O JURUPARI
Embora ainda fosse dia, nuvens densas ocupavam o céu e, gradativamente, ofuscavam o brilho do sol, fazendo com que a noite e, com ela, as trevas, chegassem mais cedo. Iraci, porém, sabia que a repentina escuridão era uma clara demonstração da ira do Deus Tupã com a sua tribo, que o abandonara em troca de itens místicos do misterioso povo, que dizem viver do outro lado do grande lago.
O Pajé tentou evitar, avisou-os, mas o Cacique e os demais índios sucumbiram àqueles estranhos objetos que refletiam mais do que o rio, aquelas tais “vestimentas” que cobriam o corpo e outras coisas que nunca se viu na floresta. Coisas terríveis estariam por vir com a chegada do homem branco, a tribo parecia com eles a cada dia, Tupã fora esquecido. Eles não percebiam, mas o mal oculto ganhava força.
Diante dos presentes e da própria curiosidade, os índios adultos se revelaram Curumins e ficaram nas mãos do povo branco, que, aos poucos, os dominavam e, consequentemente, as verdadeiras Curumins e as mulheres da tribo estavam à mercê das insólitas criaturas que acabavam violando-as, brutalmente.
A única maneira de evita-los era subir no pico Tupã, onde era possível ver o grande lago e a pequena tribo, em segurança, centenas de metros acima da superfície, sob o manto de invisibilidade formado pela mata e pelas nuvens. Lá, Iraci encontrou o refúgio para ela e para seu casal de irmãos, que além de gêmeos, tinham apenas 10 ciclos de vida, cinco a menos do que ela.
Eles estavam no alto do pico desde que as nuvens de Tupã começaram a cobrir o céu. Sentada em uma das extremidades do pico, Iraci olhava para a tribo desejando que as coisas fossem como eram a alguns dias atrás.
Próximo a ela, Potira brincava com uma pequena flor, sem tirá-la da terra para não a matar. Por um momento, ela se levanta e procura por Peri, mas não o encontra, vê Iraci pelas costas e a mata densa abaixo delas. Em meio a mata algo se mexe, ela pensa ver alguém, mas pensa ser Peri, que não raramente pregava peças nas duas.
Andou alguns metros abaixo, sem que Iraci percebesse, chegou próximo ao local onde ouvira o ruído, mas não havia nada, além de bolhas emergindo em seu estômago e a estranha sensação de estar sendo vigiada. De imediato, subiu a pouca distância entre o começo da mata e sua irmã, ofegante.
- Irani, o que é Jurupari? Eu ouvi o Pajé falando sobre ele, eu estou com medo – perguntou Potira.
- Calma, minha pequena, não há com o que temer. – respondeu Iraci – Jurupari é só uma lenda, não é real. É uma história para assustar curumins como você -terminou a frase acariciando a cabeça da pequena.
- Mas..mas, se ele existir? Precisamos saber como fugir dele, ninguém da tribo vai nos proteger.
- Eu irei proteger você, pequena flor. – Irani, levanta-se e passa os olhos por seu campo de visão - Onde está Peri?
- Não sei – disse Potira com irritação ingênua – acho que ele deve ter ido no rio, ele sempre vai para lá.
- Por Tupã, ele não pode ficar andando sozinho... se... tem homens brancos e feras selvagens na floresta – Iraci pega Potira pela mão – vamos, temos que encontra-lo.
No céu, os primeiros sinais da ira de Tupã desciam rasgando o céu em forma de clarões e rugidos do deus enfurecido, que bradava atenção aos seus súditos, que embriagados com as belezas do novo mundo, esqueceram-se do deus, permitindo que as trevas ganhavam espaço, assim como haviam de ganhar no mundo dos homens brancos, o qual eles insistiam em chamar de velho mundo.
No rio, Irani e Potira não encontraram Peri, apenas algumas pegadas pequenas que tinham como destino o lago. Desesperadas, elas gritaram o nome do pequeno curumim, mas não ouviram resposta. O rio bradava arrastando pedras das margens, levando consigo folhas, alguns galhos e, não raro, animais desavisados que se aventuravam a atravessa-lo. Em sua mente, era inevitável imaginar o pior, a imagem de seu pequeno guerreiro sendo arrastado correnteza abaixo e, ao final, se chocando com as sinuosas pedras tomou sua mente.
Era culpa dela. Ela deveria ter sido mais atenta, deveria ter notado quando ele se afastou, ela deveria saber.
Em um instante, as imagens esvaziaram-se da mente de Iraci e todo o barulho se foi. Sentiu um estranho arrepio na nuca enquanto toda a paisagem a sua volta sumia. Tudo estava negro, a não ser por um pequeno ponto do outro lado do rio, onde ela avistara uma sombra esguia com formato humano, sem face, sem olhos, mas que, ela sabia, observava-a e, pior, hipnotizava-a e a marcava.
Alguns longos minutos se passaram, enquanto vozes ecoavam pensamentos mórbidos no vazio de sua mente, em forma de sussurros, incitando-a a pular no rio para salvar Peri ou jogar Potira no rio como forma de punição por ela ter deixado o pequeno valente sair, sem avisar.
Iraci permaneceu imóvel até que duas pequenas mãos a agarram por trás, como uma fera da floresta que captura sua presa.
- arrrghhhh!! – Gritou Peri, enquanto a agarrava e ria.
Voltando a realidade, deparou-se com seu pequeno irmão agarrado nela, as trevas que antes enchiam sua mente, escorreram pelos olhos, em forma de lágrimas, enquanto se viravam para abraçar o pródigo irmão e a fiel Potira. Os três estavam juntos, Irani agora poderia os proteger de todo o mal.
Após alguns sermões, estavam prontos para retornar, antes, porém, Iraci se vira e olha além do lago, procurando a estranha criatura que ali estava, contudo não encontra nada.
De volta a tribo, Iraci notou que os homens brancos permaneciam ludibriando os índios com, além das habituais peças de outro mundo, com um líquido que os fazia tossir e, alguns, dormir. Os inocentes índios, mal suspeitavam que enfrentavam a pior fera, a mais desleal guerra e, pior, não viam que estavam perdendo, que estavam sendo destruídos, sem misericórdia.
Notou, ainda, que ao lado do templo do velho e sábio curandeiro, dois pedaços de madeira foram erguidos, um grande crucifixo, que sepultava as crenças e costumes da tribo. Tupã tentara avisar, por meio da escuridão do céu, rugindo por meio de relâmpagos, porém a tribo não o ouvia, estavam inebriados pela curiosidade, enfeitiçados com a magia artificial e corrompida trazida pelo homem branco.
As primeiras horas da tarde do novo mundo pareciam madrugada e, com a escuridão, as criaturas da selva despertavam para a caçada, assim como os porcos brancos do velho mundo, que buscavam satisfazer seus prazeres com a inocência indígena. Um grupo desses demônios estupravam uma doce índia, que parecia não ter como escapar, já que nenhum índio estava atento aos cantos obscuros.
Um daqueles ao ver os três irmãos entrando na tribo, abanou o grupo, caminhando na direção dos três pequenos. Agarrou Potira pelo braço, a puxou em sua direção e, com uma chave de braço a imobilizou enquanto lambia seu rosto: um demônio branco que desejava possuir a alma da pequena índia. Com a mão livre, ele acariciou o tórax da pequena, ainda sem seios, e, em seguida, abaixou o tecido que cobria seu corpo, revelando seu órgão rígido, pronto para matar a alma da pequena Potira.
Tupã trovejava no céu, na terra, Irani sentia seu corpo arder, enquanto seu coração pulsava ódio e incompetência. Havia, contudo, uma única chance de salvar a alva alma, ela deveria nocauteá-lo. Como? Irani não teria forças para isso, mas, se utilizasse algum objeto, poderia conseguir. Uma pedra, sim, isso poderia resolver.
Por sorte, ou azar, o demônio estava muito ocupado em imobilizar sua vítima, tanto que não percebeu Irani aproximar-se de sua cabeça, não até ela desferir uma pancada certeira que o fez soltar a pequena e cambalear.
Irani podia não ter outra chance de salvar sua pequena flor. A agarrou e correu novamente para a floresta, que, nesse momento, era mais segura do que a tribo. Sem olhar para trás, Irani corria com seus dois irmãos em direção ao breu da floresta. Atrás deles, já recomposto, o homem branco corria furiosamente como uma besta satânica, queria pega-los e, assim, vingar-se e saciar-se com sangue, carne e alma.
Logo, se ele os alcançasse, seria o fim de Irani e, consequentemente, o fim de seus dois pequenos protegidos. Até quando eles conseguiriam fugir? Como lutariam com um homem, um demônio branco? Eles não eram capazes, correr somente iria postergar o sofrimento.
Diante da falta de resistência e velocidade, a criatura humana estava mais próxima a cada segundo. Portanto, como um animal selvagem que protege sua cria, Irani colocou seus dois irmãos embaixo das asas e encarou o homem que diminuía sua velocidade em razão de ter encurralado suas presas.
“Entregue ela” – algo sussurrava nos ouvidos de Irani – “entregue-a, só assim você ficará livre. Você e seu irmão”. Irani, sentia seu corpo pulsar enquanto o homem caminhava cautelosamente em sua direção. Embora não pudesse escapar dos pensamentos perversos pela floresta, poderia tentar fazê-los voar porém, acima deles, estavam cercados por algumas arvores e por um céu negro.
- Não tem mais como fugir, garotinha, dê-me ela – disse o monstro branco.
- Nunca! – Bradou Irani.
Seu grito de proteção ecoou na floresta que a cercava e retumbou no céu negro, que respondeu com uma divina lança, um trovão, cortando o céu em direção a aberração humana. Se pudesse ser visto em câmera lenta, ver-se-ia as partículas se formando, ainda nas nuvens, e descendo furiosamente em direção ao solo, queimando as folhas que estavam em seu caminho, rompendo o crânio do demônio e o matando, após isso, ver-se-ia seu corpo aos poucos ser esmagado pela força divina, enquanto seus pedaços queimavam e definhavam no chão e, ao final, apenas cinzas de maldade, carne podre e odores restariam.
O trio, assustados, correram, sem rumo floresta a dentro. Irani torcia para não encontrarem nenhum animal selvagem ou algum demônio da floresta ou, pior, com o Jurupari. Em sua mente as lembranças da criatura sombria do outro lado do rio, sussurrando a ela ideias homicidas, enfeitiçando-a, cegando-a, cresciam. Ela invadiu sua mente novamente, a criatura sabia que estavam na floresta, estava os seguindo, observando-os.
Um trovão desceu, arrancando Irani de suas divagações, fazendo-a perceber que na frente deles, uma onça pintada havia surgido, rosnando furiosamente. Sem ter tempo para pensar, correram e afundaram-se ainda mais na floresta. Quando acreditaram que haviam a despistado, ouviram novamente o trovão e a onça reapareceu, encarando-os com seus olhos de infinito.
Mais uma vez, eles correram, até que chegaram a uma região inabitada. Obscura. Um cemitério de almas no meio da floresta, um rio de morte. Os troncos das arvores retorciam como se pudessem sentir a dor da morte que sufocava aquela região, não possuíam mais folhas ou flores. Na realidade não poderiam ser, se quer, chamadas de árvores, mas esqueletos de algo, que um dia viveu.
No chão, não havia arbustos, ao invés deles corriam ali terra batida, seca com traços de erosão; sangue seco e carcaças de animais mortos. No alto, a escuridão dançava ao redor deles, os vigiava, sufocando-os, enquanto, aos poucos, o cenário decrépito desaparecera, dando espaço ao vazio ensurdecedor e a própria respiração dos pequenos perdidos.
A escuridão veio, primeiro à Potira, aveludadas mãos cercaram seus olhos, enquanto sussurravam: “Fuja, você viverá. Fuja, fuja, ela vai te entregar. Sua irmã vai matar você”.
Em seguida, duas mãos frias cercaram a cintura de Peri, em seguida uma charmosa voz sussurrava em seus ouvidos: “Você quer poder, não, jovem guerreiro? Os homens brancos poderão dar para você, volte a tribo e ajude-os. Você será melhor do que os insignificantes de sua tribo”.
Enquanto os dois pequenos estavam entrelaçados na escuridão, Irani viu algo se erguer à sua frente, algo que trazia a estranha sensação que sentira no rio e que a fazia sentir calafrios e enchiam seus olhos de lágrimas, de desespero. Na frente dela, com o pouco lume que a escuridão pode fornecer, Irani pode observar que a criatura que crescia na sua frente começara a tomar forma.
Transformava-se em uma velha, cabelos brancos, crespos, secos e desformes. Na boca, poucos dentes, o que fazia a pele rígida do rosto formar um abismo na região dos lábios. Tão profundo quando os lábios era a vazia região onde deveriam estar seus olhos. No pescoço, vestia sua única peça: uma corrente formada por pequenos crânios, enlaçados por alguma fibra que parecia um intestino ou algum outro tecido humano. O resto do corpo era desenhado com marcas de sangue e cortes diagonais.
“Irani, você quer salvar sua tribo, não?”. A criatura se aproximou. “Só você pode salvá-los, mas terá um custo. Entregue sua irmã. Mate-a e eu prometo livrar sua tribo dos ‘demônios brancos’, eu sou sua salvação”.
Irani, o arrepio gelado se aprimorou, arrastando-se em sua coluna. No mesmo instante, virou-se e viu seus dois irmãos dominados pelas trevas. A visão de seus pequenos dominados pelo mal, fez com que o arrepio frio tornasse quente, tornando seus olhos vermelhos sangue, enquanto lagrimejavam. Transformada, virou-se para a figura a sua frente e bravejou:
- Nunca! – Gritou a menina - Eu sei quem você é, Jurupari! Eu salvarei minha família e não você!
A criatura estremeceu, retornando ao estado de trevas e, com um ruído mortal, avançou na direção do pescoço da guerreira juvenil, remetendo-a ao chão:
- SUA MORTAL INSOLENTE! – com enormes garras, o Jurupari enforcava Iraci, seus irmãos choravam – ENTREGUE-ME SUA IRMÃ, É SUA ÚLTIMA CHANCE!
- NUNCA!
O que antes era silêncio, foi interrompido por um trovão, que cortou as trevas e revelou parte da antiga floresta, ainda imersa em escuridão, porém, menos densa do que a que as crianças estavam submetidas. Da floresta, ouviu-se o rugido da onça e, em alguns segundos, o animal que agora estava dotado de traços iluminados que reluziam e contrastavam com a escuridão total rompeu a barreira de trevas e atacou o Jurupari.
Diante da oportunidade, Irani, uma vez fora das garras da criatura noturna, agarrou seus irmãos, desenlaçando deles o pouco de escuridão que ainda restavam neles. Diante deles, a escuridão formou-se demônio, todavia, a onça não perdeu a coragem, ainda rosnava para a criatura colocando-se entre ela e as curumins, que agora tinham a oportunidade de correr para a tribo.
Chegando na aldeia, viram alguns demônios brancos mortos ensanguentados, alguns índios também. Acontecera uma guerra ali e, ao que podia ver, sua tribo vencera, embora as ocas estivessem destruídas. Ao se aproximarem, viram um homem branco caído no chão, com alguns cortes do corpo e roupas rasgadas. Um dos índios, com uma lança, preparava-se para finalizá-lo e livrar a tribo de uma vez por todas da ameaça.
Nesse momento, Peri, movido pelas promessas do Jurupari, almejando todo o poder que o homem branco mostrou, envergou-se, soltando-se dos braços de Irani e correndo na direção da última batalha. Antes que o índio pudesse matar o demônio branco, o jovem guerreiro empoderou-se com uma flecha caída e, devido à superfície cortante, a introduziu entre as costelas do índio, que olhou para o curumim, como se não conseguisse entende-lo enquanto caia, sem ar e sem vida.
O último homem branco, com poucas forças, se levantou, pegou a lança, a enfiou no coração do índio guerreiro e sumiu na floresta. Potira e Iraci assistiram a cena, contudo, não conseguiam acreditar no que viam. Peri caiu joelhos do chão e chorou, não pela morte do índio, mas pelo demônio branco não ter o levado consigo.
No mesmo instante e, antes que qualquer um pudesse chegar até o garoto, do céu desceu um último trovão e o acertou, reduzindo-o, como fez com o demônio na floresta, a uma pilha de morte, carne podre e cinzas. Ao redor do cadáver, enquanto a poeira abaixava, podia-se ver os pedaços da carne do curumim em chamas. Dos restos humanos, ainda em chama, ergueu-se uma pequena sombra, que se virou para elas e, então correu na direção do homem branco, afundando-se na floresta.
Com o final da guerra e a retomada das crenças, o céu limpou-se, revelando um manto azul, que traduzia parte da magnifica beleza do planeta e das incontáveis e transcendentais questões que se abrigam, além do fino véu que cobre a nossa existência.