O Livro

Na Avenida das Camélias é possível encontrar toda sorte de material eletrônico, bugigangas e apetrechos para o lar. Com alguma sorte você pode comprar algo de qualidade, mas, em geral os materiais ali vendidos, bem como seus respectivos vendedores, não gozam de boas venturas com os fiscais da alfandega. Entre uma barraquinha de mercadoria alternativa e outra, encontra-se o acesso a um beco. O Beco do Sebo, é assim que é conhecido o local. É uma viela apertada e comprida, espremida entre vários armazéns e lojas. O Beco do Sebo é assim conhecido, pois, lá é possível encontrar o sebo do senhor Almude. O senhor Almude é um jovem idoso; possui cerca de 80 anos no rosto, e 50 nos documentos, assumiu o sebo assim que seu pai adoeceu, cerca de 30 anos atrás. Ainda era jovem, é bem verdade, mas o tino para o comércio estava no seu sangue, e o sebo do senhor Almude permaneceu como referencial de boas obras e preço justo. Muitas pessoas costumam aparecer por lá, às vezes compram um ou dois livros, outras vendem ou trocam, um negócio nunca é perdido, o sangue turco corre poderoso nas veias do velho vendedor, de forma que sempre é possível fechar um bom negócio. Todos sempre saíram felizes do sebo do senhor Almude, até aquele dia.

O Jovem Sebastian entrou no sebo como sempre, sorriu ao simpático vendedor que retribuiu com alegria o gracejo do adolescente. Dirigiu-se a seção infanto-juvenil e ficou por alguns minutos olhando os livros. Pegava-os, sentia o peso, o cheiro... Passava os dedos pela capa sentindo a textura e cumprindo o ritual de namoro literário que antecede uma compra. Observou que apesar do sorriso do Senhor Almude o velho parecia estranho, alguma coisa estava errada, o simpático vendedor de sempre, hoje parecia tenso e preocupado com algo, era possível ver um peso silencioso sobre seus olhos. Sebastian deu de ombros, bobeira, estava sendo imaturo, não deveria ficar prestando atenção no problema dos outros e muito menos se assustando com isso. Precisava deixar de ser tão impressionável, precisava amadurecer. Talvez... Talvez se começasse a ler algo de gente grande, um romance policial quem sabe? Dirigiu-se à seção policial. O ritual de acasalamento leitor-obra seguiu-se mais uma vez. Com o canto de olho Sebastian percebeu que o velho agora estava mais tranquilo. O que será que o atormentava? Lembrou-se de uma brincadeira da infância, “esconder a pêa”. A brincadeira consistia em esconder a “pêa”, que era nada mais que algum objeto qualquer. Depois os amigos começavam uma busca frenética por ela, enquanto o escondedor informava se eles estavam quente ou frio, dependendo do quão perto ou longe estavam da “pêa”. Mas afinal, que diabos significava “pêa”? Nunca parou para se importar com esse detalhe. Não era fundamental para a brincadeira. O fato é que lembrara dessa brincadeira. Talvez ainda fosse de fato meio criança. Largou os livros policiais e voltou-se a seção infanto-juvenil. Compraria um livro fantástico, algo com magia e suspense. Esses costumavam ficar na extremidade oposta da seção. Andou calmamente até lá. Foi então que lhe ocorreu. O Senhor Almude estava de novo atormentado. Novamente com aquela expressão de perigo real e imediato nos olhos. Perigo real e imediato... Isso é um filme, um livro. Boa pedida. Era um livro com bastante suspense, era disso que precisava. Sebastian tentou lembrar, já havia encontrado aquele livro por ali. Sim, foi mais ao lado. Seguiu na direção e foi aí que percebeu. Quanto mais se aproximava da estante “variados”, mais o senhor Almude se sentia inquieto, quanto mais se distanciava, mais ele acalmava. A ideia veio na sua mente como um trovão. Esconder a “pêa”... Havia algo naquela estante que incomodava o Senhor Almude. Aproximou-se ainda mais, dessa vez fitando o velho, percebeu que a expressão de inquietação de velho se tornou em pequeno terror.

-Menino, vá embora, nós... Nós não podemos atendê-lo hoje.

-Mas Senhor Almude... Qual o problema.

-Nada garoto, apenas vá embora daqui, hoje não é um bom dia para comprar livros.

-Eu já estou saindo, deixe-me apenas olhar essa prateleira sim?

-Você tem cara de que gosta de um bom suspense. Aqui, tome para você. A Ilha Misteriosa, de Júlio Verne. Pode levar. Presente meu.

-Para mim? De graça?

-Sim, aqui, pegue e vá, amanhã você volta. Agora vamos, chispe daqui.

Sebastian não entendeu, ou entendeu até demais, o velho o queria fora da loja, o velho o queria longe da estante. Mas qual o por quê? Andou em direção ao velho, mas perscrutou a estante com os olhos, de forma a tentar desvendar o tal mistério em seus momentos finais na loja. Então o encontrou. Escondidinho, entre um livro e outro, bem no cantinho inferior da prateleira. Um livro de capa de couro, um livro... Diferente. Sebastian sabia que era ele. Sabia que aquele livro era especial. De manhã antes de sair de casa sentiu uma vontade louca de comprar um livro; quando entrou no sebo, sentiu que precisava comprar um livro, mas não sabia qual, havia algo... Algo em seu corpo que o conduzia, uma insatisfação completa com todo tipo de livro que tocava, mas aquele... A simples visão de sua capa o tocou profundamente na alma. Sebastian aproximou-se e o pegou. Sentiu um calafrio, um vento gelado soprou suavemente ao pé de sua orelha e todos os seus pelos eriçaram. O livro possuía uma mancha chamuscada no canto inferior direito, mas era gelado como... Como uma lâmina, pensou. Havia também uma inscrição em sua capa. Sebastian tentou ler... Não conhecia essa palavra. Foi então que olhou par ao velho. O homem estava imóvel, seus olhos estavam vermelhos e com muito custo ele reprimira um choro. Havia um ar de desespero em seu olhar, um misto de medo, culpa e pena. A cena deixou Sebastian inquieto.

-Não fique assim senhor Almude, não quero causar problemas, eu... Eu estou de saída já. Agradeço o presente, de coração, mas vou levar esse aqui. Os variados custam 5 reais certo?

-Meu filho, se em algum momento da sua vida você pensou em tomar uma decisão acertada, eu lhe peço, por tudo que é mais sagrado, pelo Sagrado Coração e a Sagrada Família, não compre esse livro.

-Mas senhor Almude. Eu quero esse livro, gostei dele, ele tem essa capa maneira e é friozinho, geladinho como...

-Como uma lâmina.

-Sim, exatamente o que eu pensei.

-Ó Deus, tem misericórdia dessa alma meu Pai, ele é apenas uma criança, não permitas que o mal atinja essa vida. Ele é Jovem meu Senhor, não tem discernimento.

Sebastian assustou-se, nunca vira o Senhor Almude desse jeito, ele agarrou o crucifixo que usava preso ao pescoço e rezou. Rezou com uma voz embargada. Sem dúvida a mesma voz que o Cristo usara em sua oração final no Getsemani.

-Meu garoto, você sabe quem é Caronte?

-Não senhor.

-Ele é o barqueiro que leva as almas dos condenados ao mundo dos mortos. Ele possui um remo e um barco, em muitas culturas ele possui uma foice também.

-Como a morte?

-Sim garoto, perfeito, como a morte. Esse livro que você pegou ai, ele é gelado, frio como a navalha da morte. E ele escolheu você, ele subiu das profundezas do inferno como uma maldição aos homens, e agora... Ele quer você.

-Maneiro! Vou levar ele mesmo senhor Almude. Gostei.

-Sim filho, eu compreendo. Você sentiu não foi? A respiração dela. Quando você tocou o livro ela o abraçou, o tomou por alvo. Você sentiu quando ela respirou perto de seus ouvidos não foi?

-Senhor Almude... Eu... Não sei se estou muito a vontade com essa história, acho que... Não vou levar o livro. Eu senti sim, um ventinho gelado. Mas não estou gostando do jeito que o senhor fala.

-Sim. Esuriit é o nome dela. Ela é a dona desse livro que você segura.

-Seperunt? Que nome é esse?

-Sepelieruntque. É latim meu jovem. O livro que carrega a maldição, esse é seu nome. Dê-me o sim.

Sebastian estava assustado agora, não gostou daquela conversa mórbida, não gostou do calafrio que sentira e definitivamente não gostou daquele presságio. Estendeu a mão para entregar o livro, mas quando o ia faze-lo algo o deteve. O livro era... Gostoso de se segurar. Não poderia simplesmente larga-lo. Não deixaria que aquelas histórias e a oração o fizessem desistir de um bom livro. Afinal, se o livro era tão maldito assim, porque estava a venda? Conversa! Iria compra-lo.

-Acho que vou leva-lo senhor Almude. Quero muito ler esse livro.

-Meu filho, escute o...

-Obrigado pelo clima Seu Almude, esse papo todo ai vai fazer a leitura ser mais gostosa, deve ser uma boa história de terror, nem abri e já estou meio assustado.

-Sim, é a pior de todas as histórias. O livro carrega uma maldição filho, deixe-o aqui. Você tem uma vida inteira pela frente.

-Se o livro é tão maldito assim, porque está a venda? Porque o senhor simplesmente não guardou lá dentro?

-Eu o guardei filho, por toda minha vida, mas hoje, hoje era o dia em que deveria o expor, hoje ele escolheria um novo dono. Ela veio até mim ontem. No meio da noite, apareceu a mim. Disse-me que hoje era o dia, que o livro deveria ser colocado a venda.

-Ela quem?

-Esuriit. A dona do livro. Acordei no meio da noite e a vi em pé, na porta do meu quarto. Um demônio terrível, seu manto negro caia pesadamente sobre o chão, suas mãos secas e purulentas seguravam uma foice. Havia um cheiro pútrido em todo o cômodo. A sua voz era como o gemido de centenas de almas atormentadas, as almas que ela captura e sorve em sua eternidade. Ela olhou pra mim e em seus olhos eu vi.

-Viu...

-Eu vi o inferno filho. Eu vi o inferno de todas as almas que Ela aprisiona. Eu vi o desejo dela por mim.

Sebastian estava impressionado, o velho falava como que em pânico, suas mãos tremiam e ele evidenciava um terror absoluto. Aquilo era de fato real. Não que tenha acontecido, mas era real para o velho, ele de fato teve esse delírio e sem dúvida precisava de ajuda médica.

-Quem é você?

-Você sabe que eu sou.

-Esuriit...

-Sim. Sou conhecida assim também. Estou triste meu amigo, amanhã nos despediremos. Não poderei levar tua alma comigo, não poderemos ser um pela eternidade...

O Senhor Almude começou a tremer, a visão daquele demônio era demais para ele, agarrando as mão em forma de prece, rogou aos céus proteção.

-Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam, e nem em pensamentos eles possam me fazer mal...

-Ah pare com essa bobeira, meu tempo se esgotou. Quantos anos tivemos? 30 anos não é mesmo? Como esperei que você abrisse o livro, seria tão doce para nós dois. Poderíamos ser um. Você iria gostar. Na verdade... Ainda há tempo, ele está ai com você não é? A maldição não deixa que se afastem. Onde esta? Na cabeceira da cama.... Vamos, pegue-o, leia ao menos as primeiras linhas...

A oração saia agora entrecortada, as palavras faltavam. O medo o dominava. O Senhor almude seguia firme a sua prece. Mantinha os olhos fechados e apertava o crucifixo com tamanha força que sentiu um filete de sangue escorrendo por entre os dedos.

-Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar, cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar. Jesus Cristo, me proteja e me defenda com o poder de sua santa e divina graça, Virgem de Nazaré, me cubra com o seu manto sagrado e divino, protegendo-me em todas as minhas dores e aflições, e Deus, com sua divina misericórdia e grande poder, seja meu defensor contra as maldades e perseguições dos meu inimigos...

-Tudo bem, se você se recusa, não há o que fazer. Vez ou outra eu perco, sei reconhecer, mas ainda tenho um trunfo sabia?

-Glorioso São Jorge, em nome de Deus, estenda-me o seu escudo e as suas poderosas armas, defendendo-me com a sua força e com a sua grandeza, e que debaixo das patas de seu fiel ginete meus inimigos fiquem humildes e submissos a vós...

-Amanhã você deve por o livro a venda, coloque-o junto com os outros, eu trarei uma nova refeição, alguém com mais vida. Alguém... Como seu pai. Então você estará livre de mim, verme mortal. Desobedeça-me e terei autoridade sobre teu corpo. Assim como tive com o teu pai.

- Assim seja com o poder de Deus, de Jesus e da falange do Divino Espírito Santo. São Jorge Rogai por Nós. Amém.

-E então? Perguntou Sebastian. – Ela estava lá?

-Não, quando abri os olhos ela havia sumido. Havia apenas aquele cheiro horrível no meu quarto, mas eu estava completamente só. Não sei se a reza teve efeito, ou se ela simplesmente disse tudo o que deveria dizer e se foi. Mas ela havia sumido e para mim era o que importava.

-Mas se o livro é maldito assim, porque o senhor não o destruiu?

-Você não acredita em mim não é verdade garoto? Veja isso em minha mão filho.

-Uma queimadura.

Não era só uma queimadura. Sebastian percebeu que a mão direita do senhor Almude era completamente destruída pelo fogo, havia marcas feias e sulcos na carne. Talvez se ele houvesse colocado a mão em uma panela com óleo fervente e deixado por alguns minutos o estrago não seria tão grande, pensou Sebastian.

-Sim, uma queimadura. Tentei atear fogo ao livro. O fogo consumiu o livro e Ela consumiu minha mão. Enquanto amaldiçoado, estamos presos ao livro. Não podemos nos afastar dele, não podemos o destruir e... Nunca, nunca devemos ceder a tentação de ler. Caso contrário... Encontraremos um destino pior que o inferno. Seremos dela.

-Então... O senhor a obedeceu. Colocou o livro para vender para que ela fosse embora.

-Não garoto, ela só pode tentar os amaldiçoados por um tempo, depois ela precisa ir. Ela iria de qualquer jeito. Mas antes ela pode fazer um pedido. Um único pedido por amaldiçoado, essa é a regra. A mim me foi pedido por o livro a vender. Se o amaldiçoado se recusar, ela pode o tocar.

-Tipo matar?

-Não Sebastian, ela só pode tocar a alma dos que leem o livro. Se você desobedece ela o prende.

-Como assim?

-Como ela fez ao meu pai.

-O que aconteceu a ele?

Sebastian estava impressionado com tudo aquilo. Sua pergunta perturbara o velho, deixando-o vagamente com o olhar perdido, como quem inventa uma boa história ou arquiteta um bom plano. O velho senhor almude suspirou, aquelas lembranças eram dolorosas, mas... Talvez ele conseguisse impedir o menino de sair da loja com o livro. Ele sabia que sua maldição já havia acabado, sentiu quando Ela soprou em seu ouvido seu sopro de adeus, assim que Sebastian tocou o livro. Mas... talvez, talvez ainda não houvesse concluído a maldição sobre o garoto. Ele ainda não se decidira se queria ou não o livro, talvez ele desistisse da ideia. Se isso acontecesse, talvez ela ficasse impotente. Ele não estaria mais amaldiçoado e poderia destruir o livro sem destruir a sim próprio ou ao próximo amaldiçoado. Talvez, talvez... Haviam muitos “talvezes”.

-Preste atenção garoto, vou lhe contar como o Sepelieruntque chegou até mim.

Há muitos anos eu e meu pai perdemos minha mãe. Elise era o nome dela. Meu pai tornou-se um homem triste depois de sua morte, nada lhe trazia alegria, nada lhe trazia contentamento, então ele resolveu sair de sua terra natal, mudar de ares, deixar para trás aquela cidade recheada de lembranças e partiu em viagem. Ele andou por vários anos pela Europa e Ásia, sempre negociando seus livros. Meu pai era um bom homem, em excelente vendedor. Ele sabia como fazer você se interessar por um bom livro. Ele conseguia só de olhar para a pessoa saber qual tipo de livro aquele indivíduo precisava. Foi em uma dessas andanças que nós paramos em uma cidade chamada Constança, na costa da Romênia. Iriamos pegar um navio e rumar novamente para nossa casa na Turquia. Lembro-me bem desse dia, encontramos um acampamento de ciganos. Eu era jovem, imaturo, morria de medo daquela gente. Já meu pai era um homem sábio, ele sabia como ganhar dinheiro. Passamos alguns dias com os ciganos, negociando livros, tecidos e outras quinquilharias. Até que meu pai conheceu um velho. Nicholas. Eles conversaram por horas, até que Nicholas o mostrou o Sepelieruntque. Ele contou tudo o que sabia do livro. Contou que ele o herdou com a morte do seu pai. Nicholas nunca lera o livro por ser cego. Mas o guardava com o maior carinho, por ser a única recordação que tinha do seu pai. Seu pai o tinha comprado de um mercador no Egito, o homem o vendera quase de graça, ele estava desesperado para se livrar do livro. O mercador contou que um dia uma velha o vendeu alguns pergaminhos velhos. Assim que viu os pergaminhos sentiu que precisava compra-los. Contava que naquela noite Kauket o visitara e ordenara que transcrevesse o pergaminho em um livro. Ele o fizera, mas enlouquecera. Não havia palavras dentro do pergaminho, apenas... Dor. Assim que transcreveu sentiu uma vontade imensa de ler novamente o texto. Não nos pergaminhos, esses ele queimou, o livro. Algo o impelia a ler. Teve medo, resistiu à vontade e no dia seguinte vendera ao pai de Nicholas. O homem o comprou, e tornou a sua terra. Mas foi impedido de ler por uma velha cigana que conhecia os segredos da terra. Ela disse que sentia a fome de Zburãtor no livro. O homem como bom cigano nunca tocou no livro. Morria de curiosidade de ler, mas nunca o fez. Não completamente. Leu sim, um pouco, no dia da sua morte. Pelo menos é o que Nicholas acreditava. Seu pai fora encontrado morto com o livro no colo. Desde então Nicholas anda dia e noite com o livro, assim garante que a memória do pai viverá consigo. Nicholas nunca atribuiu a morte do pai ao livro. Cerveja e mulheres, isso sim levara o vida do seu velho. Meu pai achou a história fantástica e seguiu noite adentro conversando com o velho Nicholas. Passamos alguns meses com os ciganos, e quando decidimos partir o velho Nicholas nos procurou. Ele não tinha filhos e nem herdeiros, sabia do amor do meu pai por livros, e resolveu presenteá-lo com o Sepelieruntque. Meu pai me contou através do Dasher, que assim que tocou o livro ele sentiu. Assim que pegou ele sabia que estava condenado. Sabia que Ela estava ao lado dele, sabia que deveria ler o livro e entregar sua alma nas mãos dela. Um outo acontecimento naqueles dias não me chamou atenção na época, mas hoje... Hoje eu entendo. Antes de partir uma menina cigana leu a mão do meu pai. A menininha passou alguns instantes tentando entender o que lia, mas era muito nova, não conhecia ainda as técnicas da quiromancia. A mãe, que a acompanhava resolveu demonstrar, mas assim que tocou a mão do meu pai algo aconteceu. Ela sentiu algo estranho, eu pude ver em seu olhar. A cigana ficou olhando seus olhos, olhou por um bom tempo. Ela sabia, meu pai sabia. Todos ali sabiam que ele era um amaldiçoado.

-Mas seu pai leu o livro?

-Meu pai? Não, nunca leu o livro. Foi firme, homem de fibra. As vezes eu acordava no meio da noite com meu pai assustado, ele nunca me contou que tipos de sonhos ele tinha, mas hoje em dia eu sei. As vezes ela aparece em sonhos e nos tenta a ler o livro. Mas ele nunca leu. Os anos se passaram de modo indiferente a mim, que na época era alheio aos tormentos vividos por meu pai. Um dia, entretanto, ele levantou diferente pela manhã. Nesse dia ele me contou toda a história sobre o livro amaldiçoado, me contou que ao longo dos últimos 16 anos fora atormentado por Ela, aquela entidade do inferno. Disse que pesquisou em vários livros a ocorrência de textos amaldiçoados, e descobriu que Ela vem existindo ao longo das gerações, alimentando-se das almas dos infelizes desavisados. Meu pai estava tenso, preocupado. Olhava constantemente para o relógio, como que a espera de algo, de alguém, ou de alguma coisa. Ele me disse que naquela noite ela pedira que meu pai vendesse o livro, mas ele se recusara. Não passaria a maldição a outro. Meu pai sabia que pagaria um preço. “Tenens librum, et capiantur”. Aquele que prende o livro, preso será. Foi o que ela disse a ele. E foi que ela fez,

-O que aconteceu Senhor Almude?

-Meu pai não colocou o livro a venda. E na manhã seguinte... Meu pai não se levantou.

-Ele morreu?

-Não meu filho, ele foi aprisionado. O termo científico é Síndrome do Encarceramento. Meu pai sofreu alguma espécie de trauma no cérebro ou coisa do tipo. Os médicos disseram que ele perdeu todos os movimentos do corpo, mas que sua mente estava perfeita. Ele era capaz de pensar, ver e sentir tudo como uma pessoa normal, mas não podia se mexer. Estava trancado dentro do próprio corpo. Algum tempo depois nós conseguimos um programa chamado Dasher, com ele meu pai pode se comunicar um pouco. Ele me disse que Ela voltou em seus sonhos apenas para tripudiar dele. Ela disse que eu como herdeiro do meu pai, herdava sua maldição. E desde o dia que meu pai me contou isso, ela passou a me seguir. Ao tocar o livro pela primeira vez senti o que você sentiu criança, e soube desde então que eu era um maldito.

Sebastian olhou aquele velho. A expressão dele era de alívio. Era como se ao contar sua história um peso saísse dos seus ombros. Um fardo de décadas de opressão sublimava lentamente dos olhos daquele homem. Teve medo. Sebastian teve aquela sensação de que havia alguém atrás de si. Sentiu um calafrio se espalhar pela coluna e pela primeira vez ele soube. Soube que Ela estava ali, soube que Ela estava bem atrás dele. Olhando por sobre seus ombros. Ele sabia o que precisava fazer. Havia ainda uma escolha. Podia ler o livro e se entregar aos braços d’Ela. Ou podia recusa-lo. Mas... Seria verdade tudo aquilo? Sebastian sabia que era um garoto impressionável. A presença d’Ela era cada vez mais real, era possível sentir sua respiração cadenciada às portas do seu ouvido. Mas que ideia era aquela!? Sebastian pensou. Um velho gagá que conta uma história idiota e eu fico assim, todo cheio de dedo. Sebastian sentiu-se seguro, levemente seguro. O mau presságio passara. Olhou para trás e viu uma janelinha aberta. Sem dúvida dali viera o sopro gelado em seu pescoço. E a sensação de ser vigiado... Quem nunca sentiu isso? Levaria o livro. Não se deixaria intimidar pela história.

-Você vai levar o livro não é garoto. Posso ver a determinação em seus olhos. Ela já o está dominando, já estás a se prender ao livro. Sinto muito, não posso permitir.

-Ué? O senhor vai desistir de vender? E a tal maldição?

-Meu falecido pai fez o que era certo. Aceitou as consequências e hoje dorme com o Senhor. A escolha ainda é minha. Eu me recuso a vender o livro. Dê-me o.

O velho Almude disse isso em um tom forte. Jovial. Pela primeira vez não aparentava ser uma velho de 80 anos assustado e sim um Jovem senhor de 50, forte e cheio de vida. Em um rápido movimento tomou o livro das mãos do jovem Sebastian e o bateu firme contra o balcão fazendo um som forte. Empertigou-se atrás do balcão e olhando para o ar falou, como quem dirigindo-se a um ser etéreo:

-E você, seu espírito de porco, pode me deixar paralítico, você pode me tocar o corpo, mas a minha alma dormirá com a do meu pai. E no dia do juízo eu irei ri de você Esuriit.

Sebastian achou aquela cena fantástica. Aquilo sim é que era um vendedor. Ele criara toda uma atmosfera, contara uma história cativante e agora o deixara definitivamente encantado com tudo aquilo. É verdade que no começo Sebastian ficou um pouco temeroso, assustado, permitindo-se levar pela história. Mas sabia que tudo aquilo era a estratégia do velho para fidelizar um cliente. Ou será que não... Por um instante a maldição do “e se” pairou sobre Sebastian. E se aquilo tudo fosse verdade? E se de fato ao pegar aquele livro estivesse a se condenar? A curiosidade valeria o preço? Sebastian refletiu por alguns momentos. Não valia. Mesmo que o livro não fosse maldito, o velho sem dúvida o assustara. Aquele olhar com que fitava Sebastian era o olhar de um louco e um louco era sempre perigoso. Poderia muito bem ter envenenado as páginas do livro a fim de, com a morte de Sebastian, alimentar sua fantasia. Sebastian decidiu-se. Deixaria aquele livro ali e não contrariaria mais aquele homem perturbado.

-Tudo bem senhor Almude, não vou levar o livro. Não se preocupe. Se o senhor for tocado por ela eu venho cuidar do senhor.

-Obrigado meu filho, mas prefiro que não. Assim sofro menos e morro mais rápido. Já vivi o bastante, estou cansado e desejo descansar. Estou preparado.

-Como quiser senhor Almude. Mas... E o exemplar da Ilha Misteriosa que o senhor iria me dar? Ainda quero sair daqui com um livro. Amaldiçoado ou não.

-Está aqui meu jovem. Coloquei aqui embaixo no balcão.

O senhor Almude abaixou-se para pegar o livro e ouvindo um barulho levantou-se de supetão. Ainda pode ver Sebastian correndo através da porta. Em cima do balcão uma nota de 20 estava no lugar onde o velho deixara o seu livro maldito. O garoto sucumbira à curiosidade e levara o livro. O senhor Almude baixou os olhos. Caminhou lentamente até o fundo da loja. Não tinha pressa. Não havia mais para que ter pressa. Chegando a um armário velho de madeira o abriu. Pegou um livro de couro e caminhou até a estante “variados”. Com um isqueiro fez algumas marcas chamuscada em sua capa e colocou outro exemplar do Sepelieruntque na estante. Voltou ao balcão e sorriu.

-Esse é dos meus. Vai dar um bom leitor.