O Concílio no Casarão Ancestral
Aproximavam-se as 2h da madrugada. Na noite fria e lutulenta, três homens magros e altos surgiam fantasmagoricamente por entre uma densa neblina espectral, após deixarem para trás as tortuosas e lúgubres árvores que constroem a tristeza da terrível mata que circunda o ancestral e carcomido casarão, a tapera do velho L. Guerra. Ele falecera há mais de 10 anos e deixou claro em seu testamento que, como não tinha descendentes, sua propriedade deveria ficar para aqueles três homens que chegavam no local, desde que eles não fizessem nenhuma modificação em sua antiga e nostálgica moradia. Os senhores cumpriram com a palavra: a tapera mantém-se intocada, inclusive sem nenhuma espécie de reforma, pois o velho desejava que sua propriedade fosse engolida pelo tempo naturalmente, que fosse se consumindo aos poucos, com tudo o que dentro dela existia.
O casarão é imenso, todo de resistente madeira-de-lei, já apresentando, contudo, sinais de apodrecimento pela sua longa idade, porém ainda pode abrigar moradores tranqüilamente. Os três senhores entraram na melancólica residência com suprema cautela, fitando atentamente ao redor, extremamente desconfiados de que alguém ou algo os pudesse estar observando... Na atmosfera densa e sobrenatural, tanto fora quanto dentro da casa, três vultos sorumbáticos e silenciosos lentamente reuniam-se para um insólito acontecimento. Os senhores, todos entre 30 e 35 anos, vestidos impecavelmente com roupas típicas do século XIX, teriam um encontro com outros três seres, que a seu tempo serão revelados. Os músicos eram artistas: um poeta, um músico e um pintor. Não direi seus nomes e creio ser absolutamente desnecessário mencionar qualquer outra informação sobre a vida dos mesmos. Concentremo-nos apenas na história.
O interior do casarão tem a maravilhosa qualidade de ser rústico e aconchegante ao mesmo tempo. Tudo ali é antigo, impregnado de uma suave saudade espiritual, de uma terna tristeza clássica, com suas paredes emboloradas e repletas de quadros, tanto de pinturas mestras da arte universal, como de fotos dos ancestrais do velho Guerra, já há décadas falecidos. Não há luz elétrica, apenas velas e lampiões que foram acesos em sua totalidade pelos sombrios artistas. Uma espessa camada de pó cobre todos os móveis seculares, e uma infinidade de teias de aranhas se espalham por todos os misteriosos cantos da casa, onde, certamente, outros seres vivos devem viver em paz, ocultos no tempo que ali não passou, ou melhor, que passa sem a interferência nefasta do homem. Mas por que mesmo os três artistas se reuniram ali naquela tapera soturna e em altas horas de uma noite ameaçadora, que se preparava para uma tempestade de inverno? A resposta a essa pergunta está nas linhas que se seguem, mas será dada aos poucos, como um bom vinho que deve ser apreciado com a tranqüilidade necessária a sua degustação... Digo que os artistas enigmáticos sentaram-se comodamente nos velhos sofás poeirentos do casarão e, em uma leve penumbra, concentrados e cuidadosos, proferiram as palavras iniciais do pequeno concílio, sendo o poeta o primeiro a pronunciar-se:
- Amigos, aqui estamos para vivenciarmos aquele momento crucial em nossas existências... Creio que logo tudo estará consumado.(pausa) Aqui reviveremos o passado com as máximas forças de nossas almas.(pausa) Deixamos para trás, impassíveis e indignados, toda a falsidade e ilusão da mecânica vida moderna, para assimilarmos definitivamente em nosso espírito o mais profundo através dos séculos... Deixamos para trás os entediantes computadores, celulares, televisores, a mídia degradante do dia-a-dia, o lodaçal perdido das grandes cidades, a insensibilidade do robótico trabalho cotidiano, a burocracia insuportável, os chiqueiros das festas e badalações sociais, a bestialidade estéril da política, a tão cacarejeda tecnologia, no fundo inútil e imbecilizante, abandonemos o turbilhão das teorias que abarrotam a mente e esmagam o coração... Teremos a experiência direta da vida e da nossa realidade íntima...(pausa) Sendo assim, peço que um dos senhores vá até uma das janelas , a mais frontal à mata, e veja se o grande momento já está se iniciando.
O pintor prontificou-se, observou detida e seriamente por alguns instantes os arredores externos e retornou, declarando comovido:
- Sim, os primeiros sinais já são claros... As duas roseiras sangram incessantemente, suas rosas gotejam a vida em seu estado primordial, assim como no horizonte pude avistar luzes flamejantes, fogos-fátuos anímicos aproximam-se calmamente... Em breve as teremos conosco!
- Sem dúvida, retorquiu o músico, posso ouvir claramente, ao longe, os seus celestiais murmúrios, suas vozes angelicais, sons tristonhos e desconsolados, como gatos noturnos solitários, abandonados...elas vêm, eu sabia que não ignorariam nossas súplicas...
O poeta então apagou todas as luzes, descerrou uma das cortinas, chamou seus companheiros e, em terrível expectativa, passaram a aguardar a tão esperada aparição. Era visível nos rostos daqueles homens insensatos (como julgariam as pessoas comuns) uma intensa ânsia psíquica mesclada de angústia e esperança, como se dentro deles um vulcão emocional movimentasse em êxtase suas lavas, mas que, mantido sob controle pela essência do Ser, não explodiria em momento algum. Apenas sublimava as emoções superiores advinda da partícula divina presente naqueles membros do Raio da Arte.
E foi no momento em que sua tensão atingia níveis terrivelmente opressivos, que o três seres estranhamente luminosos tornaram-se identificáveis no meio da tétrica mata... Três mulheres, ou melhor, três fantasmas de mulheres assomaram por entre as árvores retorcidas, mulheres verdadeiramente lindas, cintilantes, brancas e pálidas, trajando roupas extremamente antigas. Caminhavam lentamente, dirigindo seus belos e fundos olhos para a janela do casarão, onde atônitos e emocionados, os três artistas as contemplavam. Estes, em alguns segundos, saíram do estado de transe que a mirífica visão neles provocara e rapidamente se dirigiram para os fundos do imenso pátio da casa. Lá, postaram-se em três pontos estratégicos, já previamente estabelecidos, e aguardaram os fantasmas que assombrosamente andavam em sua direção. Quem eram as mulheres espectrais? Obviamente não eram mulheres propriamente ditas, na verdade constituíam fantasmas da personalidade de senhoras que viveram em séculos há muito esquecidos. Não eram almas, pois as almas, os espíritos de tais mulheres, nossos amigos artistas não podiam saber agora onde se encontravam, não obstante desejarem sabê-lo com desesperada vontade. Quem poderia, ao menos, captar um leve rumor da melancolia profunda daqueles homens?... As mulheres eram personalidades energéticas de um tempo muito longínquo, de uma época específica, que permaneceram vagando pelos séculos e que teriam seu fim definitivo naquele dia. Na verdade, eram lembranças vivas... Cada uma das três representou em sua determinada época o grande amor de cada um daqueles homens de arte em remotas encarnações dos mesmos, das quais ainda mantêm as efígies de perturbadoras lembranças. Viveram há séculos o amor verdadeiro e, após sua morte, nunca mais tornaram a vê-las, não sabem onde agora vivem seus amores, e que tipo de vida poderia ser essa... E foi tal solidão cósmica, o fato de ter perdido o mais importante de suas existências, que despertou neles a chama terrível e sublime da arte, que até então jazia no conforto de suas almas quietas... A partir da perda do grande amor, naturalmente e sempre, em todas as encarnações, os homens em questão foram criadores artísticos, em busca das almas daquelas mulheres que nunca mais encontraram, e então, naquele concílio, contentaram-se provisoriamente com seus fantasmas de personalidade, as recordações psíquicas dos magníficos seres femininos que hoje estão longe, muito distante...
E ocorreu que os três artistas aguardaram extasiados suas respectivas amadas, e elas avançaram... avançaram, ternas e delicadas, cada uma para o seu amor, até que penetraram em seus corpos e desapareceram para toda a eternidade... Desintegraram-se dentro dos corpos físicos daqueles homens que há séculos tinham vivido por elas e para elas, e que agora... E no exato instante em que as personalidades se desvaneceram dentro daqueles senhores, estes, em questão de mágicos segundos, vivenciaram extáticos os mais intensos momentos do antigo amor espiritual perdido através dos átomos dos anos, e tudo acabou. Os artistas levantaram-se (haviam se ajoelhado) sublimados e estranhamente sérios. Um deles, o músico, sentenciou:
- Senhores, tudo está consumado. Para todos os outros homens, esta reunião não aconteceu, muito menos os eventos aqui ocorridos. Nem uma palavra poderá ser dita por nenhum de nós. Na realidade comum e corrente, esta foi uma noite absurda que não existiu.
E despediram-se, indo cada um para sua pessoal residência. A partir dessa noite, os três artistas intensificaram o trabalho de criação de sua obras, criações extremas e acima de todas as coisas, que, como sempre, não foram compreendidas... Eles possuíam a consciência do amor que em um remoto passado vivenciaram. Amor que todos um dia experimentaram ao longo de suas existências, mas, desgraçadamente, deixaram perder-se aos sopros do vendaval da matéria. E é tal amor que a todos influencia, consciente ou inconscientemente, que ainda buscamos por nossos derradeiros dias, mesmo sem saber que o fazemos... Contudo, todos os nossos atos, pensamentos, sentimentos, estão enraizados nessa busca, todos desejam aquele amor, procurando-o inconsciente e inutilmente. Buscamos um profundo amor como íntima reminiscência do amor vivido em uma longínqua época do passado. Queimam as ânsias secretas em nosso espírito, ainda que sob a forma de um fogo modificado, dissimulado sob as aparências de outros desejos. E aqueles artistas sabiam disso muito bem, com ou sem a sua consciência. Para o mal ou para o bem, é esse amor que nos carrega. E alguma coisa, devida à terrível força que este sentimento mais que sentimento carrega em si, deve assim ser feita com ele: a construção ou a destruição. Os grandes feitos da humanidade foram motivados por tal entidade transcendente de amor, ainda que por um resquício seu, por uma íntima manifestação anímica inexplicável. Os piores feitos da humanidade, da mesma forma, foram oriundos de tal referido amor... Dele surge todas nossas inspirações, sublimes ou malévolas. Dele nasce toda a Arte, ainda que não estejamos conscientes de tão terrível verdade...
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