A maldição berserker
 
"A máscara que ocultava o rosto
era tão de modo a quase reproduzir a fisionomia
de um cadáver enrijecido que a
observação mais acurada teria
dificuldade em perceber o engano.”
(A máscara da morte rubra – Edgar Allan Poe)
*
"Aqui jaz o Machado, o filho da feiticeira,
o da espada afiada e da lança certeira;
que se banhava em sangue
quando a fúria guerreira
lançava seus barcos ao mar;”
(A pedra do viking – Brian Lumley)

Naqueles tempos ainda ofereciam o tradicional baile de máscaras para comemorar o fim de um ano e a chegada de outro. A família Marshall propiciava esta festividade há gerações. É óbvio que não eram aceitos penetras, todos convidados precisavam apresentar seus convites na entrada do casarão.

Porém, naquele ano fatídico de 1834 a senhorita Mirthes pediu que seu afilhado, Victor, pudesse acompanha-la mesmo sem um convite em seu nome. A senhorita era tida em alta estima de todos da família, por isso, seu pedido foi acatado. Ela alegou que o afilhado tinha perdido os pais em uma terrível tragédia, sem ater aos detalhes, e não poderia deixa-lo sozinho em noite tão especial. O primogênito da família era o encarregado da entrada ao lado de um empregado de confiança, eles permitiram que Mirthes e o afilhado entrassem desde que o garoto vestisse uma máscara.
- Façamos assim senhorita Mirthes, - disse o primogênito Álvaro – vou providenciar uma máscara para Victor usar. Temos algo no porão que os antigos proprietários deixaram para trás. –

Agradecida a senhorita despediu-se do garoto e deixou-o aos cuidados de Álvaro. Ambos foram para os fundos da grande mansão, adentrando no porão. A noite estava agradável, nem muito quente nem muito fria, a leve brisa sacolejava os galhos das grandes árvores. A lua estava inchada e reluzente prometendo um início de ano bonito. O porão dos Marshall era bem organizado, repleto de quinquilharias, tanto dos antigos donos quanto deles próprios. Uma balbúrdia de antiguidades cobertas por lençóis brancos encardidos.

- Não repare na quantidade de velharias que meus pais acumulam, eles são meio viciados em conservar coisas que não têm mais utilidade. – Álvaro tentava ser amistoso com Victor que permanecia calado, o semblante de estátua era inexpressivo. O primogênito Marshall, por sua vez, falava pelos cotovelos sobre o baile anual, a falta que sua irmã mais nova faria aquele ano por ter se casado e se mudado com o marido para longe, entre outros assuntos que Victor parecia não ter interesse algum.

Remexendo no amontoado de coisas, Álvaro encontrou um baú de madeira, ao abri-lo a poeira rodopiar no ar fazendo suas narinas coçarem. Ele deu um sorriso para si mesmo.
- Aqui estão algumas fantasias dos antigos moradores. Acho que encontraremos alguma máscara para você, pode dar uma olhada no que quer trajar...- o anfitrião iluminou o rosto do convidado com o lampião que carregava.

Victor nada disse, começou a revirar as fantasias. Muitas eram de bailes carnavalescos, máscaras de pierrots, máscaras venezianas antigas. Victor parecia não querer nada até que seu olhar panorâmico pelo porão revelou um reluzir sobre uma cristaleira de canto.
- O que é aquilo? – disse.
- Ah...- Álvaro direcionou a luminosidade do lampião na direção apontada – É um antigo artefato viking, usavam como enfeite. Não gosto da aparência dessa coisa. – Era uma máscara muito grande com enormes chifres de touro.
Victor não pediu permissão, apenas se aproximou e tomou-a nas mãos. – Eu posso usá-lo? – seu olhar estava deslumbrado. Álvaro deu de ombros permitindo o uso da antiguidade, estava ansioso para participar do baile, ali embaixo já podia ouvir a animada canção que ecoava pelos salões.

Os dois jovens saíram de lá, Victor aprumava o elmo na cabeça, as placas laterais cobriam seu maxilar de maneira perfeita, era como se o objeto tivesse sido feito para sua cabeça ou tivesse se ajustado de forma instantânea. A noite transcorreu animada, muitas comidas e bebidas eram servidas, conversas acaloradas e mesas de jogos fez com que o baile se tornasse uma algazarra plebeia para o tipo de pessoas que ali se reuniam. Victor sumiu de vista, Álvaro não se importou, estava ocupado entre seus amigos e familiares, senhorita Mirthes tampouco se preocupou com o sumiço do afilhado, estava sendo cortejada por senhores distintos, donos de empreiteiras, intelectuais, pesquisadores, todo tipo de bom partido, não tinha tempo para lembrar de Victor.

Enquanto todos se divertiam, embriagavam-se e dançavam, o convidado inesperado tentava manter sua sanidade trancafiado em um dos banheiros dos andares superiores da mansão. Victor fitava seu reflexo no espelho e uma angústia tomava conta de si. Ao entrar ali, sua cabeça latejava, o suor escorria em bicas e o coração batia lento. Sempre foi um garoto com problemas na pressão, incomodava-se por estar no meio de aglomerações, julgava que o baile tão cheio de pessoas o tivesse causado a vertigem que sentia. Um pouco desesperado, refugiou-se no banheiro a fim de tirar o elmo pesado e respirar, porém, o elmo não saía da sua cabeça. Por mais que Victor puxasse, molhasse com água e sabonete, a fantasia continuava pregada em sua cabeça. Sentia os fios dos longos cabelos castanhos encrustados no forro do elmo, o odor de bolor e mofo fechava sua garganta. Estava tão desnorteado que soltou um berro, forçando as duas mãos em torno dos chifres do elmo viking, a queimação do estômago tomou conta da pele de todo seu corpo. Victor murmurava “ – Meu Deus, o que está acontecendo? – “ enquanto enfiava a cabeça debaixo da torneira aberta.

Álvaro lembrou-se do rapaz para quem emprestara a fantasia, não sabia ao certo o motivo de ter pensado nele. Uma preocupação se instalou em si por ter perdido Victor de vista, algo na falta de expressão dele o incomodava. Na verdade, Álvaro não gostou da fisionomia abatida do rapaz, sempre fora desconfiado com pessoas que não conhecia direito. Passou a procura-lo pelos salões e cômodos inferiores. Indagou à Mirthes sobre o paradeiro de seu afilhado, a mulher não se mostrou nenhum pouco preocupada e aconselhou Álvaro a deixar o garoto se divertir. No seu pensamento mesquinho o primogênito Marshall temeu que o rapaz não convidado pudesse estar surrupiando algo na casa, mas logo tratou de relaxar e esquecê-lo.

A tormenta de Victor prosseguia, sua pele borbulhava, calombos subiam e desciam como se larvas gigantes fossem eclodir deles. Seus urros não podiam ser ouvidos, a algazarra do baile estava no ápice. O reflexo no espelho revelava olhos avermelhados demais e salientes. Victor não tinha mais a doce voz baixa, seus urros eram de um urso ferido e sua força a de 10 homens. Sangue escorria pelas têmporas do esforço que fez para arrancar o capacete, com desespero e incoerência ele pensava “Esse sangue não é meu, esse corpo não é meu. O sangue é muito escuro para ser meu...” uma crise se abateu sobre sua própria identidade. Tudo o que via no espelho não lhe pertencia, o cavanhaque que sempre mantinha aparado tinha crescido absurdamente, tomando conta do rosto antes feminino e ingênuo. Victor soltou o último urro e arrebentou a porta ao sair. Insano e faminto, desceu as escadas cambaleando repetindo para si mesmo que não era dele aquele corpo, nem aquele sangue. Repetindo tudo em um dialeto escandinavo perdido.

Numa passada rápida e turbulenta pelas cozinhas, Victor muniu-se do cutelo que o cozinheiro usava para terminar de preparar outro pernil para servir aos convidados. A garganta do homem foi cortada de um lado a outro, impiedosamente, e Victor sentia os respingos de sangue mancharem sua barba. As empregadas saíram aos gritos, irrompendo pelos salões. Os convidados demoraram a perceber que algo de grave estava acontecendo.

Quando deram conta, Victor já havia degolado muitos presentes. Um caos se instalou nos salões, todos tentavam correr para a porta de entrada, ninguém podia deter a força do garoto. No meio da tentativa caótica de manter a ordem, Álvaro fitou os olhos insanos e vermelhos do rapaz e pedia-lhe calma, em choque com tudo que acontecia, não conseguiu gritar ou se indignar a princípio. Um dos convidados, um senhor distinto com ares de intelectual sussurrou para uma senhora que o acompanhava “-É a própria reencarnação de um berserker. Veja essa barba, os músculos do pescoço e os olhos assassinos.-“ o senhor parecia ao mesmo tempo assustado e encantado, a mulher observava boquiaberta enquanto Victor desmembrava um dos convidados e jogava os membros superiores para o lado. Não parecia mais o garoto tímido que ali chegou, e sim, uma besta descontrolada em fúria.

Senhorita Mirthes se aproximou com cautela “- Victor, querido...meu querido, por favor, escute sua tia, largue esse cutelo, vamos...-“ os enormes olhos protuberantes saltaram para a mulher que se encolheu e urinou no longo vestido. Agarrando-a pelos cabelos Victor observou diretamente o rosto de Álvaro que ainda estava semicoberto por uma máscara nos olhos. “- Eu vou acabar com sua festa, não gosto da sua comida, não gosto dos seus modos “ o dialeto era enrolado, misturada a um sotaque estranho. “- Você manchou minha terra com seu sangue – “ enquanto dizia tais sandices, Victor escalpelava a própria madrinha com frieza e habilidade. Álvaro parou de escutar os ruídos do desespero de todos, conseguia apenas assimilar os gritos de dor de Mirthes e a forma que o maxilar de Victor estralava quando ele rangia os dentes fortes.

A consciência atingiu Álvaro assim que Victor terminou de matar a madrinha e jogou seu escalpo no chão. “- A fantasia...a culpada disso é a fantasia-“ não sabia ao certo o que fez esse pensamento vir à mente, mas Álvaro gritou para todos saírem pelas portas laterais, tentando livrar os convidados daquela presença nefasta. Victor continuava apunhalado e desmembrando quem via pela frente até que Álvaro liberou todas portas, o maior número possível de pessoas saiu. Uma forte ventania assolou a mansão, fechando portas e janelas, selando para sempre o restante das pessoas ali. Álvaro permaneceu no salão junto aos poucos convidados que fitavam Victor aproximar para o abate.

Um por um foi esquartejado pelo louco convidado inesperado, sendo o último deles Álvaro que teve as costas retalhadas e os pulmões expostos como no antigo costume viking de punição chamado “A águia de sangue”. Sozinho e desnorteado pelas forças que o dominavam, Victor jogou-se nos degraus da enorme escadaria central, observando a carnificina que tinha sido sua obra de arte da noite.

Lá fora, os fogos de artifícios estouravam e iluminavam os céus, dando as boas-vindas ao novo ano. Os ruídos não incomodaram o garoto que manteve o cutelo pingando sangue em seu colo, cada parte do seu corpo doía pelos esforços extenuantes.

Sei de cada detalhe desse baile macabro porque estive lá, presenciei cada cena sangrenta e macabra. Eu estava lá desde o momento que Victor olhou para ela, a antiga máscara-elmo feita de chifres de touro. Estava lá porque eu fui aquele que guiou seus passos e o fez despertar a força conservada no antigo artefato através de uma maldição antiga. O final do baile se resumiu a cabeça decepada de Victor rolando escadaria abaixo, decepada por uma lâmina invisível. O elmo finalmente se desprendeu do couro cabelo, ficando ali parado à espera de outra cabeça, outra mente e outro fantoche para dar vida à minha maldição, meu nome é Bödvar Bjarki e um berserker nunca descansa.
Larissa Prado
Enviado por Larissa Prado em 18/11/2016
Reeditado em 18/11/2016
Código do texto: T5827668
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