LAÇOS DE SANGUE (parte 4 - O FINAL)

Um dia, parei e pensei em tudo que eu estava vivendo. Todos os meus investimentos iam bem. Até mesmo quando apostava em empresas que estavam prestes a falir, alguma coisa acontecia e a recuperação era sensível em pouco tempo. Eu desconhecia o Miguel pobre que morava na favela e contava dinheiro para viver. Agora eu era Miguel Pontes, o rico e promissor empresário. O cara que transformava em fortuna tudo que tocava. A única amargura que brotava em meu coração era ter passado tão pouco tempo com Clara, essa sim, a grande saudade e talvez o único sentimento que havia me sobrado.

Em uma de minhas férias no nordeste do país conheci Vera. Era garçonete do quiosque da praia de Canoa Quebrada. Veio anotar meu pedido exalando aquele perfume idêntico ao de Clara. Mais uma vez, atirei-me literalmente sobre ela prometendo lhe dar uma vida boa e uma gorda pensão para seus pais. Os pais de Vera eram dois velhos doentes que precisavam de sua ajuda financeira e pessoal para os cuidados médicos. Vera, a princípio não aceitou minha oferta, porém foi a favor de um encontro a noite e jantamos em um restaurante a beira mar. Comemos lagosta e uma salada de brotos. No fim do dia, Vera me convidou para ir a sua casa e chegando lá o cenário não foi dos melhores.

Logo na entrada encontramos o pai de vera caído de bruços bem a cima da mesa de vidro espatifada sob seu corpo. O velho jazia no meio da sala com um filete de sangue escorrendo pelas suas narinas. A mulher desesperou-se, abaixando ao lado do corpo do pai caindo em prantos. Eu assistia a cena estranhamente me deleitando com o cheiro de merda e morte ganhando o ambiente. O velho não servia para nada mesmo, só estava me atrasando.

Vera, após um breve período de choro gritou o nome da mãe correndo rapidamente ao quarto. Lá a cena não era muito diferente, tendo também um cadáver fétido e esparramado na cama carcomida pelo tempo. A mãe de Vera usava apenas uma camisola surrada com uma poça de mijo fazendo a parte de baixo da vestimenta colar em suas coxas repletas de veias azuis sobressaltadas. Não sei o que aconteceu com o casal, mas o fedor daquela cena começava a transformar-se no cheiro de perfume. Aquele cheiro que eu sentia sempre que alguma coisa boa iria acontecer.

Estendi minhas férias por mais uma semana e quando voltei para o Rio de Janeiro, além das bagagens trouxe também Vera para ser minha mais nova esposa. E esse amor durou quase três anos, quando descobri que a cachorra estava me traindo com o professor da academia. Esperei ela chegar do treino e tranquei-a em uma sala secreta que tinha em minha cobertura. Ela ficou lá por quase três dias sem comida e água. Acho que ela gritou, mas aquele quarto foi desenvolvido especificamente com paredes de mais de meio metro de espessura e fibras que matavam qualquer tipo de som antes de sair. Quando abri a porta Vera estava quase morta, bem mais magra e acabada. É impressionante com o corpo reage a situações extremas. Não tenho vergonha de dizer que naquela tarde enforquei Vera com um fio de carregador de telefone celular. Me veio uma estranha calma ao ver pelo espelho do guarda roupas a parte branca de seus olhos começarem a ficar vermelhas saltando as micro veias como uma raiz de árvore, cheia de ramificações. Quando matei Vera, além do cheiro do perfume também pude ver a fumaça branca como algodão ganhando o ambiente saindo de sua boca e ganhando meu corpo me dando ainda mais vontade de acabar logo com aquilo.

Livrar-me do corpo não foi difícil. Guardei-a em um freezer por alguns dia e dei um fim levando o freezer para uma de minha fazendas enterrando-a junto a uma árvore de copa grande.

Vera jamais foi encontrada.

Hoje, vejo que o pacto não mudou apenas minha situação financeira. Minha vida foi afetada como a flecha de Eros afeta os apaixonados. Eu não chorei a morte da minha mãe, sequer fui visita-la no túmulo. Minha doce Clara me deixou e meu coração, depois disso, ganhou um lado obscuro. Aquela metade negra ia tomando meu corpo com a mesma velocidade que as notas de cem enchiam as contas bancárias.

Uma manhã de outono, após minha festa de aniversário, levantei da cama observando as três prostitutas de luxo que me faziam companhia. Todas dormiam abraçando joias e notas de dinheiro que eu joguei sobre elas na noite anterior. Fizemos sexo e respiramos fumaça praticamente por todo o tempo até cairmos no sono logo após as quatro da madrugada. Eu estava em Angra, onde tudo isso começou e subi as escadas até o terraço apreciando a criação. Foi a primeira vez em anos que eu tentei conversar com Deus. Mesmo tendo praticamente tudo me faltava alguma coisa. Existia um vácuo dentro de mim, e esse vazio ia aumentando a medida em que minhas dores nas costas começavam. Elas já eram comuns naquele tempo e eu continuava com a mesma mania de fugir dos médicos. É uma grande ironia eu acabar em uma cama de hospital. Sempre dizia aos meus “amigos” que antes de morrer em um leito desses eu iria comprar um cadillac e rodar até não ter mais dinheiro para abastecer. Repare que eu usei a palavra amigo entre aspas. Coloquei assim pois eu não tenho amigos, nem mesmo colegas. Já faz mais de um mês que eu estou preso aqui e não veio nenhum filho da puta me visitar. Mas vamos retornar a história:

Naquele dia, enxotei as três galinhas da minha cama e pensei em tudo que eu havia conquistado após a visita do diabo em minha casa na favela. Desci as escadas e peguei o carro, dirigi até a igreja Matriz de Nossa Senhora Imaculada Conceição. Parei o carro próximo ao templo alvo e imponente com seus sinos de bronze. Fui caminhando vagarosamente na direção da porta. De um jeito estranho uma queimação correu de minhas entranhas até a cabeça me fazendo dobrar de dor, a tremedeira transformou-se em convulsão e uma lufada de vômito verde foi lançado de minha boca ao chão de cimento. Eu nem mesmo consegui colocar um pé no solo sagrado, antes disso já havia caído e perdido a consciência.

Acordei no hospital da cidade e logo fui transferido para o Rio de Janeiro. Lá conheci uma enfermeira chamada Sheila. Logo após minha recuperação, convidei Sheila para um jantar e iniciamos ali minha terceira história de amor, tão curta e trágica como as outras. Eu precisava deixar meus bens para alguém e Sheila era a eleita em herdar tudo que eu tinha. Como sempre fiz questão de deixar bem claro o fato de eu não querer filhos. Ela aceitou contrariada pois tinha apenas vinte e cinco anos e queria muito dar a luz. Você sabe, meu caro leitor, que tenho meus motivos para não ser pai nunca. Mas Sheila sempre tocava no assunto e quando eu tentava despistá-la ela chorava e ficávamos brigados por horas. Nos casamos e o romance durou dois anos até que um dia, após mais uma briga por causa de uma porcaria de espermatozoide e óvulo eu abri o jogo com minha esposa e contei a ela toda a história sobre a origem de meu dinheiro. Sheila me olhou como se não me conhecesse, pôs as duas mãos na barriga e chorou copiosamente. Naquela noite ela se foi. Não morreu, mas sim fugiu e já fazem alguns anos que não tenho notícias sobre Sheila.

Sei que estou em meu leito de morte e fico feliz em saber que não tive nenhuma filha. Pelo menos não levarei ninguém comigo para os braços do demônio. É difícil acreditar como tudo passou tão rápido. Meus advogados estão tentando localizar minha última esposa, uma vez que ela é a única herdeira de tudo que possuo. Sei que um dia irão encontra-la e esta sim poderá desfrutar de toda essa boa via sem dever nada a ninguém.

Você, querido leitor, deve estar fazendo a derradeira pergunta: “ Valeu a pena? ”. Tenho certeza que em seu íntimo você deve estar mesmo querendo saber se pouco mais de vinte anos de riqueza e mordomias valeram a pena, mas essa resposta e subjetiva e sinceramente lhe digo que não faço a menor ideia se alguns anos de riqueza são páreos para uma eternidade de sofrimento. Como eu lhe disse antes, vou sofrer sozinho, não trouxe ninguém comigo. Portanto se um dia você deparar-se com um homem baixinho, careca e de cabeça grande, pense bem qual será sua atitude nos três segundos que terá antes de apertar a sua mão e ter o mundo aos seus pés por um curto longo tempo.

Me despeço aqui, esperando que essa história rode o mundo mostrando a todos que as escolhas possuem dois lados e as vezes todos eles te levarão a uma ruína escura e solitária.

-----------------------------------------------------------------------

PS: sei que terminei a história, mas acabo de receber a minha primeira visita em muitos dias. Meu advogado veio tratar do espólio dos meus bens e quando o indaguei sobre o fato de Sheila estar desaparecida ele me fez uma revelação devastadora.

Porta se abriu e uma mulher entrou no quarto. Acredito que o susto foi ainda maior do que estar frente a frente com o demônio. Sheila vestia uma blusa estampada e saia longa. Estava um pouco mais cheinha do que da última vez. Me pediu perdão e eu prontamente a perdoei. — Acredito ser realmente difícil estar ao lado de alguém tão próximo do inferno — Ela se aproximou e percebi que quando segurei a sua mão existia algo a mais ali. Pequenos dedos frios entrelaçaram nos meus e a figura de um verdadeiro anjo surgiu. Uma menina de cerca de três anos sorriu mostrando seus dentes separados com grandes olhos expressivos. Os cabelos castanhos cobriam as orelhas e deixavam a mostra um prendedor em forma de borboleta.

Sheila me disse que o nome da menina era Monique e que as duas haviam se convertido ao cristianismo. Não demorou muito para ela revelar que quando fugiu de casa estava grávida de dois meses e que iria abrir mão de todos os bens para salvar a alma de nossa filha. Havia conversado com um pastor e este lhe dissera que a única forma de salvar a alma de Monique era doando todo o dinheiro para as obras da igreja.

Não estarei aqui para saber o que aconteceu com Sheila e Monique. Só carrego a certeza de que sentirei saudades da minha última esposa. Já minha filha... Esta eu terei a eternidade para conhece-la melhor ao lado daquele baixinho, careca de cabeça avantajada, sofrendo cada segundo por uma escolha errada. As escolhas que pavimentam o caminho da vida.

Dizia um sábio: “Deus te pune com o que você mais deseja.”

Paulo Costa Lima
Enviado por Paulo Costa Lima em 03/11/2016
Reeditado em 03/11/2016
Código do texto: T5811622
Classificação de conteúdo: seguro