Justiça e Vingança
O que se esconde por detrás da superficial atitude dos homens de valor, a quem depositamos a confiança na condução das sociedades? Que reais intenções estão nas profundezas? Que mentiras são contadas e a custo de que se está disposto a leva-las a cabo? O certo, no entanto, é que, em tudo, devemos medir nossas palavras pelo que podem incitar, pois podem se tornar realidade, como neste caso que veremos a seguir:
Ato inicial
Eu precisava permanecer em silêncio, já que o portador da lei se pronunciava. Fui testemunha de sua iniquidade, uma vez que não o fazia com a devida justiça. Meus olhos repousaram sobre os inocentes que ali se encontravam, e que, com resignação, se faziam notificados de suas sortes. Não havia um que se levantasse em favor deles.
Vi as turbas se aproximando, alegres com o que não compreendiam, pois aqueles pobres tinham sim algum valor. E isso eu afirmo: desde que tomei conhecimento do que se passava, sempre desconfiei do tratamento que lhes fora dado.
As crianças eram belas, apesar de suas roupas simplórias e de suas carinhas sujas. O pai parecia um bom e humilde trabalhador. A mãe era mulher simples e recatada, tímida e reservada, sempre com suas roupas baratas, vagando pelas ruas de cabeça baixa. Eles eram inocentes, eu sabia. Uma chama em meu peito bradava que o portador da lei e os senhores de bem também sabiam. Algo cheirava mal.
Sei que viviam em uma pequena propriedade rural, a alguns quilômetros. Viviam por lá sem incomodar a ninguém. Deles, quase não se ouvia falar a respeito. Vez por outra, compareciam no centro para comprar alguns mantimentos e revender seus produtos. O pai nunca discutia sobre o preço de suas mercadorias, a despeito de os comerciantes sempre se aproveitarem de sua simplicidade. As crianças eram mais comportadas que os filhos das famílias de renome; muito quietas e jamais se distanciando. Em pouco menos de uma hora, faziam tudo o que tinham que fazer e voltavam para casa. Discretamente chegavam, e iam embora sem que ninguém percebesse. Semanas se passavam até que retornassem.
Recordo-me bem de quando a perseguição se iniciou. Um forasteiro, vindo não se sabe de onde, adentrou nos salões mais importantes. Ostentava sua riqueza feito mel para atrair os ursos. Rapidamente, conquistou amizades importantes, e suas mesas eram reconhecidas pela quantidade de garrafas e taças cheias de bebidas caras e refinadas. Esse homem se dizia conde de um desconhecido reino muito além de nossas montanhas.
Sei que esse sujeito propôs alguns negócios, a respeito dos quais se desenvolveu grande interesse na comunidade. Inflou os ânimos e fez com que se vislumbrassem as riquezas, o poder e a influência que alcançariam desde que seguissem seus conselhos. Definitivamente, os tempos passam e nada muda, sobretudo a ganância.
Mas, no meio do caminho para a realização dos sonhos corruptos que se pretendiam consumar estava aquela família. Pois é certo que o conde afirmou que em suas terras havia um minério que seria a ponte para o futuro e o desenvolvimento de toda aquela região. A partir daí, esgotaram-se as tentativas de retirá-los de lá, sempre com a imposição de visível desvantagem.
Tentaram a compra, sob os mais diversos argumentos e ardis: um casal fora contratado para adquirir a propriedade, alegando que a adoraram e que desejavam um lugar isolado e tranquilo para cuidar de seus filhos. O chefe de família respondeu que a casa não estava à venda; que era herança de seu velho pai e, portanto, possuía grande valor sentimental. Depois, foi a vez de uma senhorinha afirmar que o local seria ideal para um lar de idosos, onde poderiam gozar de uma velhice sem percalços. O pai se sentiu comovido pelos velhinhos que iriam residir ali. Afirmou que ajudaria o máximo possível para que conseguissem adquirir outra residência próxima. Ademais, já havia um grande asilo em condições até melhores não muito longe, e era sabido que havia muitas vagas. Finalmente, uma comitiva de negociantes ofereceu ao pai uma quantia razoável, mas, ainda assim, ele recusou, mesmo que sequer desconfiasse das reais intenções por trás de tantas investidas.
Houve uma reunião a portas fechadas e não foi revelado a ninguém o que se resolveu lá dentro. Porém, a partir daí, os discursos do chefe religioso se tornaram mais inflamados e, repentinamente, preocupados com a ascensão do reino do mal naquelas terras. Dizia o homem que o demônio havia se materializado, e que ninguém se enganasse: até mesmo uma aparentemente simples e humilde família pode esconder as criaturas vindas das profundezas, assim como o próprio diabo pode se disfarçar de anjo de luz, com toda a beleza e aparente castidade...
E foram exatamente essas as suas palavras...
O líder religioso não apontava dedos, não citava nomes, mas, da forma como se expressava, ficava claro para todos a respeito de quem estava falando. Afinal, quem mais tinha por características viver uma vida pacata, longe da comunidade, em paz e silêncio, com toda simplicidade? Quem, como o próprio diabo, dizia, se camuflava com tamanha perspicácia?
E durante muitos e muitos dias os discursos se repetiram. Não apenas no templo religioso, mas nos bares, nas esquinas, nos salões e até nos interiores das casas. Aquela família passou a sentir os olhares inquisitivos, as pessoas se afastando. Ficou mais difícil, impossível, a negociação das mercadorias. As crianças passaram a sofrer provocações das outras crianças mais educadas...
A família, então, decidiu se trancar e viver isoladamente. Podia ser apenas uma impressão ruim, “com o tempo passa”, dizia o pai diante da mesa de jantar.
Numa noite, porém, o menino viu pontos de fogo se intensificando na plantação. Chamou seu pai e todos foram para fora. Tentaram, em vão, salvar o máximo possível, mas nada pôde ser aproveitado. Ovos podres passaram a ser constantemente jogados na casa e vidraças eram quebradas, sempre acompanhadas de xingamentos de cidadãos covardes que se esgueiravam e fugiam a cavalo.
A mãe passou a desejar que se mudassem dali e fossem para outro lugar. O pai não queria abrir mão do bem de família. Aquilo não era justo.
Foi à cidade, onde o receberam com desconfiança e também com algum deboche. O que aquele filho do diabo queria por ali, afinal?
- Vá se purificar, demônio!
- Vá embora daqui, capeta!
- Deixe nossas terras, tribufu do inferno!
- Vá e leve seus diabinhos!
E vaiavam, e jogavam-lhe pedras, e tomates e ovos podres. Alguns homens fizeram menção a ataca-lo com pedaços de pau, mas o homem era valente e soube se defender, derrubando-os. O líder religioso, de longe, observava a tudo com um sorriso triunfante nos lábios, às vezes erguendo as mãos para os céus em sinal de bênçãos a seus servos diligentes. O homem olhou espantado e com indignação para ele. Seguiu em frente e entrou no prédio do departamento da lei.
O portador da lei o atendeu. Eu vi quando ele mandou que se sentasse e lhe ofereceu uma bebida. O homem estava tão transtornado que preferiu negar a oferta, reagindo com reservas. O portador da lei cumpriu todo o protocolo e anotou suas reclamações.
- Bem, senhor. As pessoas andam preocupadas com a ascensão de espíritos malignos em nossas terras. Sabe como é? O povo costuma ser supersticioso. Então, o senhor deve entender que é natural que elas se manifestem de algum modo. Sinto muito pelo senhor e por sua família. Já considerou a hipótese de se mudar para outro lugar?
- Aquela casa é herança de meu velho pai. Antes de morrer, me pediu que tomasse conta, o que eu tenho feito desde então. Seria uma traição sair e abandonar a propriedade que Deus lhe deu e que ele manteve com tanto esforço.
- Eu entendo. Acho que o senhor deveria pensar em sua família e no bem estar de sua mulher e filhos, não?
- É por isso que eu estou aqui.
- Entendo.
- O senhor entende? Então por que não toma uma providência? Por que não dá um basta nessa situação?
- E o que o senhor sugere?
- Eu não sei. O senhor é a lei por aqui, não?
- Ora, não é que é verdade?
O portador da lei observava o estado do homem, imundo, fatigado, desnorteado. Tentou disfarçar um sorrisinho.
- Bem, acho que não há muito que eu possa fazer por ora. Iniciaremos investigações para ver se há mesmo algo de errado e, eu lhe garanto: farei o melhor possível para manter a paz e a ordem por aqui.
O homem nem se sentia gente, haja vista o estado em que se encontrava. Gostaria que as palavras do portador da lei fossem mais reconfortantes, mas não se sentia muito seguro após a conversa. Ao sair, a multidão de ignorantes se avolumava. Enquanto ele subia em sua carruagem, a autoridade trocou olhares com o líder religioso e com outros senhores que se encontravam dos dois lados opostos da praça. O homem subiu em sua carruagem e, após a ordem do oficial, abriram caminho para que seguisse adiante.
- Demônio!
O conde se reuniu com o Portador da Lei e o Líder Religioso, além de outros senhores de bem daquele local.
- O seu conde, eu acho que eles vão sair não.
- Ora, portador da lei, você é o homem.
- Ora, não é que é verdade?
- Precisamos seguir nossa cruzada contra os infiéis.
Chegaram à conclusão de que necessitavam de medidas mais incisivas, já que o tempo não podia esperar. E assim, os cidadãos passaram, diariamente, a ingressar no departamento de justiça para relatar os casos de bruxaria de que eram vítimas diariamente, sempre acusando aquela família. E a campanha continuava com o apoio do líder religioso que os incitava e os acompanhava em juízo. Após uma moção pública, todos concordaram que seria necessário um julgamento.
E eles foram julgados, e condenados à fogueira.
Eu precisava permanecer em silêncio, já que o portador da lei se pronunciava. Fui testemunha de sua iniquidade, já que não o fazia com a devida justiça. Meus olhos repousaram sobre os inocentes que ali se encontravam, e que, com resignação, se faziam notificados de suas sortes. Não havia um que se levantasse em favor deles.
Vi aquela família ser levada para o meio da praça, onde a lenha já havia sido acumulada. O povo fora levado a crer que o sacrifício faria com que o céu se abrisse e que seriam todos agraciados com inúmeras e ricas bênçãos. Que quando fosse dado o último suspiro daqueles inocentes, a quem chamavam de demônios, uma nova era iria se iniciar.
E eles foram queimados, vivos. E conheceram a morte. Morreram olhando para os céus e cantando, isso eu posso afirmar. Eu testemunhei aquela manifestação de fé e de amor incondicional.
***
Ato final: Vingança
E os céus se abriram.
E, do alto, de onde aquela família já se encontrava, eles viram quando foi dada a ordem para que as portas do inferno também fossem abertas, ainda que apenas por um tempo muito breve.
E, assim como o diabo pode se disfarçar de anjo de luz, a quatro demônios foi dada a permissão de se materializarem. E assim o fizeram. Dois se tornaram como que adultos. Dois se tornaram como que crianças. Um dos que se tornaram adultos o foi como que um homem. Outro dos que se tornaram adultos o foi como que uma mulher. Um dos que se tornaram crianças o foi como que um menino. Outro dos que se tornaram crianças o foi como que uma menina. E eles subiram do inferno numa carruagem, à semelhança da que os mortos costumavam usar. Desse modo, àquela santa família foi dado o consolo de ver a ascensão de sua sombra maldita, a consumação do que lhes fora sentenciado pelos homens.
E eles tinham cabelos vermelhos como que de fogo. E seus olhos eram negros e profundos. Fediam levemente a enxofre e suas unhas eram muito sujas. Tinham a pele pálida. Os dentes, pontiagudos. A respiração, forte. As orelhas, grandes. Apresentavam excessos de pelo no corpo, inclusive a menininha. Usavam roupas escuras e não diziam uma única palavra. Não lhes fora dada permissão para falar. Seguiram rumo à casa que foi deixada. E assim foi até o dia seguinte, sem que ninguém o soubesse.
No dia seguinte, a cidade acordou com uma onda de indescritível calor, como jamais se tinha sentido. Mesmo assim, um grupo de homens se dirigiu para a casa, logo pela manhã. Precisavam derrubá-la para que se desse início aos trabalhos. Os senhores se encontraram no salão para festejar e traçar os detalhes dos próximos dias. Vi a negociação de privilégios, negociações espúrias. Vi os abutres procurando a melhor posição para destrinchar a carniça.
A primeira comissão de trabalhadores chegava feliz ao espólio. A pequena e simples casa deixada por um pai honrado a um filho zeloso. Não tinham remorsos, mas sentiam alívio por terem purificado a terra. Apenas os bons haviam sobrado e, assim, esperavam receber as bênçãos celestiais. Encontraram as crioncinhas malditas, que brincavam com atiradeiras. Matavam diligentemente os pássaros nas árvores, como se isso fosse um esporte.
- O que vocês fazem aqui, criancinhas? – falou um deles, estranhando a feiura e o aspecto sombrio. Como não obtivesse resposta, outro se aproximou e tentou enxotá-los.
- Crianças, precisamos que vocês saiam daqui. A casa será derrubada e toda a área será desmatada e queimada para que possamos trabalhar. Viu? Agora saiam.
As crianças permaneciam alheias às admoestações, mantendo a preocupação em matar pássaros, o que faziam com absoluta destreza.
Um dos homens perdeu a paciência e fez menção a puxá-los à força, no que foi impedido pelo outro:
- Deixa eles. Quando virem o movimento e as chamas, irão embora. Vamos nos concentrar no trabalho.
E seguiram rumo à casa que teriam que derrubar. Quando se aproximavam da porta, a mulher saiu e eles se assustaram. Pelo aspecto, ficava notório que devia ser a mãe.
- Olhe, dona. Eu não sei quem vocês são. Mas essa casa está interditada e vocês vão ter que sair, viu? Nós temos autorização para derrubá-la e também para derrubar todas essas árvores e depois queimar tudo. Vocês não vão poder ficar aqui não.
Os homens ficaram intrigados com a mulher que não respondia. As crianças surgiram por detrás do grupo, que era composto de uns dez homens. A seguir, o pai saiu pela porta.
- Tudo bem, tudo bem. Olha, senhor, eu estava tentando avisar para a sua família que ...
Sua fala foi interrompida sem aviso. Os quatro cercaram o grupo e olharam fixamente para eles. Ergueram as mãos e os homens não conseguiram mais se mexer. Apenas os olhos das presas manifestavam o terror e o espanto. Sentiram crescente asfixia, e a sensação de calor se intensificou. Sentiam ardência interior, como se seus órgãos fossem cozinhados, o sangue cozinhado, os ossos derretidos. A angústia perante a onda de calor interno, a dilaceração de seus tecidos. O estado paralisante os impedia de correr, se é que ajudaria. O desespero, o grito, a perda da consciência. A aflição eterna. Chamas tomaram seus corpos, que se derreteram lentamente.
E as criancinhas se puseram a lhes atirar pedras, com absoluta destreza.
Os quatro saíram da casa e seguiram rumo à aldeia. Partiram de carruagem. Alguns cidadãos tomavam banho no chafariz, devido ao calor sufocante que jamais haviam sentido.
- Tá parecendo o inferno! – Afirmou o líder religioso, falando do que devia conhecer bem.
Mesmo assim, o clima era de festa e de confiança em dias melhores. Brevemente, olhariam para o horizonte e veriam as chamas, indicando que o caminho estaria aberto para o início dos trabalhos. As senhoras de bem comentavam sobre os detalhes da inquisição ocorrida no dia anterior. Algumas poucas não quiseram presenciar porque não tinham estômago para ver, enquanto outras quiseram, até o fim, testemunhar o cumprimento da justiça dos céus e da terra. As crianças também zombavam, simulando bonecos em uma fogueira e apelidando-os de “a família churrasco”.
Assim, os quatro chegaram sem alardes. Ninguém notou sua presença e poderiam sair sem serem notados. Dispersaram-se após descerem carruagem. O menino se juntou aos outros meninos. A menina se juntou às outras meninas. A mulher se juntou às senhoras de bem. O homem se juntou aos demais.
Onde quer que estivessem, era notório o estranhamento que causavam. Alguns, mais cautelosos, procuravam se afastar, enquanto outros, parecia, haviam encontrado um novo bode expiatório.
A população se aglomerou na praça. O conde, o Portador da Lei, o líder religioso e os demais líderes estavam à frente.
Estes sentiram a paralisia. As veias enegreceram. Vomitaram insetos negros que caíram no chão e se proliferaram ao redor. De suas entranhas eles saíram, e os cavaleiros sentiram que eram seus próprios órgãos que se desfizeram e se tornaram nos bichos imundos que desaguaram de suas bocas. Sentiram-se cada vez mais vazios sem que nada pudesse ser feito. Já não desejavam mais a vida, mas foram deixados ali, eternamente naquele estado, já que seus órgãos se recompunham depois de desfeitos, reiniciando todo o processo.
O restante da população daquela aldeia foi atacada pelos insetos vomitados, que cobriram-lhes os corpos, tornando-se, depois, em chamas, que incendiaram seus corpos.
E eles foram queimados, vivos. E conheceram a morte. Morreram olhando para os céus e praguejando, isso eu posso afirmar. Eu testemunhei toda essa justiça.
E os céus se fecharam para eles.
E aos seres do inferno foi dada a ordem para que retornassem a sua antiga habitação, levando consigo os maiorais, ainda vivos, o que foi feito.
E, do alto, de onde aquela família se encontrava, eles viram quando foi dada a ordem para que as portas do inferno também fossem fechadas, ainda que apenas por um tempo muito breve.
Quanto a mim...
Eu precisava permanecer em silêncio, já que o Verdadeiro Portador da Lei se pronunciava. Fui testemunha de sua sabedoria, já que o fazia com a devida justiça. Meus olhos repousaram sobre os iníquos que ali se encontravam, e que, com ódio e fúria, se faziam notificados de suas sortes. Mas apenas UM se levantava contra eles.
E mantive o silêncio até o momento em que decidi escrever essa carta. Não tenho lições de moral a dar, e posso dizer que é tudo verdade. Ou não? Terá sido obra de minha mente? Enfim... uma coisa é certa, e isso eu acho que posso dizer... pelo menos, eu acho... é que a mentira, digo, a justiça dos homens pode prevalecer por um tempo e a corrupção por dois, mas a vingança é certa.
FIM
TEMA: CRIATURAS DO INFERNO