deslumbrante beleza curvava-se sobre o espelho d’água, como se fosse um mítico animal, matando sua insaciável sede.
Na base da cachoeira, ele avistou o que parecia ser a entrada de uma caverna. De roupa e tudo, com o coração quase a sair pela boca de ansiedade, nadou até a entrada. Depois de passar por uma espécie de antecâmara, avistou uma enorme porta de madeira, que deixava entrever, por entre suas frestas, uma réstia de dourada luz. Exatamente como no sonho.
“ É ali que deve estar o tesouro”, pensou Carlão. Com o coração batendo forte correu para ela. Ao colocar a mão na pesada maçaneta, seus olhos caíram sobre os dizeres que encimavam o umbral. “Quem daqui passar, seu destino encontrará”, dizia o letreiro escrito em letras góticas. Era isso mesmo que ele procurava: seu próprio destino.
Carlão girou a maçaneta. Ao fazê-lo pensou na moça linda e generosa que deixara na fazenda. Com o tesouro dos seus sonhos nas mãos, ele poderia voltar e desposá-la. Arrendaria as terras dela e não precisariam trabalhar para mantê-la. Pensou também no velho fazendeiro que lhe oferecera uma fazenda como herança. Poderia arrematá-la no leilão que certo se faria dela e arrendá-la. Pensou em quão feliz seria com toda aquela fortuna. Não precisaria mais viver do crime. Seria o homem mais feliz do mundo.
Carlão se viu dentro de uma enorme sala iluminada com uma luz dourada, ofuscante e tão brilhante, como se a sala toda fosse revestida com ouro. Mas ela estava completamente vazia. Não havia ali um único objeto, nem móveis, cortinas, nada. Apenas uma única lâmpada amarela, acesa, pendurada no teto, proporcionava todo aquele brilho que coruscava, intenso, como se todo o ouro do mundo tivesse sido reunido ali. Era dela que vinha toda aquela enganadora luminosidade.
E então ele ouviu uma voz que dizia. ─ Finalmente você veio. Seja bemvindo, meu amigo. Você agora é meu!
Carlão reconheceu aquela voz. Era a voz que lhe falava em sonhos. Mas agora ela o assustava. Era uma voz cavernosa, que emitia um som monstruoso, que parecia sair das profundezas do inferno. Era o próprio Diabo que assim lhe falava. Seus cabelos ficaram em pé. Um arrepio percorreu toda sua espinha, desde o alto do couro cabeludo até a planta dos pés.
Imediatamente percebeu que havia caído em uma armadilha. Correu para a porta. Tentou abri-la, mas ela estava trancada. Olhou para todos os lados procurando uma janela, uma fenda, um buraco que fosse, que lhe permitisse sair daquele lugar infernal. Nada. Estava completamente preso. 
Uma gargalhada diabólica encheu os condutos do seu ouvido e estourou nos circuitos do seu cérebro enquanto sentia que a sua alma estava sendo arrancada do corpo com a violência de uma força irresistível.
 
─ Deus, perdoe-me - gritou ele com toda a força dos seus pulmões.  - - Nunca pensei que a fada da sorte fosse assim tão feia e malévola ─  gritou Carlão, ao ver, na penumbra da caverna, a sombra monstruosa da figura que puxava sua alma para fora do corpo, como se ela fosse uma rolha sendo tirada de uma garrafa.
─ Deus não têm jurisdição aqui ─ respondeu a monstruosidade ─ e quanto á fada da sorte, no seu caminho para cá você se encontrou duas vezes com ela e não a reconheceu. Isso é o que sempre acontece com todos aqueles que desejam vencer na vida sem fazer força. A preguiça, a inveja, a ambição desmedida e sem ética, são cataratas que eu coloco nos olhos dos sonhadores e dos imbecis que sonham com a fortuna, mas não estão dispostos a trabalhar para obtê-la. Essa é a minha estratégia para atraí-los para cá. Cedo ou tarde, todos caem no laço que eu armo para eles.
─ Seja bem-vindo ao meu reino ─ disse a monstruosidade, rindo diabolicamente. ─ Para ele vêm, cedo ou tarde, todos os preguiçosos, todos os invejosos, todos os rancorosos, todos os criminosos, todos os egoístas, os malandros e vagabundos que se deixam levar pela ilusão da riqueza fácil.
E foi então que ele mergulhou na escuridão daquele poço sem fundo onde todas as esperanças se dissipam e a eterna angústia é a única realidade que sobra para ser vivida.