Semente de mamãe

Jenny era uma garotinha de sete anos que amava sua mãe. Mas AMAVA mesmo.

Sempre que havia um momento difícil, lá estava a mamãe para ajudá-la. Quando ela machucou o joelho perseguindo esquilos no jardim, quando pulou da cama achando que podia voar, ou quando achou que havia um sorriso no escuro de seu quarto, lá estava a mamãe, sorrindo. Tudo era resolvido com um sorriso.

Jenny sempre sentia falta da mãe quando ela ia trabalhar, ou quando ia ao mercado, ou quando passava horas conversando com a vizinha, uma moça estranha que tinha uma filha engraçada que adorava falar sobre outros mundos. Sally Montague era o nome da filha, pelo que Jenny se lembrava. A mãe adorava conversar com a Sra. Montague, e às vezes Jenny ia na porta da vizinha para tentar ouvir a conversa. Mas nunca entendia nada. Não porque os assuntos da conversa eram complexos, mas porque ela não entendia mesmo as palavras. As mães pareciam conversar em outra língua. Uma língua que se parecia, mesmo que isso fosse logicamente impossível, com o som de árvores falando, ou de rios cortando pedras. Mas Jenny sabia que esse efeito aparentemente estranho nas vozes acontecia porque a porta abafava o som.

E tudo o que Jenny queria era que a sua mãe terminasse logo a conversa para passar todo o tempo do mundo com ela, para brincar.

Jenny desejou até que houvessem várias mamães iguais à sua, para assim passar todo o tempo possível com aquela companhia tão querida: enquanto uma mamãe conversaria com a Sra. Montague, a outra poderia estar trabalhando, outra poderia estar no mercado e a outra estaria brincando com Jenny. Seria perfeito! A mamãe poderia fazer tudo o que precisava sem sair de perto da sua filha!

Mais tarde, na hora de dormir, Jenny refletia sobre essa ideia maravilhosa. Quando já estava sonolenta, recebeu um beijo de boa noite da sua mãe e a observou se afastar para a porta, o sorriso caminhando lentamente no escuro do seu quarto como se fosse aquela longínqua espuma branca a ondular no mar na noite. O doce e gentil sorriso da mamãe. Antes dessa espuma se desfazer em escuridão, a mãe falou baixinho, como o sussurro das ondas:

-Durma bem. Sonhe com aquilo que mais ama.

Jenny sonhou naquela noite, sem perceber. E lá estava a mamãe.

As duas estavam deitadas no topo de uma colina num imenso campo onde não se via nada ao redor, só uma grama roxa que cobria toda a extensão até onde os olhos podiam ver. O céu era de alguma cor entre dourado e verde escuro. Havia um rio prateado que cortava pedras e o som que surgia disso era como várias vozes cochichando. A superfície do rio refletia aves negras que pareciam lamber nuvens com suas asas numa dança lenta e saborosa, apesar de não haver ave nenhuma lá em cima.

Jenny olhou nos olhos da mãe, sorridentes, que também refletiam coisas que não estavam lá. Coisas alegres, cores, movimentos, e até mesmo o reflexo do sorriso da própria mamãe. Parecia haver outro mundo nos reflexos daquele mundo estranho.

-Mamãe, parece que existe um mundo nos seus olhos. Ele é tão bonito!

-Muito obrigada, filha. Mas nem sempre o que há nos olhos das pessoas reflete uma só verdade. Basta acontecer alguma coisa fora do normal para esse mundo mudar, por menor que essa coisa seja. Mas, nos meus olhos, pode acreditar. Pois eles acreditam muito em você, doçura.

-Exato! Só vejo coisas boas nos seus olhos.

A mãe só riu, aquele sorriso que, pelo menos para Jenny, trazia conforto e segurança. Todos aqueles dentes, muito brancos, num enorme arco brilhante. Um arco do qual muitos acreditariam que, a qualquer momento, poderia sair uma língua venenosa, como uma flecha. Mas Jenny amava demais sua mãe, e isso nem passava pela sua cabeça.

Jenny, então, falou sobre a ideia que tivera:

-Mamãe, eu gostaria de estar contigo o tempo todo, mas sei que não dá... Seria bom que eu tivesse várias mamães iguais a você, assim eu nunca ficaria sozinha! Você faria todas as coisas que os adultos devem fazer sem nem precisar sair de perto de mim.

-Eu acho isso uma ótima ideia, filha!-disse a mãe, muito feliz. E depois fez um olhar de alguém que está tendo uma ideia. -Na verdade, eu sei como tornar isso real.

-Sério? Achei que isso não era possível! Como se faz isso?

-Bem, o que você faz quando só tem uma maçã, mas quer ter várias iguais?

-Hmm... Nós plantamos uma semente?

-Exato!- gritou a mãe, rindo muito alto. Jenny começou a rir junto, mas depois pensou direito... E falou:

-Mamãe... A senhora não quer ser plantada... quer?

-Não, minha maçãzinha. Nós devemos plantar uma semente de mamãe! Não é genial?

-Mas mamãe, onde se encontra uma semente de mamãe?

-Acho que deve ser dentro de uma mamãe!- e gargalhou, olhando nos olhos de Jenny. E foi ali que as coisas começaram a ficar muito, muito estranhas.

Ainda gargalhando, a mãe da garota começou a colocar a mão na boca lentamente. E foi enfiando o pulso, o cotovelo, o ombro. Estava com o braço inteiro na boca.

Jenny sentiu-se atingida por um raio na hora. Demorou para digerir a cena.

-Mamãe, você está bem? Isso é seguro?- perguntou a menina, tão em choque que, preocupada com a segurança do que a mãe estava fazendo, nem chegou a pensar se o que estava vendo era possível.

De repente a mãe puxou o braço de uma só vez, e em sua mão havia uma coisa escura que se parecia com uma semente de maçã, só que bem maior. E pulsava.

O sorriso da mãe estava vermelho. A garota gritou tanto e arregalou tanto os olhos que se sentiu virada do avesso.

-O que é isso mamãe?! Meu Deus, o que está acontecendo? Não!!! Eu não quero mais isso! Pare de sorrir pra mim, você não é minha mãe!

-É claro que eu sou, coisinha! -disse a mãe, com a voz agora muito rouca

-Eu acabei de realizar parte do seu desejo, não é isso que as mães fazem? Realizar os desejos dos filhos? Agora é só plantar!

E com uma pá que surgira do nada, a mãe começou a cavar a terra embaixo da grama roxa, uma terra vermelha. Quando terminou, jogou a semente no buraco, que se fechou sozinho. Depois de alguns segundos, a semente, ou a coisa enterrada, começou a cantar uma canção baixinha e lenta, e cantava com a voz da mãe.

De repente uma árvore sem folhas brotou de uma só vez do chão. Em seus galhos, que eram como braços secos de madeira, várias mamães penduradas pelos braços, pernas e pescoço, balançando ao ritmo de uma briza que não existia no lugar.

Jenny, chorando, estava assustada demais para correr. Na verdade não poderia, pois, ao olhar à sua volta, viu que estava rodeada por espelhos, e seus próprios reflexos estavam segurando seus braços e pernas, impedindo-a de fugir. E os reflexos também choravam.

Cada uma das mamães nos galhos possuía aquele gentil sorriso do qual Jenny tanto gostava. Depois de um longo tempo apenas olhando para a garota, as mães caíram dos galhos e andaram na direção de Jenny. E elas, juntas, tinham tantos dentes...

Jenny só podia chorar mais.

-Você não me ama? Não quer ficar o tempo todo comigo?-diziam todas elas, com voz de árvores falando em uníssono.

-Eu lhe mostrarei o mundo que há em meus olhos. E você ficará nele para sempre, comigo. Eu só quero amar você, criança. Não chore.

E, as mães chegando cada vez mais perto de Jenny, a garota pôde ver seus olhos.

O que havia acontecido com os olhos? A menina gritou:

-Meu Deus!! O que houve com seus olhos mamãe? O que houve com o mundo dentro deles?! Eles estão.... Eles estão... Oh, não!!!!

A garota acordou no meio da madrugada. Acordou engasgada com seu grito, por isso não acordou ninguém. Mas chorava.

Tossiu e ficou acordada, tremendo, até o sol encostar seus dourados dedos em sua cama e, por alguns momentos, espantar o frio do medo que sentia.

Depois de um tempo a garota ainda estava meio apreensiva, mas bem mais tranquila por ter se livrado daquele pesadelo. Saiu do quarto lentamente para pegar água na cozinha.

O sorriso da mamãe estava lá, na cozinha, e ele mordia uma maçã. Por trás do sorriso, os olhos da mãe olhavam Jenny com atenção.

O sorriso não confortava mais Jenny.

-Olá minha maçãzinha!-disse a mãe. E, ao dizer isso com a boca cheia, se engasgou com a semente da maçã. Começou a tossir, mas sem perder o sorriso. Como não havia água por perto, a mãe teve que enfiar os dedos na boca para capturar a semente antes que ela ultrapassasse a garganta. Ela conseguiu.

A voz da mãe agora estava meio rouca, o que é natural acontecer depois que alguém se engasga. Mas Jenny odiou ouvir aquela voz rouca do pesadelo novamente.

-Ah! Maldita semente. Eu quase tive que engolir meu braço inteiro para conseguir tirá-la da garganta, não foi? Hahahaha! Seria uma cena, no mínimo, digna de um pesadelo.

Os olhos de Jenny se encheram de lágrimas caladas.

-Não se preocupe com a mamãe, coisinha! Olhe aqui, eu consegui tirar a semente de mim. E eu ouvi dizer que dá sorte plantar uma semente com a qual você se engasgou. O que você acha? Vamos plantar?

-Mamãe, pare, por favor...

-Minha menina, o que deu em você? Olha, me ajude a plantar isso, e vamos observar os belos frutos que nascerão da árvore. Serão frutos tão belos, serão sim. Posso até imaginar várias maçãzinhas sorridentes balançando nos galhos. Vamos, isso vai te acalmar um pouco, seja lá qual foi o motivo que te fez ficar com essa cara.-e estendeu a mão para Jenny. A garota saiu correndo para o quarto, o caminho até lá parecia mais um labirinto, de tão confusa que ela estava. E com medo. E ela podia sentir o sorriso da mãe atrás dela, mesmo que ela não estivesse mais sorrindo. Sentia a presença fantasmagórica daqueles dentes brancos.

Jenny não sabia se ainda estava sonhando ou se aquilo era uma terrível coincidência.Ou se sua mãe era mesmo estranha e má.

-Filha, qual o problema? Ei, olhe para mim! Aqui, nos meus olhos, e diga o que está acontecendo. Olhe nos meus olhos.

Jenny só corria. Chegando no quarto, lá ela se trancou, finalmente. Atrás da porta, a mãe disse:

-Você não queria ficar mais tempo comigo?... Pois é, filha, eu to tentando, mas você não colabora. Só quero amar você, criança. Não chore.

A voz da mãe era de preocupação, mas Jenny não se importou. Não queria mais acreditar nela. Para ela, o mundo nos olhos da mãe havia mudado.

No final das contas, a mãe plantou a macieira com a ajuda da Sra. Montague. As duas mães, querendo se divertir, chegaram até a dançar ao redor da semente plantada, dizendo que tribos antigas faziam aquilo para que a árvore crescesse mais rápido e mais forte.

Jenny evitava até olhar para o local em que a semente fora plantada. E não queria ver os frutos daquela coisa.

As lágrimas de Jenny foram tantas que regaram aquele medo, fazendo-o se desenvolver forte e bem enraizado abaixo do seu jardim e no seu coração.

A garota passou madrugadas ouvindo um canto baixinho que parecia vir de baixo da terra.

Lumontes (Lucas Montenegro)
Enviado por Lumontes (Lucas Montenegro) em 12/11/2016
Reeditado em 12/11/2016
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