Eu sou um homem cinquentão e já muito vivido. Também não sou ingênuo em questões de sexo e suas consequências. Hoje, quem pega AIDS ou outra doença sexualmente transmissível é só pessoa muito relaxada, que não dá a mínima para as medidas preventivas que estão á disposição de todos, por preços bastante acessíveis. Na minha adolescência e juventude, as coisas eram mais difíceis. Preservativos custavam caro e os comprimidos anticoncepcionais eram muito difíceis de obter. Isso inibia muito as aventuras sexuais, principalmente por parte das garotas, por que uma gravidez indesejada tinha muito mais apelo coercitivo do que as inúteis aulas de educação sexual que se davam nas escolas, e as parlapatonices dos padres e dos pastores em suas igrejas.Mães solteiras, invariavelmente viravam putas, mesmo sem querer.
Sexo é uma função do organismo e quando a hora chega, não há Cristo que consiga inibir esse apelo mágico que nos vem das nossas mais profundas raízes. Os animais têm uma marca distintiva que identifica quando a função sexual está aflorando nos seus organismos. Essa marca é identificada pelo cheiro que a fêmea exala quando está no cio. Essa é a diferença que existe entre os seres humanos e os animais. Enquanto estes últimos só têm o seu desejo despertado no momento em que seus organismos são eliciados por essa âncora olfativa, os seres humanos são excitados em qualquer momento, muito mais pela fantasia que seus inconscientes articulam do que por âncoras fisiológicas mesmo, ligadas ao instinto da procriação.
Nesta cama de hospital, onde sinto escorrer das minhas veias, junto com o sangue que parece secar aos poucos, como um açude que as chuvas deixaram de alimentar, os meus últimos momentos de vida, não posso deixar de pensar nesse assunto. Recordo meus dias de juventude, quando o maior temor que tínhamos, em relação ás nossas descomprometidas aventuras sexuais era pegar uma gonorréia ou outra infecção qualquer, que acabava sendo curada com penicilina. Era até motivo de orgulho pegar uma dessas doenças. Servia como prova de machismo, um sinal da iniciação sexual, que ninguém podia contestar.
- Cara, tô com gonorréia - dizia o rapaz com orgulho.
E a gente olhava para ele com inveja.
Eu nunca peguei nenhuma doença sexual transmissível e dou graças a Deus por ter sido poupado desse “selo” probatório de perda de virgindade. Em virtude disso consegui casar bem e produzir uma família saudável. Mas isso não foi porque eu tivesse tido uma vida sexual bem comportada e procurado evitar a natural promiscuidade que sempre rodeia a juventude iniciante nessa fase da vida. Foi, talvez, a sorte, que não me levou para a cama de uma prostituta contaminada, para deixar no meu sangue o vírus de uma moléstia qualquer, que queiramos ou não, por mais que os remédios a mantenham controlada, permanece para sempre no nosso organismo, só esperando uma chance para se manifestar. No entanto, aqui estou, nesta cama de hospital, esperando pelo momento final, que eu sei que está muito próximo, e mais que isso, causado por uma aventura sexual, que eu jamais esperaria ter experimentado neste momento da minha vida.
Não. Não peguei o vírus do HIV, se é isso que você está pensando. Não adquiri a síndrome da imunodeficiência adquirida, mal deste século sodomita, que alguns religiosos fundamentalistas sustentam ser um dos quatro Cavaleiros do Apocalipse, previstos no texto cabalístico do velho profeta de Patmos, que criou o nosso fascínio pela Besta e impregnou o nosso inconsciente com o medo da hecatombe final. Eu peguei mesmo foi outra doença, mais mortal que a AIDS, que vai levar a minha vida atual, mas em troca vai me dar, segundo quem me a transmitiu, outra vida, esta, porém, quase eterna...
Tudo bem, se for isso mesmo. Afinal não é isso que prometem todas as religiões? Outra vida após á morte? Só que isso ninguém provou , até agora, que seja verdadeiro. Cristãos e muçulmanos estão se matando uns aos outros há milênios em troca dessa quimera. Hindus se enterram em vida em busca desse sonho. Milhões e milhões de pessoas se imolaram ao longo da história, na esperança de encontrar essa porta que dá para o outro mundo, e nele poder viver a continuidade da sua, ás vezez, miserável existência. Tudo quimera, apenas uma doce ilusão que os espertalhões de batina, os estelionatários do púlpito e os covardes que não têm coragem de encarar a vida como ela é ─ uma verdadeira luta pela sobrevivência─ inventaram para justificar, os primeiros a sua maneira de ganhar dinheiro, os segundos a sua inapetência para viver.
Eu, porém, agora sei que essa vida após a morte existe. Tenho tanta certeza disso neste momento quanto o fato de ter vivido a minha vida anterior, de ser humano. Pode ser que eu esteja entrando em uma aventura terrível, temerária, onde o horror eterno seja o prêmio e não o prazer que me foi prometido. Que essa vida após a morte, que eu acabo de conquistar, seja mais uma maldição do que uma benção. Mas pelo menos, quem me prometeu essa vida, não eterna, mas durável enquanto houver humanidade ─ e por consequência, sangue ─ não foi um pretenso deus morto numa cruz, nem um profeta esquizofrênico que inventou um deus para justificar a sua própria fraqueza, ou mesmo um esquelético guru que escolheu matar os prazeres da vida ao invés de estimulá-los e gozá-los em toda sua plenitude. Ao contrário, foi uma criatura que realmente sabia do que estava falando e podia provar que estava dizendo a verdade e não simplesmente teorizando sobre coisas que nunca viu e sensibilidades cuja experiência nunca viveu.
Tudo aconteceu há algumas noites atrás. Explico. Eu fiquei viúvo há cerca de um ano. O mal de enviuvar cedo é que as nossas ilusões, as nossas fantasias, a nossa libido, e consequentemente, os nossos desejos, não morrem com a pessoa que as alimentou durante tempo. Eles permanecem vivos e nos incitam a procurar sustento em outra parte. Quando a gente tem a sorte de encontrar logo uma parceria que preencha essas necessidades, tudo bem, mas quando isso não acontece, a gente se torna um vampiro neurológico á caça dessas substâncias necessárias para nos manter no estado que convencionamos chamar de ser humano.
E sucede de acontecer o que aconteceu comigo. Imaginem um cinquentão como eu numa dessas casas noturnas onde os jovens se encontram hoje e vocês terão o retrato exato da minha experiência. Uma balada, um rolê, sei lá do que mais chamam isso. Eu fui lá á caça de uma parceira para uma noite de prazer. E lá estava eu, sentado numa cadeira em frente ao bar ─ porque esse é o único lugar próprio para um cara da minha idade ficar num ambiente desses ─ e de repente, ela surgiu ali, como se tivesse saído do nada. Sentou-se ao meu lado, sorridente, fresquinha, uma menina linda, cheirosa, redondinha e ‘facinha” como se costuma dizer nesses ambientes.
─ Me paga um drinque ? ─ perguntou ela com um sorriso ambíguo, delicioso, de menina travessa.
─ Claro, peça o que quiser ─ respondi com cara de tio desconfiado. Afinal, uma garota de rosto quase angelical, novinha, gostozinha como aquela, o que podia querer comigo?
─ Me dá um bloody-mary ─ ordenou ela ao garçom.
─ Você não é muito jovem para beber isso? ─ perguntei.
─ Você não acreditaria se eu lhe dissesse que idade eu tenho ─ respondeu ela com um sorriso mais melífluo ainda.
Olhei para ela tentando adivinhar que idade teria. Não mais que dezoito ou dezenove, talvez vinte, conclui. Tudo bem. Hoje em dia são tantos os recursos de maquiagem, de cirurgia plástica e outras bruxarias tecnológicas que as mulheres usam, que a idade deixou de ser uma informação detectável pelo sentido da visão. E depois, a parca luminosidade do ambiente talvez contribuísse para a visão distorcida que eu poderia estar tendo a respeito da idade dela.
Eu não queria me sentir um pedófilo á cata de carne nova para saciar meus instintos libidinosos. Então pensei que seria mais confiável buscar informação pelo conteúdo que saia da cabeça dela do que pela mensagem visual que a aparência nos transmite. Levei a conversa para assuntos que achei, não interessaria a uma menina da idade dela.
Falei de política e religião. Arrisquei até uma conversa sobre futebol. Surpresa. Aquela menina parecia ter uma longa vida de experiências e aprendizagem. Se não, pelo menos devia ter lido muito, que é outra forma de se forjar uma vida interior, memo sem ter vivido tanto. Pois ela tinha uma conversa de mulher adulta, experiente e vivida, a quem o mundo já parecia ter ensinado tudo e muito mais.
Para um homem da minha idade e condição, se ver na cama de um motel com uma garota que poderia ser sua neta ─ pelo menos na aparência─ deveria ser algo que mataria de inveja muitos cinquentões do meu círculo social. E principalmente pelo que aconteceu entre nós naquela noite, coisa que nem nas minhas mais loucas fantasias eu julguei que um dia poderia me envolver em uma situação real.
Coisa de filme de Hollywood, aquilo. Depois do sexo, que foi um dos melhores que já tive, veio aquele ritual. Ela me propôs fazer um pacto de sangue.
─ Como é isso?─ perguntei, antecipando o prazer que aquela cabecinha linda estaria maquinando para tornar ainda mais prazerosa aquela aventura. Sim. Não pude deixar de pensar nos comportamentos malucos que a nossa libido, muitas vezes, nos inspira, para fazer com que o sexo se torne ainda mais prazeroso, associando a ele fantasias eróticas e, não raro, até sádicas. Há pessoas que gostam de algemar seus parceiros, de bater neles, ou apanhar deles de chicote, derramar e beber champanhe nas partes íntimas do parceiro (um conhecido meu gostava de derramar iogurte na vagina da parceira e depois lamber). Coisas que nem o Marques de Sade teve a imaginação de inventar.
Mas um pacto de sangue era novidade para mim. Coisa simples, disse ela. A gente ia simplesmente beber um pouco de sangue um do outro. Um pequeno corte no dedo dela, e no meu; ela chupava meu dedo, eu o dela. Isso enquanto fazíamos sexo novamente. No estado em que eu estava tudo me pareceu muito excitante. Tanto que depois dessa experiência mefistotélica, eu, um homem com mais de cinquenta anos, ainda fui capaz de mais dois orgasmos naquela noite.
─ Você sabia que os membros da seita dos naassenos bebiam o sangue uns dos outros em seus rituais?─ disse-me ela, com aquele sorriso ambíguo que havia me cativado. ─ Eles faziam isso porque acreditavam que o sangue continha a essência que lhes daria a vida eterna.
─ Eu já li alguma coisa a esse respeito. Houve também uma dessas seitas malucas que bebiam esperma com a mesma finalidade ─ respondi, sem envolver muito minha mente nessa questão. Foi apenas uma resposta sugerida pela bizarrice do assunto, inimaginável para uma conversa com uma garota como aquela. Mas era verdade. Eu tinha lido mesmo alguma coisa sobre esses bizarros rituais praticados por seitas secretas da Idade Média, e para mim tudo era apenas uma curiosidade libidinosa que só servia para encher linguiça numa conversa sem propósito.
─ Eles tinham razão ─ disse ela.
─ Tinham?─ perguntei, sem mostrar interesse no assunto, que me parecia completamente fora de propósito para aquela hora, local e situação.
─ Você verá por si mesmo ─ disse ela. Então ela picou o meu dedo com um alfinete e chupou-o com tanta volúpia e sensualidade, como havia feito antes com outra parte da minha anatomia. Depois, fez o mesmo em um dos seus próprios dedos e o introduziu nos meus lábios, fazendo com que eu provasse do seu sangue. Era quente, ácido, de cheiro ocre e gosto adocicado. Pequenas gotículas de um líquido vermelho que renovaram as minhas energias e estimularam a minha libido. Nem uma dose maciça de Viagra faria o que o sangue dela fez pela minha virilidade.
Eu estava naturalmente bem cansado. Tanto que nem me dei conta do tom e da forma como ela falou. Até porque, em seguida, cai num sono tão profundo, como há muito eu não tinha experimentado.
Acordei nesta cama de hospital. Foi a moça que arruma os quartos do motel que chamou a ambulância que me trouxe para cá. Ela me encontrou pela manhã, praticamente sem forças, com uma febre beirando os quarenta graus, falando coisas desconexas e sem qualquer noção de identidade e lugar onde estava. O médico que me examinou não foi capaz de fazer um diagnóstico preciso da minha doença, mas identificou que o meu organismo estava com pelo menos dois litros de sangue abaixo do normal para um homem do meu tamanho e com o meu estado físico. Notara a picada no meu dedo, mas duvidava que um ferimento tão pequeno fosse a causa daquela sangria.
Perguntei pela moça que estivera comigo no motel na noite anterior. A informação que fora obtida dos porteiros do motel foi que eu entrara sozinho. Não havia qualquer sinal de que alguém passara a noite comigo. E seria impossível alguém ter deixado o motel sem que a portaria tivesse conhecimento. A segurança, naquele motel era o item de maior qualidade que eles possuiam. Aliás, as câmaras de televisão do circuito interno registraram que eu entrei de fato sozinho na suíte e que no carro não havia ninguém comigo.(Cuidado, maridos e mulheres que gostam dessas aventuras. Todos os moteís tem esse tipo de equipamento).
Não tem problema. Eu estou calmo. Não devo satisfações a ninguém. Eu já tinha entendido tudo. Estou neste hospital já faz sete dias e sete noites. Foi o tempo que ela disse que a coisa ia durar. Que eu não me preocupasse nem ficasse com medo. Que depois disso seria apenas o eterno prazer de uma vida completamente sem dores, sem angústias, sem culpas nem quaisquer outros sentimentos que tanto infelicitam um ser humano.
Sei que esta será a última noite desta minha vida. Não estou com medo. Os meus amigos e parentes têm me visitado durante o dia, e á noite, quando as visitas são proibidas, ela, aquela menina deliciosa sempre está aqui comigo. Não me deixou passar sozinho uma noite sequer.
Nem pergunto ás enfermeiras, ou aos médicos, ou a quem quer que seja, se a viram. Eu sei que todos vão dizer que nunca viram aquela menina lourinha, quase adolescente, de olhar angelical, corpo escultural, lábios rubros e carnudos, me visitando. Ainda mais á noite, quando as visitas são proibidas.
Os meus parentes e amigos se espantam com a aparência quase mumificada que eu apresento agora. É a aparência de um homem que já não tem mais nenhum sangue em suas veias. E os médicos que tem feito tudo para descobrir que doença eu tenho, estão mais espantados ainda com a constatação que fazem, que a cada dia que passa meu sangue parece sumir, na medida de quase um litro por dia. Não sabem como isso pode acontecer. É uma moléstia totalmente desconhecida, que eles não conseguem diagnosticar a causa nem nunca viram na história da medicina.
Pobre sabedoria humana, que não sabe que entre o céu e a terra há muito mais coisas que a nossa limitada imaginação nem ousa supor. O ferimento do meu dedo sempre está aberto pela manhã. Isso também eles não conseguem entender, porque á noite fazem um curativo e ele parece estar seco. Mas pela manhã está sempre sangrando.
Mas o que mais os médicos, os parentes e amigos que me visitam estranham, é o semblante que eu aparento pela manhã, mesmo nestas últimas horas desta minha vida. É aparência de um homem que acorda no dia seguinte á sua noite de núpcias. De alguém que passou a noite tendo deliciosos orgasmos. E melhor ainda, aparência de quem realmente tem certeza de que há uma outra vida, e que ela começará na primeira noite após o dia em que o meu corpo for depositado naquele túmulo. Eu sei disso porque ela me prometeu que assim será, e ela está ali, me esperando para começar essa nova vida comigo. E enquanto houver sangue na terra nós estaremos vivos. Por que então eu terei me libertado das leis da vida para viver segundo as leis da morte.
Porque agora, eu sou um vampiro.