Encruzilhadas
Encruzilhadas
Por Marcelo Santoro
Lembrança
Algo aconteceu dentro do corpo da velha e o resultado para quem estava do lado de fora foi como se um pé de vento gelado houvesse atravessado o automóvel de um lado a outro. O garoto percebeu e, a despeito da idade, achou aquilo estranho. No mínimo gozado.
- O que houve, vovó?
Catarina fitou o rosto rosado do menino sentindo a corrente elétrica que trespassara seu corpo diminuir até esgotar por completo. Pousou de leve a mão manchada por sobre a pequenina do neto e disse com suavidade:
- Nada. Não houve nadinha mesmo.
- Você tremeu como se estivesse com frio. Ainda está arrepiada, olha aqui. – Apontou o braço da avó e sorriu encarando aqueles montículos que haviam se formado quase por vontade própria em toda a pele dela. Do lado de fora do carro, lojas, árvores e pessoas se misturavam imitando borrões coloridos numa pintura à óleo. O banco de trás do Aero Willys era grande e inteiriço, igualzinho ao dianteiro. Na frente, o pai e mãe do menino estavam entretidos demais tentando chegar a algum tipo de conclusão conjunta sobre o que fazer no próximo final de semana. Catarina estreitou o menino com o braço esquerdo e trouxe-o para junto de si, era quase um abraço. Abaixou a voz ainda mais, que passou a fluir como um sussurro.
- Vovó não está com frio. Não foi isso. O dia está bonito demais para sentirmos frio, não está?
- Bonito demais. – O garoto repetiu. O sol faiscava sobre a pintura branca do carro e fazia brilhar o interior charmoso forrado de vermelho. Não se fazem mais carros como este.
- Pois então, por isso não sinto frio algum.
- Hummm...
A resposta não havia satisfeito o garoto e ele continuou encarando a avó, aguardando uma conclusão menos duvidosa que talvez nem existisse. Na idade dele ainda não era possível saber, contudo todos passam por isso de vez em quando. Uma sensação estranha que trespassa nosso corpo e faz com que fiquemos apreensivos sem motivo algum. Alguns dizem que quando isto acontece é por que estão falando de nós em algum canto. Ou alguém acabou de pisar sobre nossa sepultura. Na maioria das vezes não passa disso: uma sensação estranha que vai embora no segundo posterior. A diferença é que com Catarina a coisa não funcionava assim, era um pouco diferente.
- Vem cá, olha por aqui. – O garoto foi para junto da janela do Aero Willys. A janela do carro do lado da avó. – Vê a esquina lá atrás?
- Com toda aquela gente e a padaria?
- Aquela mesma.
- O que tem ela?
- Passa um bocado de gente por ali. Um monte de carros também. É um lugar danado de movimentado. Conte rápido: quantas ruas têm ali?
- Quatro. Cinco com aquela mais adiante. – O garoto exclamou rápido. A conversa continuava a fluir como uma brisa leve. Apenas entre os dois.
- Pois eu te afirmo que existem mais do que cinco ruas naquela esquina. Muito mais do que cinco ruas. Contudo, algumas delas apenas eu posso contar. Os outros não as enxergam. É como se vovó possuísse um óculos especial que a tornasse capaz de ver coisas especiais, invisíveis aos olhos de quem não está usando óculos como os meus.
A expressão no rosto do neto denunciou o que ele imaginava naquela hora e era algo mais ou menos como “espero não enlouquecer quando ficar mais velho, assim como minha pobre vó”. Catarina percebeu, mas não se abalou. Na realidade achou engraçado.
- E saiba que vovó ainda não está com parafusos a menos. Não mesmo. Lembra do formigueiro que existe no jardim de sua mãe, onde ela tem aquelas Rosas e o coqueirinho que nunca deu cocos? Lembra de como você gosta de vê-las trabalhando, carregando insetos mortos, folhas cortadas e outro tanto de coisas?
- Sim. Mas...
- O que isto tem a ver, esta seria a sua pergunta. Muita coisa, vovó responde. Você as observa trabalhando, mas as pequeninas nem se dão conta disso. Não sabem que meu neto as observa enquanto elas vão de lá para acolá fazendo todo aquele trabalho. Mas você está bem ali ao lado delas, todo o tempo. Acho que é mais ou menos isso. Existem coisas por aí, coisas que apenas algumas pessoas são capazes de enxergar e não me pergunte por quê. Não saberia responder. Alguns chamam aquela esquina de encruzilhada. É onde o mundo dos que já se foram toca o mundo dos que ainda estão por aqui. Um lugar onde muitas e muitas estradas invisíveis se cruzam e onde coisas podem acontecer. Muitas delas inexplicáveis. Elas estão por toda a parte, as encruzilhadas. Nem sempre nas esquinas de ruas próximas, mas dentro de casas, automóveis, no mar ou na floresta. Não consigo deixar de me arrepiar quando enxergo uma delas.
- Tenho medo.
- Não tenha. Não há motivo. Vovó garante que não há motivo para que você tenha medo de coisa alguma. Estamos todos bem inteirinhos aqui e nada vai acontecer. Nada nunca aconteceu.
- Vovô estava ali naquela esquina?
- Não. Ele não estava. Não desta vez.
O garoto pôs-se de joelhos no banco do Aero Willys tentando fitar a esquina que se distanciava velozmente pela janela traseira. Já se tornara impossível de ser enxergada, mas a magia daquela conversa não permitia que ele desgrudasse os olhos do vidro do carro. Não falou mais coisa alguma e Catarina calou-se também. Depois que se sentou novamente no banco ela o estreitou com um abraço e fez cafuné em seus cabelos finos até que chegassem à casa. Julio ainda não sabia, mas aquela conversa seria lembrada em algum ponto de sua existência, num futuro ainda longínquo, entretanto inequívoco. E Julio também não tinha conhecimento de duas pequenas mentiras que sua vó Catarina havia lhe contado, talvez com o intuito de protegê-lo: coisas já haviam acontecido e existiam motivos para ter medo.
I
O garoto estava chorando de novo. Qualquer mudança é aborrecida, mas esta parece ter mexido com os nervos de todos os três de maneira estranhamente peculiar. Mais ainda com o estado de espírito do pequenino Guilherme. Abria o berreiro pela terceira noite consecutiva, coisa que já não fazia desde quando completara dois anos. A luz do abajur faiscou na cabeceira oposta, trazendo incômodo aos olhos de Julio. Murmurou entre dentes:
- Sua vez.
- Ontem fui eu. Hoje é a sua vez.
Resignou-se e foi até o quarto ao lado arrastando pés. Ainda se confundia com o apartamento novo, era cedo para se acostumar a caminhar por ele no escuro. Estavam ali há apenas três dias. Passou-se um tempo antes de Julio retornar trazendo nos braços o garoto, que soluçava em pequenos arrancos. Não chorava mais. Depositou Guilherme num colchão ao lado da cama de casal e o menino voltou a dormir logo após.
- E então?
- A mesma história.
Leila coçou a cabeça desgrenhada. Apagou o abajur enquanto o marido punha-se novamente sob o lençol.
- Acha que ele precisa de um médico?
- Não, não acho. Definitivamente: não. – A voz do homem um tom acima do desejado. Quase ríspido. As pilastras que sustentavam a harmonia do casal pareciam ruir, algum tipo de ferrugem muito corrosivo agia sorrateiramente e arruinava a estrutura antes sólida. Há quanto tempo isso acontecia? - tentou imaginar Julio. Há três dias. Isso vinha acontecendo há três dias, ele mesmo respondeu dentro da cabeça.
- Meus Deus, Julio, o garoto chora há três noites seguidas. Não se faça de sonso, você sabe que ele dormia muito bem.
- A mudança. Ele ainda não se acostumou com o novo ambiente. É apenas a droga da mudança. – Quase berrou. Temeu acordar novamente o filho, coisa que não aconteceu.
- E quanto às histórias? Ele jamais foi de inventar histórias estapafúrdias ou de temer fantasmas. Talvez um médico...
- Nada de médicos. – Deixou a esposa com o final da frase engasgada na garganta. – O guri vai melhorar.
- Não gosto de ver meu próprio filho dizendo que alguém o visita durante a noite e o acorda. Não gosto de saber que ele não consegue dormir por temer os “visitantes”. Odeio isso tudo.
- Não mais do que eu.
- Ele está com medo, Julio.
- É a mudança. A maldita mudança, você entende? Ele vai melhorar, vai acostumar com a casa nova e tudo vai voltar a ser como era.
Leila virou para o outro lado e terminou a conversa. Julio teve a nítida impressão de que ela tentava abafar um pranto baixinho. Ele sabia que havia algo errado. Alguma coisa terrivelmente errada estava acontecendo e chegava perto da família, imitava um crocodilo que se aproxima da presa completamente invisível sob água barrenta. Guilherme chorava sem escaramuças quando estava assustado. Mas o casal também estava e nenhum dos dois tinha a mínima idéia do porquê.
II
- O garoto melhorou? Parece que continua a chorar durante a noite, não é?
Aquele sujeito sempre estava ali no corredor quando Julio abria a porta do apartamento para fazer o que quer que seja. Neste caso, levava o lixo para fora e lá estava o velho, completamente calvo e com sua barriga que imitava um Papai Noel desgrenhado. A esposa dele, uma velha desdentada, sempre prostrada sob o umbral da porta que se mantinha semi-aberta. Observava enquanto apertava as mãos nervosamente, como quem faz uma mágica que nunca termina. Parecia ter nervos bastante abalados. O velho, por sua vez, sorria.
Julio Neves entrou no recuo da lixeira e despejou sacos de plástico três andares lá para baixo. Escutou o baque surdo quando eles chegaram a seu destino. Não estava com humor para conversa fiada com vizinhos desconhecidos e as idéias eram desgovernadas dentro da cabeça. Mal completara uma semana da mudança e já se arrependera amargamente da decisão. Na verdade, nem mesmo recordava por que maldito motivo havia mudado para aquela redondeza e isso o intrigava. A presença do casal desocupado naquele instante o incomodava sem qualquer motivo especial, contudo profundamente. Respondeu tentando ser lacônico:
- Ele continua a chorar, sim. Espero que isso não os perturbe. Sinto muito de verdade.
- Não – o velho prosseguiu animado – não incomoda de jeito nenhum. Sabe como é, velhos dormem pouco. Não temos muito sono. Nada por aqui nos incomoda.
- Eu sei como é. E fico agradecido pela gentileza. – Julio deu as costas, caminhado em direção ao próprio apartamento. Adoraria se a conversa terminasse por aqui. Além do mais, não era cedo. Passavam das onze horas.
- Assim que o garoto acostumar com a mudança ele pára com a choradeira, não é isso mesmo? Não tivemos filhos, mas sabemos como são as coisas. Eu e minha Clara sabemos muito bem como são as coisas. – Julio lembrou da conversa que mantivera com Leila há alguns dias atrás. Naquele instante algo parece ter acontecido, entretanto, Julio sabia que não. Nada acontecera, ele apenas travava uma conversa tola com um vizinho ocioso. Clara, a esposa do homem careca, aquiesceu com um movimento da cabeça que imitava uma reverência numa missa. As mãos continuavam se enroscando como duas cobras que lutam.
- Pois bem, nós sabemos como é. Garotos são assim mesmo, não são como nós, os adultos e os velhos.
- Não são. – Julio repetiu.
- Não se preocupe conosco, dormimos pouco e nada nos incomoda. Acho que já disse isso, não disse? É claro que disse, sim Senhor. E estamos bem aqui do lado para ajudar no quer que seja. Vizinhos servem pra isso, eu acho.
- Obrigado, não vou esquecer. – Julio aguardou que o velho fizesse meia volta, fosse ao encontro da velha esposa e entrassem em casa. Não foi o que aconteceu. Ambos ficaram de pé onde estavam e prosseguiram fitando Julio Neves. Foi ele quem teve que entrar em seu apartamento. Bateu a porta por trás das costas sem olhar para trás. Não testou pelo olho mágico, mas juraria de pés juntos que ambos continuavam de pé no corredor.
II
- Eles estavam lá?
- Como sempre. Ambos.
Encararam-se durante muito tempo. Não falavam nada, mas os olhos conversavam angústia. A irritação dos primeiros dias depois da mudança abria espaço para um poço de aflição que não permitia mais a exasperação. Estavam juntos em algo que não compreendiam e um time acuado sempre se une. É assim que a coisa funciona e eles não precisavam entender ou conversar sobre isso.
- Jogou o lixo fora? – O lixo não importava, Leila simplesmente não sabia o que dizer. Julio estreitou a mão da mulher e foi quase um carinho. Não respondeu.
- O garoto precisa dormir. Já passam das onze horas – disse o marido.
- Sim. É tarde. – Ela concordou.
- Ele ainda está no videogame?
- Na sala. Jogando.
Ainda ficaram de pé na cozinha e não saberiam responder por quanto tempo. Apenas um defronte ao outro. Olhos marejados e cabeças confusas. Foram juntos até a sala e Julio disse quando chegou lá:
- Amanhã tem mais. Por hoje precisamos dormir, não é garotão?
Guilherme soltou o joystick mecanicamente e encarou os pais. O brilho baço dos olhos passou da indiferença ao medo muito rápido. Mas o garoto não falou nada, caminhou em direção ao quarto com os pais marchando logo atrás em fila indiana. Enfiou-se por baixo das cobertas obedecendo a uma ordem que não precisou ser dada.
- Até amanhã. Durma bem, meu filho. – Disse Julio. Guilherme não respondeu. Apenas cerrou os olhos e aguardou o casal apagar a luz e sair do quarto. Quando chegaram ao quarto ao lado encaram-se novamente. Novamente aquela conversa travada com a íris, em silêncio. Sabiam que o filho não dormiria bem. Tinham absoluta certeza quanto a isso. Nunca falaram nada, mas reconheciam odiosamente que ofereciam o garoto quase como num sacrifício. Uma oferenda a algum tipo de Deus ou demônio desconhecido e isso os enchia de rancor, entretanto o medo era sempre maior. Não acontecia nada, ele apenas acordaria chorando e então Julio o traria para dormir junto deles e assim evitavam que aquela coisa que visitava o garoto nessas noites estranhas viesse importuná-los pavorosamente. Uma covardia que acontecia e não precisava ser assumida.
- O que está havendo? Por Deus, Julio, o que está acontecendo conosco?
Enfurnaram-se debaixo dos lençóis. Quase choravam. E de novo Julio não precisou responder.
IV
Naquela noite, depois de Julio colocar o garoto para dormir ao lado do casal, nenhum dos dois conseguiu pegar no sono e ficaram lado a lado, porém acordados. Nunca a coisa acontecera daquela maneira. O som de passos no quarto ao lado sugeria pelo menos uma pequena multidão caminhando por ali. Era impossível discernir o que se falava, mas as vozes estavam lá também. Algumas tão graves como urros de dor, outras imitavam assobios leves ao vento da tarde. Alguns sussurros tocavam de leve o casal, como confissões feitas ao pé do ouvido. A mão do homem procurou a de Leila e estreitaram-se num aperto por baixo da coberta. A porta do quarto estremeceu e quase abriu. A maçaneta girou uma ou duas vezes. Continuou fechada e parou de tremer. Tremeu novamente. A mão de Julio suava e o suor misturava com o da esposa. Não era mais medo. Era outra coisa. Alguma outra coisa completamente diferente e inexplicável. Diferente e terrível.
- Há quantos dias você não vai trabalhar?
Era uma pergunta desconexa e estranha, contudo Julio não a interpretou dessa forma. Fazia muito sentido e ele não sabia por quê.
- Não lembro. Acho que faz tempo.
- Guilherme dormiu?
- Sim. Ele dormiu.
Leila estremeceu e então perguntou:
- Eles vão embora agora, não vão? Eles sempre nos deixam em paz depois que ele dorme, meu Deus. Por que não vão embora? – Ela gritou para o teto no escuro do quarto. A pergunta não foi feita a Julio. – Por que não nos deixam em paz para sempre? – Ela berrou novamente.
- Por que estamos aqui? – Indagou Julio. – Por que viemos morar nesse lugar?
- Não lembro.
- Eu tenho que ir lá, não tenho? Preciso ir até lá, não é isso? Preciso ir até o quarto de nosso filho agora. Não é?
- Mas se você for até lá, promete que vai retornar?
Ele não respondeu. O ruído era insuportável agora. Passos, bramidos de dor e aflição. A porta do quarto deles chacoalhava de leve.
- São assombrações. Fantasmas. Eles estão atrás de nós desde que chegamos aqui. Todos eles! São fantasmas e querem nos machucar. Demônios! – A mulher urrou novamente.
- Ambos sabemos que tenho que ir até lá. – Julio Neves desvencilhou-se do aperto que aquecia sua mão e pôs-se de pé. – De uma vez por todas, precisamos passar por isso.
Deu às costas para Leila, agarrou a maçaneta que ainda rangia, torceu-a e saiu do quarto, batendo a porta a sua passagem. Tudo se aquietou e o silêncio reinou novamente.
V
Leila não parecia calma. Ela mesma não saberia avaliar o próprio estado. Não compreendia nada mais com isenção e equilíbrio. O vizinho careca a fitava com olhos brilhantes, sorrindo como um esquizofrênico. Ao lado, Clara trançava as mãos como quem embaralha cartas invisíveis e parecia triste. Era dona de um olhar que perdera algo e algo muito importante. Talvez a vida. Julio Neves sussurrava imitando um padre numa igreja vazia, tentando explicar algo que até então era completamente ininteligível aos ouvidos da esposa. Ao lado dele, bem junto ao braço direito do marido, uma jovem que disse se chamar Catarina fitava diretamente os olhos de Leila. O quarto do casal estava escuro e frio. Como nunca antes.
- Alguns chamam aquele quarto de encruzilhada. É onde o mundo dos que já se foram toca o mundo dos que ainda estão por aqui. Um lugar onde muitas e muitas estradas invisíveis se cruzam e onde coisas podem acontecer. Muitas delas inexplicáveis. Elas estão por toda a parte, as encruzilhadas. Nem sempre nos quartos das crianças, mas dentro de casas, automóveis, no mar ou na floresta. – Depois que Julio Neves completou a frase, a jovem Catarina, a seu lado, concordou com um movimento do queixo. Leila ainda não compreendia coisa alguma. O vizinho careca completou:
- Estamos aqui apenas para ajudar, compreende? Vizinhos servem para isso, eu acho. Eu e minha Clara sabemos como são as coisas, de verdade. Não sabemos, querida?
Clara respondeu sem abrir a boca. Os olhos mortos e ausentes, as mãos entretidas na interminável batalha maníaca.
- Uma encruzilhada. É onde estamos, entende, mulher bonita? – O vizinho falou com seu sorriso doente e sem propósito. É bem onde estamos. Minha Clara sabe disso. Não tivemos filhos nem nada, mas sabemos como são as coisas.
A jovem Catarina apanhou a mão de Leila e levou até a boca. Deu um beijo de sonho, ele não existiu, mas esteve lá. Esteve bem molhado na mão de Leila, aquele beijo.
- Não tenha medo. Não há motivo. Garanto que não há motivo para que você tenha medo de coisa alguma. – Catarina falou e nesse momento parecia velha e acabada. Mais do que uma avó de noventa anos. Muitos anos mais.
Leila encarou o marido e lembrou da promessa que havia pedido. “Mas se você for até lá, promete que vai retornar?”. Quase repetiu o pedido. Não precisou fazer isso. O olhar de Julio era fixo, fitava com calma o da esposa e não parecia temer coisa alguma. Não receava mais o que quer que fosse. Uma lágrima escorreu e molhou a face alva da mulher dentro do quarto escuro.
- De que lado da encruzilhada estamos? Onde nós estamos, Julio? O que aconteceu conosco?
A resposta silenciosa fluiu através dos olhos, nenhuma palavra mais. Leila fitou a sua volta e, num átimo, num pequeno pedaço de tempo, percebeu que havia ali dentro daquele quarto, muito, muito mais do que seis pessoas.
FIM