O ESTRANHO RELATO DO Sr. PY
Aquele espelho antigo era da família, foi presente de casamento. A moldura ovalada de prata foi polida no antiquário onde compramos a cristaleira e também a cama patente. Eu o vi pela primeira vez na véspera da mudança para nossa casa reformada. O inquilino deixara as paredes sem pintar, cheias de furos, e o jardim do lado mirrado era apenas desencanto da grama crescida. O muro baixo era advertência gritante, tivemos que fazer reforma antes de morar ali.
Decidimos ficar na casa da minha sogra depois do casamento e durante três meses comemos à mesa da varanda tendo os pés de caqui à vista. Toda noite Cândida dormia recostada no meu colo e eu imaginava os olhos azuis dela na face dos filhos que ela me daria.
Na véspera da mudança recebemos a visita da tia Eulália que veio de Mira Estrela porque tivera um sonho. A velha rabugenta ainda veste luto, o marido morrera há vinte anos. Do sonho dela eu não soube nada, as duas mantiveram segredo, conversaram trancadas no quarto do meu sogro. Minutos pareceram horas.
_ Uma bobagem, conselhos. - Disse a velha depois.
Antes de sair na calçada, tia Eulália acenou. Com a mão esquerda abriu a sombrinha enquanto dizia que o lavabo ficaria mais encantador com o espelho. Espelho? Que espelho?
Naquela noite eu não falei dos meus sonhos, Cândida não pediu que eu lesse poemas de Drummond. Na cama, beijei sua boca, não era mais a boca doce de Cândida que eu beijava. O olhar translúcido da minha mulher ficou embaçado, não a reconheci.
Mudamos no outro dia.
Cândida disse estar exausta depois de colocar cada coisa em seu lugar. Deitamos cedo, cansados. Mas não dormi logo, vi quando ela se levantou para pendurar o espelho.
Meticulosa, afastava-se para reparar as proporções. Cândida ficou assim, parada muito tempo. Afastava, alongava os braços e corrigia o lugar do espelho na parede. Afastava, mirava e de novo repetia o movimento silenciosamente. Quando eu já me descobria para levantar, ela aproximou-se lentamente e beijou sua imagem refletida. Deitou sem perceber que eu a observava. Como peixe fisgado, dormiu de olhos abertos.
Os dias acumulados logo eram meses. Os filhos que teríamos tornaram-se desejo sublimado. Refizemos o jardim, pintamos a casa e levantamos os muros. Cândida não estava feliz. Antes de um ano já planejávamos outra reforma. Dessa vez levantamos todo o piso, fizemos uma varanda de dois pilares e construímos uma piscina. Nada satisfez aquela mulher, seu maior prazer foi recolocar o maldito espelho.
Quando a ideia da separação vinha à minha cabeça logo eu pensava no sexo. Quanto mais distante ficava seu olhar mais crescia meu empenho em dar-lhe prazer. E não prestei atenção na minha imagem refletida no espelho. Não reparei que o piso, vinte centímetros mais alto, deixara o espelho vinte centímetros mais baixo. Para ver meu rosto tinha que curvar o corpo.
Quando arquitetos, para reforçar uma arcada que ameaça desabar, aumentam a carga por ela sustentada, pretendem ligar seus componentes com mais firmeza. Estabilizada, a estrutura segue firme seu propósito. Eu decidi fazer aquela mulher feliz um dia.
Nas fotografias sorríamos como dois adolescentes apaixonados. Minha esposa cada dia mais bela, mais pálida, mais distante - usava máscara difícil de ser notada. Quanto a mim, acostumei-me à ausência de sentido. Acostumei a curvar-me diante do espelho para fazer a barba. Acostumei com a imagem do meu corpo refletida pela metade.
Os anos passaram e o peso da tensão criada para sustentar o distanciamento de Cândida tornou-se insuportável. As diferentes máscaras apenas disfarçaram o vazio que crescia daninho, no meu peito. Sem que desse por isso, entreguei-me para o álcool.
Bebia todos os dias entre amigos, depois do trabalho. Bebia no fim de semana até perder a consciência. Bebia porque tinha feito um bom negócio na imobiliária, bebia para não sentir as dores nas costas. Ah! As dores nas costas...
Depois de sete anos juntos eu não tinha mais vontade de retornar para casa. Muitas vezes encontrei Cândida absorta, na frente do espelho. Nessas ocasiões ela se deixava despir.
Minhas mãos deslizavam sobre ela sem coragem de machucá-la. Minha boca sorvia, nas mínimas cavidades úmidas, o pouco de vida que encontrava. E mesmo temendo olhar nos seus olhos, encarava sua expressão ausente. Numa noite, depois de voltarmos de uma cerimônia do Rotary, nos entregamos ao delírio. Sôfrego, atingi o orgasmo urrando. Um misto de horror e prazer quando reconheci, na face dela, traços do rosto de um homem velho.
Eu sabia, no íntimo eu sabia, caminhava para a loucura.
A fuga perfeita pareceu-me a ganhar dinheiro.
Ocupei todo o tempo que estava sóbrio para transformar a imobiliária em referência no setor. Distante de casa, de Cândida e do espelho, criei projetos inovadores que me renderam prêmios e aparições em revistas especializadas. As construtoras da região disputavam minha assinatura nas plantas dos prédios que dariam ar cosmopolita para a cidade que crescia vertiginosamente. Ao futuro promissor, brindavam!
Ganhar dinheiro é a forma mais primitiva de acumular poder. Ganhei dinheiro com a mesma volúpia que precipitei no vício. Sobriedade apenas o suficiente para manter as aparências. Manter a máscara que usei acreditando dar sentido à minha vida, frustrada sem o amor de Cândida.
Cândida se tornou totalmente dependente de mim. Comprei sua permanência triste e o sexo inexpressivo. A luxúria tornou-se território, ali Cândida reinava absoluta. A tez pálida, o lábio vermelho, os cabelos ondulados negros. A libido assumiu proporções descabidas, tudo em volta ruiu. Eu sabia que Cândida amava mais oque via no espelho do que algum dia havia me amado.
Tia Eulália apareceu mais uma vez, dez dias antes de tudo chegar ao fim.
A velha vestia preto, mas agora sorria. Chegou de braços dados com minha mulher. Voltavam juntas do centro espírita, tinham se encontrado por acaso. Não consegui decifrar sua intenção, falava mansinho e piscava sem parar. Quando indaguei sobre o tema da palestra que assistiram foi Cândida quem respondeu, voz rouca e suave:
_ Repetição dos ciclos de uma maldição.
Tia Eulália aceitou o chá.
_ Soube que você quer derrubar essa casa, vão morar onde? – Como ela sabia disso?
Sem alterar a voz expliquei que precisava construir uma casa que fosse adequada ao padrão que atingira meu prestígio. Reafirmei meu apreço pela história da família acrescentando minha gratidão por ter recebido de herança essa casa que fora dela. Cândida segurava a xícara, mas não bebia. Seus olhos dissimulavam interesse quando encontravam os meus.
_ Seja como for, demolir o passado só trará infelicidade. - Infelicidade? Pensei no uísque, tive sede.
Tia Eulália demonstrou curiosidade, erguia o queijo para apurar a visão. Mostrei as provas desenhadas da casa. Disse que o quarto seria três vezes maior, que o banheiro seria do tamanho da sala atual. Sua expressão alterou quando falei dos espelhos. Eles estariam por toda parte. Cobririam as paredes como se fossem quadros.
Quando percebi que era medo o que emanava da sua feição, exagerei. Espelhos menores serão fixados no muro, devem refletir na superfície da piscina mesmo à noite. E como as duas se levantavam inquietas, afirmei solene - Hoje devolvo o espelho que nos deu.
_ Insolente, não sabe do que se trata a vida. – Saiu, e logo o breu da noite engoliu sua figura. Três dias depois fora encontrada morta.
Cândida velou o corpo da tia Eulália como esfinge enterrada no deserto. Desde a visita daquela noite, não disse uma palavra. No velório, recebeu os pêsames como se fosse parente próximo, como se fosse mãe da minha tia ou coisa parecida. Quanto à mim, decidi não beber mais. E sóbrio levei meu projeto à diante por sete dias.
Durante sete dias não bebi.
Durante sete dias, Cândida chorou a perda muito sentida. Amuada nos cantos, emagrecia. O retrato mais próximo a que chego para descrever sua fisionomia naqueles dias é fantasma que não sai da mente.
No sétimo dia uma missa foi celebrada em memória da defunta. Rezei para que ela encontrasse o marido no inferno. Justifiquei a ausência de Cândida com a suspeita de que estaria grávida. Todos precisavam de um motivo para voltar para casa pensando que a vida continua, graças a Deus.
Minha casa estava totalmente às escuras, entrei. Cândida não respondeu, abri a porta do quarto. Sobre a cama, deitados, dois vultos. Ela nua, ele de preto. O sangue nos olhos cegou-me. Como pode trair-me quando negava o direito de fazê-la feliz? Atirei-me sobre Cândida. Usando as mãos eu a sufoquei. Seu peito arfava num movimento convulsivo, fraco. O olhar distante pedia perdão. Na tentativa de respirar gemia, parecia dizer alguma coisa, mas sem tempo. Tombou para o lado.
Procurei o homem na escuridão, não vi ninguém no quarto. Pensei que tivesse fugido, sai para o quintal. Quando voltei entendi a última palavra de Cândida traduzida num sinal. Ela apontava o dedo indicador em direção ao banheiro.
Estendi a mão cautelosa, acendi a fraca luz sobre o espelho.
Na penumbra que dissipava um rosto tomava o lugar do meu. No espelho, Cândida me sorria dentro da moldura de prata ovalada.
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Baltazar Gonçalves