A proposta ao velho agricultor
Olhou para cima, graças à sombra do chapéu de palha, não tinha relógio, mas sabia que era hora de voltar para a sua velha casa castigada. Raimundo, cujo rosto marcado pelo tempo, sol, exposição ao clima árido do Piauí, decidiu botar a enxada sobre o ombro, pegar a cabaça de água, deixar a solidão da roça e encerrar o trabalho por aquele dia. Ninguém o aguardava, mas não tinha mais forças. Estava exausto. Passou todo o dia roçando o chão árido. A terra estava seca. Há três semanas não chovia. “Seria mais um ano sem inverno”, pensou o trabalhador.
Pegou o rumo de casa pensando em como a sua vida tinha sido sofrida. Viu três irmãos morrerem de desnutrição ainda criança. E ao casar, bastante jovem, perdeu a esposa e o filho no trabalho de parto. Algo raro. Não enterrou no cemitério do pequeno interior de Santa Clara, preferiu depositar-lhes os corpos ao lado de sua casa. Esse fato já fazia 25 anos. Nunca mais se casara, apesar da insistência dos familiares. Nunca se recuperou da dor. Uma vida marcada por imensas perdas. Seu rosto era a imagem da tristeza sem fim. Escolheu a solidão como companheira ideal. Além do mais, não tinha dinheiro para sustentar uma família. Percebeu logo cedo.
Caminhava por entre roças cercadas pelo arame farpado, que protegiam o milho e o feijão, que não vingavam. A terra pesava-lhe sob e sobre as botas brancas de borracha que calçava. Sentia-se mais cansado naquele dia do que nos outros. Algo estaria errado. Faltava ainda alguns quilômetros para chegar na sua velha casa. O peito esquerdo estava mais apertado. Tirou a enxada do ombro e parou. Caminhou lentamente até o grande juazeiro que estava alguns metros à sua frente. Encostou-se nele. Retirou a tampa feita de sabugo de milho da cabaça e bebeu o que restava da água quente. Ofegava. O chapéu foi ao chão. Soava frio.
Se abaixou, fazendo careta ante a dor severa. Caiu de bruços, respirando cada vez mais devagar. Cuspindo terra. Havia chegado a hora pela qual tanto esperava. A morte vinha buscar-lhe. Finalmente. Por ela há muito ansiava. Apesar de toda a frustração que havia sido a sua vida, jamais deixou a fé dos pais. Era católico. Recitou:
- Jesus, Maria e José, minha alma de vós é.
Momento em que uma sombra aproximou-se e falou-lhe mansamente.
- A dor pode cessar, e a sua vida continuar, basta me servir.
Abrindo os olhos com dificuldade Raimundo, com o canto do olho esquerdo desconheceu aquele sujeito bem arrumado. Não tinha forças para se erguer. Apenas balbuciou:
- O quê? – De forma quase inaudível.
- Apenas sinalize que me servirá e eu lhe darei mais anos de vida, saúde, dinheiro, mulheres. Aquilo que todos querem. Basta dizer que quer a minha ajuda e que estará à minha disposição quando eu precisar.
Um sorriso sínico brotou dos lábios do estranho.
Raimundo nunca havia visto um sujeito vestido daquele jeito em Santa Clara, ainda mais no meio das plantações. Ele não sabia descrever, mas o desconhecido usava sapatos de bico fino, calça, camisa, gravata e terno negros, bem cortados. Cabelo também negro em contraste com a pele branca e jovial. Queixo e ombros largos, mostrando robustez. Um home muito bem alinhado.
Imediatamente o agricultor lembrou-se das histórias de pessoas que repentinamente ficavam ricas. Falava-se na descoberta de boticas de moedas escondidas em casas antigas, mas quando criança sua avó lhe contou a história de um homem que visitava os moribundos oferecendo riquezas e vida longa. Muitos aceitavam, e tinham de pagar um preço muito alto. Jurava que se isso lhe acontecesse algum dia, responderia: não, e jamais negaria o “Deus Vivo”, cuja família servia desde sempre, independente das condições em que se encontrava.
- E então? – Perguntou o homem com um sorriso nos lábios.
- Vá embora – sussurrou Raimundo – minha alma entrego ao Nosso Senhor!
Um som seco, como se algo tivesse caído em meio à terra se fez ouvir. O homem alinhado desapareceu, deixando para trás o cheiro de enxofre.
O corpo de Raimundo foi encontrado minutos depois por outros agricultores que tentaram salvá-lo. Buscaram ajuda. Mas ele não pertencia mais a esse mundo. Um ataque cardíaco o vitimara fatalmente.
Raimundo foi enterrado ao lado da cova da esposa e da pequena erupção terrestre onde estava o filho recém-nascido. Todos choraram a perda do homem solitário e, embora não soubessem explicar o porquê, algo mais do que a sua vida de sofrimento os comovia. Sentiam que ele havia travado uma luta, não se sabe de qual tipo, mas prevalecera, mesmo com a morte.
Um pouco afastado dali, Raimundo, ladeado pela esposa que segurava o filho pequeno entre os braços. Sorria. Trajavam roupas novas, estavam bem nutridos, com a pele limpa e o olhar bem vivo. Triunfara na hora da morte. Deram as costas para as pessoas que velavam seus corpos e caminharam em direção à luz.