O Monstro Abarabá

Era noite. Como não tínhamos luz na tribo, a noite era sinônimo de descanso. Não fazíamos mais nada a noite a não ser comermos nosso jantar ao lado de uma pequena fogueira, enquanto os mais velhos contavam histórias de seus tempos de juventude e, vira e mexe, contavam do estranho ser que residia nos locais mais sombrios e remotos da floresta, o Abarabá. Logo depois, dormíamos. Tudo não passava de uma lenda criada pelos índios mais velhos para asssustar os curumins para evitar que estes adentrem na floresta sozinhos ou, principalmente, à noite, quando não havia nenhuma luz para iluminar nosso caminho. Pelo menos, era o que acreditávamos até aquela noite.

Eu particularmente odiava essas histórias. Para ser sincero, apenas a escuridão total da floresta já fazia minha espinha estremecer. Eu era como todas os curumins da tribo – morríamos de medo das histórias contadas pelos nossos antepassados. Sabíamos se tratar de lenda, mas o modo como os mais velhos contavam as histórias nos transmitia uma sensação tão rica de veracidade que acabávamos por literalmente tremermos de medo. Menos minha irmã. Potira era diferente de todas as curumins da tribo. Ela era destemida, nada a abalava ou amedrontava. Nem mesmo a história do Abarabá a assustava.

Em uma noite qualquer, os adultos e os mais velhos já haviam dormido. A fogueira já estava completamente apagada, só não nos mergulhando completamente na escuridão por ocasião da luminosidade forte da lua cheia. Eu estava perto da tribo urinando em uma árvore qualquer, na entrada da floresta, quando escutei uma voz logo após de mim. Virei o corpo em um só pulo; o coração a mil no peito, saltitando feroz. Quando me dei conta, era Potira. Ela estava caminhando em direção à floresta, com meu irmão mais novo, Anajé.

- Potira? O que está fazendo? – perguntei. De tão assustado eu estava, eu gritei minha pergunta, que ecoou pelo local.

- Shhhh! – disse Potira, me repreendendo pelo grito. Ela olhou para trás. A tribo continuou o mesmo silêncio de sempre. – Eu estou indo na floresta. E o chato do Anajé está tentando me impedindo.

- É perigoso, Potira. – disse o meu irmão, com a característica voz infantil de um curumim de seis anos.

- Ele está certo, Potira. É perigoso. O que quer na floresta?

- Eu quero provar que o Abarabá é só uma lenda.

- Está louca?! E se não for? Você sabe que ele come curumins que dão uma de valente, não sabe?

- Isso é apenas uma lenda. Agora, eu preciso ir.

- Eu vou contigo. – disse, entrando na frente de Potira

- Eu não preciso da sua ajuda, Apuã.

- Eu sou o único que sabe andar nessa floresta sem se perder. O Abarabá pode ser lenda, mas se perder na floresta não.

Potira respondeu fundo. Percebeu a necessidade de minha ajuda.

E assim adentramos na floresta. Anajé acabou nos seguindo também, mesmo eu e Potira sermos completamente contra. À medida que atravessávamos as árvores, menos claridade da lua cheia ia adentrando no local, preenchendo cada vez com sombras e trevas. E lá dentro, em um cenário completamente escuro e silencioso – com exceção dos nossos pés -, qualquer barulho se tornava ensurdecedor e amedrontador. Meu coração estava completamente em alerta saltitava constantemente dentro do meu peito com qualquer barulho próximo. Anajé se encontrava segurando minha tanga, quase a fazendo ceder e cair. Potira caminhava à frente, ainda destemida e corajosa.

- Po...Potira, acho que deveríamos voltar. – eu disse. O medo começou a entrar no meu corpo

- Pode voltar se quiser. – ela disse, sem olhar para frente

Respirei fundo. Não queria deixar Potira adentrar sozinha na floresta, mas também não queria eu estar na floresta. Sabia que Anajé seguiria Potira até o fim do mundo se fosse possível, e voltar pra tribo deixando para trás Anajé e Potira no interior da floresta me faria levar uma enorme bronca dos meus pais. O jeito, portanto, era respirar fundo e seguir em frente, mesmo tremendo toda a base.

E continuamos nossa caminhada. Repentinamente, senti uma fisgada na cabeça. Rápida e passagueira, porém lancinante. Minha cabeça parecia se comprimir dentro do crânio, mesmo após a fisgada. Meus olhos ficaram turvos e a visão embaraçada. Parecia um comando do cérebro para que desligasse por completo o corpo – o que era estranho, pois eu não me encontrava com nenhum sinal de exaustão ou sono até aquele momento. De repente, outro mais forte – tão forte que me fez cambalear, dando dois passos para a direita e depois mais dois para voltar ao lugar. Neste instante, sobressaltei-me. Meu coração disparou no interior do peito. Potira se encontrava caída no chão, de bruços, estirada. Pior: algo, mergulhado completamente na escuridão, puxava Potira pelas pernas, afastando-a de mim. Corri o mais rápido que pude; entretanto, dei dois passos e percebi algo. Anajé não se encontrava segurando fortemente minha tanga, quase a derrubando, como se encontrava em todo o caminho. Virei-me para trás. Sobressaltei-me novamente. Anajé havia desaparecido! Olhei desesperadamente de um lado para o outro. Porém, acabei por ver Potira sendo arrastada e corri em sua direção. Neste instante, algo me travou na direção do pescoço e me fez cair para trás, batendo o corpo com toda a força no chão. Lembro-me de ter visto uma sombra passar por cima de mim antes de perder a consciência.

Quando acordei, estava completamente zonzo. Parecia que o mundo girava e estava de cabeça para baixo, com todas as árvores de ponta-cabeça. Uma dor pungente lancinava por toda a cabeça e depois espalhou por todo o corpo, nervo a nervo, tendão a tendão. Tinha a sensação de meu corpo estar destruído. Quando dei por mim, realmente o corpo estava parcialmente destruído, cheio de cortes e hematomas espalhados.

Eu me encontrava amarrado em um ponto da floresta tão denso que a luz da lua quase não penetrava no local. Meu corpo estava todo dolorido; mexer era praticamente impossível. Meus braços e pernas estavam esticados ao máximo e eu quase não sentia os dedos das mãos e dos pés. Minha cabeça doía ferozmente devido à quantidade de sangue que o cérebro estava recebendo. Olhando com dificuldades para o lado, percebi Anajé na mesma situação que a minha. Já à minha frente, estava Potira. Ela não estava amarrada; estava parada ao lado de duas árvores de igual tamanho. Olhava fixamente para frente e não mexia o corpo – nem mesmo os olhos, fixos em um único ponto.

- Quem é você? – perguntou Potira; parecia que estava em transe.

Não houve resposta, muito embora Potira parecia ouvir a resposta para sua pergunta. Neste instante, Anajé acordou ao meu lado, fazendo pequenos gemidos enquanto se movia.

- O que... está acontecendo?

- Eu não sei. Desmaiamos no meio da floresta e Potira agora parece conversar com alguém.

- Com quem será que ela está falando?

- Não sei, mas não parece ser coisa boa.

E Potira continua conversando com o ser invisível. De repente, para minha surpresa, ela muda o olhar vítreo e o rosto congelado, passando para um rosto de pessoa assustada, ao mesmo tempo em que gritou um sonoro “Não!”, que ecoou aos quatro ventos.

- EUUUUUUUU QUEEEEEEROOOO!!!!! – uma voz demoníaca ecoou no local, fazendo a minha espinha dorsal estremecer no mesmo instante. Meu corpo começou a tremer involuntariamente, tamanho o medo. Pude ouvir o choro fraco de Anajé à minha esquerda, mas a voz retirou minha coragem até de olhar para o meu irmão. Naquele momento, eu o vi. Saindo da escuridão. Eu não queria tê-lo visto. Sua imagem mergulhou em meu cérebro e lá ficou estacionado, invadindo qualquer outro pensamento que lá aparecesse. Aqueles olhos... aqueles chifres... aqueles braços.... não havia condição alguma de parar de pensar neles, de parar de lembrar deles, parar de revivê-los... Só podia ser ele. O Abarabá! O Terror dos Índios! O Dizimador! O Conquistador! Ele é real!

- Não. Não. Não. Por favor. Tudo menos isso! – gritou Potira, no auge de seu desespero.

- DÊ A MIM AS DUAS ALMAS, EM TROCA DE TODA A TRIBO! – disse a voz demoníaca

- Por favor. Não. Esses são jovens. Não faça nenhum mal a eles. Por favor. Por favor. Por favor. – Potira cai de joelhos no chão. - Leve a minha vida, mas os poupe. Eu os trouxe aqui. Eu quis encontrá-lo e desafiá-lo. Leve a mim. Mas deixe-os em paz!

O monstro começou a rir. Meu corpo voltou a tremer. A risada era tão assustadora quanto seu rosto e forma.

- ELES PELA TRIBO!

- Não, não, por favor. – Potira começa a chorar. Rapidamente seu rosto é tomado pelas lágrimas.

Naquele momento, eu finalmente conseguia entender o que estava acontecendo. O Abarabá queria uma troca: eu e Anajé pela tribo. Caberia a Potira a escolha de salvar os próprios irmãos ou a própria tribo. A decisão não era fácil. Nas lendas, o Abarabá era demasiadamente cruel – ao vivo, era ainda pior.

- DECIIIIDAAA! – disse o Abarabá – DOIS PELA TRIBO!

- Por favor. Não faça isso comigo. – Potira já estava perdendo as forças em lutar e resistir.

- Potira. Salve a tribo! – eu gritei, chamando a atenção de todos para mim. – Não se preocupe conosco. Salve nossos pais. Salve a tribo.

- CALLEEEEE-SEEE! – gritou o Abarabá. Sua voz e seu rosto irritadiços fizeram meu corpo paralisarem; não conseguia mexer – não QUERIA mexer. O monstro se virou para Potira – JÁ QUE VOCÊ NÃO QUER DECIDIR, EU DECIDO POR VOCÊ!

Neste instante, senti algo estranho em meu corpo. Primeiro, uma cominhão na ponta dos dedos dos pés e das mãos. Acreditei que fosse da posição em que me encontrava. Entretanto, alguns instantes depois, senti a comichão invadir o meu corpo, apertando-o e o comprimindo com toda força possível. Não conseguia respirar; meu coração parecia não conseguir bombear sangue; meu cérebro parecia que iria em breve desligar, devido à falta de oxigenação e sangue. A dor era demasiadamente forte, o que me obrigava a cumprir por completo todo o corpo. Não suportando a dor, passei a gritar. Não visualizei Apuã, mas parecia que o mesmo sofria do mesmo mal, pois seu grito adentrou na escuridão daquela noite na mesma intensidade que o meu. Continuei a gritar continuadamente, enquanto tremia involuntariamente e de forma voraz. Rapidamente senti meu estômago agir e a empurrar toda minha última refeição para cima. Ela saiu em vários jatos tímidos, que primeiramente inundaram minha boca e depois escorreram corpo abaixo.

Após, senti lágrimas escorrendo das minhas vistas. Ardia os olhos, fazendo-os fechar e embaçar minha visão. Novamente minha boca foi inundada por um líquido, vazando dessa vez aos poucos, como se eu cuspisse, passando por cima do vômito. Pelo gosto era sangue.

Enquanto isso, ao meu lado, percebi Apuã substituindo gritos por balbúcios tão altos e estridentes quanto, que logo foram trocando por palavras formadas. Dizia meu irmão algo como: “O Deus, in nomine tuo ora scandalum haereticis, corrupta oppugnare, perdit violarent nomen sanctum ejus. Domine pater, et in nomine tuo”. Não reconheci os dizeres de Apuã, e tampouco o idioma. Parecia com um idioma que ouvi recentemente de algumas tribos que haviam tido contatos com os invasores que chegaram do mar em grandes monstros, provavelmente trazido por Anhangá.

Potira, ao perceber nosso sofrimento, começou a gritar desesperadamente, primeiramente os nossos nomes; depois, gritou para Abarabá parar. Caiu aos chãos, sem força, enquanto lágrimas escorriam rosto afora. Seus gritos, contudo, eram completamente abafados pelos meus próprios, pela pungente dor que eu continuava a sentir e pelo mantra bizarro de Anajé.

- ÚLLLLTIMAAA VEZZZZ!!!! OS DOISSSS PELA TRIIIIIBO! – disse Abarabá, em sua clássica voz diabólica, antes de emitir uma pequena risada.

Repentinamente, ele surgiu. Vindo igualmente pelas sombras em direção ao Abarabá. Pouco enxerguei em virtude do sangramento de meus olhos, mas o vi! Longe de qualquer delírio de minha mente causado pelas dores pelo enfraquecimento de meu corpo, eu o vi! Surgindo do interior da escuridão, como se nada antes dela existisse, com seu corpo rajado e peludo, seu porte robusto, sua cabeça felina e suas garras afiadas.

Abarabá foi ao chão. O feitiço sobre mim e Anajé desapareceu e tanto eu quanto ele caímos com nossos corpos pendendo para frente, enfraquecidos. Os nossos membros foram imediatamente soltos pelos galhos e caímos de frente no chão e giramos pelo impacto, ficando de costas na grama. Minha mente estava enfraquecida e desligaria em breve. Ainda visualizei Potira correndo em nossa direção e sacudindo nossos corpos na tentativa de nos acordar, sem êxito. Por fim, apesar da fraqueza e do delírio, eu jurava que vi o tigre que nos salvou ficando de pé, antes de rugir e lutar contra Abarabá e eu perder a consciência.

Acordei com uma forte luz focada no meu rosto. Minha cabeça doía e girava, e a luz só piorava a situação. Abri lentamente um dos olhos, que ainda ardia. Vi o azul do céu, em um dia ensolarado. Minha vista ainda estava embaçada e havia diversas manchas nas laterais. Ao meu redor, estavam alguns índios, dentre eles o meu pai.

- O que aconteceu, Apuã? – perguntou, preocupado. Percebi certo alívio em seu rosto.

Ainda estava meio tonto, quando me sentei. De repente, assustei, pois percebi que não estava mais na floresta, e sim dentro da aldeia. Ao meu lado, estava Potira, sentada e amparada por outros índios. Minha mãe tentava acordar Anajé.

- O que aconteceu com vocês? – perguntou novamente meu pai. Eu tentei falar alguma coisa, mas não conseguia sequer meus lábios – eles só abriam e fechavam. Nenhum som de lá saía; apenas um fino som, como se estivesse engasgando. Desesperado, senti minha cabeça pesar e ficar tonto. Percebendo que eu cambaleava, meu pai segurou minhas costas com seu braço direito.

Olhei para um lado e para o outro, amedrontado e desesperado. Suava frio e sentia pequenas gotículas de suor formarem em minha testa e escorrerem pelo meu rosto. Onde será que estava o Abarabá?

- Apuã. Apuã. – perguntou meu pai, assustado. – O que foi?

Porém, quase não dei atenção ao meu pai, já que continuava procurando por Abarabá. Eu sabia que ele estava ali. Eu podia sentir sua presença. Minha espinha congelava só de pensar nele novamente, ali, perto de mim. Continuava a procurá-lo, pois sabia que, em algum local, ele estava.

- Anajé! – exclamou minha mãe. Um semblante feliz atravessou seu rosto, desaparecendo seguindos depois. Meu irmão parecia completamente hipnotizado, com olhar distante e vítreo – Anajé, está tudo bem?

Percebi Anajé se levantar e caminhar, mesmo alguns índios tentarem lhe impedir. Alguns o chamaram. Atravessou, sob a atenção de todos, o local e foi de encontro à minha árvore que viu, ao lado de uma oca. Para surpresa de todos, Anajé rapidamente se abaixou e bateu com a cabeça na árvore, com toda força. Vi sangue se esparramar pelo local. Ele cambaleou para trás e correu novamente com tudo contra a árvore. Meus pais e outros índios ainda correram para tentar impedi-lo – me soltando e me fazendo cair de costas no chão - , mas quando chegaram ao seu lado era apenas um corpo com parte da massa encefálica destruída e caída pelo chão e pela árvore.

Eu, completamente boquiaberto e estupefato, virei para Potira, na tentativa de, sei lá, talvez ele esclaresse alguma coisa, me confortasse, não dava pra saber. Neste instante, eu a percebi sentada no chão, olhando fixamente para frente. Não parecia assolada com o suicídio repentino de nosso irmão. De repente, apertando meu coração, Potira vira rapidamente a cabeça para o meu lado. Sua boca estava colada, com vários pedaços de pele que interligavam os lábios superiores e inferiores. Ela olhou fixamente para mim, antes de sorrir, mostrando parte do interior de sua boca, completamente enegrecidos! Seus olhos brilhavam, em um tom avermelhado que só poderia representar uma coisa... é ELE! Ele estava de volta! E eu não poderia falar pra ninguém!