LAÇOS DE SANGUE (parte 3)

Eu precisava abrir meus olhos, mas ainda era envolvido pela cruel e fina seda do medo. O ataque dos vermes foi, certamente, a maior tortura que passei em minha vida. Posso lhe dizer, querido leitor, que as dores quase insuportáveis que sinto nas costas neste exato momento nem chegam perto do asco em ver minhocas entrando pela boca, nariz, ouvidos...

E foi nesse instante que ouvi mais uma vez a voz do demônio.

— Abra os olhos Miguel.

Ao obedecer a orem eu voltava novamente em minha surrada sala de estar. Aquele filho da puta estava ao meu lado mais uma vez em forma humana com aquela cabeça desproporcional e poucos cabelos. Vestia-se como um garçom, blusa branca e calça preta. Em suas mãos um papel dobrado. Minha cabeça doía e o corpo estava trêmulo ainda sentindo o gosto da fumaça preta.

— Miguel. Agora sua vida começa. Eu vou embora e na próxima vez que nos encontrarmos você será meu. Viva a sua vida e, se quer mais um conselho deste velho tendeiro... Cuidado com os excessos.

Após esta última frase o demônio desmaterializou-se ficando apenas uma pequena névoa vermelha, aos poucos sumindo no ar. Sobre o sofá, o pedaço de papel dobrado e nada mais.

Foi nesse instante que eu tive a certeza de ter sido enganado. — Filho da puta me levou para o inferno e sumiu. — Mas eu sabia que o pacto havia sido feito e que agora minha vida estava condenada. Vagarosamente estiquei o braço apanhando o pedaço de papel dobrado. Ao desdobrar encontrei um endereço: “Rua São Bento, 49”. Existia uma rua São Bento no centro da cidade e no mesmo minuto saí de casa em direção a ela. Peguei um ônibus lotado até o centro e caminhei algumas centenas de metros até o endereço. Muito estranho, uma porta de grades e um comprido corredor esmigalhavam-se entre os prédios altos. Eu abri o portão e caminhei pelo passadiço até uma porta branca de madeira. Existia uma campainha redonda bem ao lado da porta. Pressionei o botão e nenhum som foi ouvido.

Já estava desistindo quando o barulho das trancas me assustou. O caminho foi franqueado, mas nenhuma viva alma apareceu. Adentrei ao recinto encontrando uma mesa com alguns papéis e duas cadeiras acolchoadas. Sentei-me em uma delas e uma figura apareceu por detrás da divisória de gesso.

A mulher devia ter mais de um metro e setenta. Morena de cabelos negros e lisos até o meio das costas. Seu corpo era maravilhosamente torneado com curvas sinuosas e o vestido justo, mostrava ainda mais seus quadris perfeitos. O rosto de índia com lábios finos e olhos levemente puxados, as maçãs do rosto estavam docemente avermelhadas pela maquiagem. Ela se aproximou e se apresentou:

— Olá, meu nome é Clara, estávamos esperando por você.

— Mas como estava me esperando? Até poucas horas atrás eu nem sabia que tinha de vir! — Na minha cabeça eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo, na verdade, eu já não estava entendendo mais nada.

— Senhor Miguel. Estávamos esperando o senhor para tratar do espólio de sua família. Seu advogado destinou nossa empresa para tratar de tudo. — Ela se sentou deixando a calcinha vermelha de renda a mostra. — Sentimos muito pelo que aconteceu, mas sabemos que o senhor deve estar querendo agilizar o quanto antes os bens que herdou.

Eu ainda não tinha noção do que poderia estar acontecendo. — Herança? — Meu pai morreu na miséria e minha mãe vivia da pensão de menos de dois mil reais que aquele desgraçado havia deixado. — Posso saber de que herança você está falando?

Clara me olhou interrogativa. Baixou a cabeça e retirou de uma gaveta uma pasta preta com vários documentos. Logo depois começou a escrever alguns números em uma folha de papel.

— Miguel, após o falecimento da sua mãe, foi descoberto que o seu pai possuía alguns investimentos herdados do seu avô. Como a família é formada apenas por filhos únicos, você é o único beneficiário de todos os bens e recursos de três gerações.

— Minha mãe morreu? — O vômito veio até a garganta, mas por pura sorte eu não o deixei sair. Eu havia perdido a única pessoa que eu amava e estranhamente não consegui ficar triste. Na verdade, o que me sufocava era saber que, de alguma forma, eu estava mais curioso com a herança do que triste pela minha mãe.

Clara não entendeu minha exclamação e me passou o papel que ela estava escrevendo. Nele havia o número de quatro contas bancárias, alguns endereços impressos e no final do papel um número de telefone. Clara ainda me deu um molho de chaves.

— Essas são as contas bancárias com as senhas de acesso e os endereços dos imóveis que pertencem ao senhor, as chaves estão etiquetadas. Ao final eu coloquei o número do meu celular. Se o senhor precisar de alguma coisa minha... — Ela parou e me olhou com aqueles grandes olhos negros puxados. Abriu mais uma vez as pernas me mostrando que não havia sido um acidente a primeira escapada de calcinha.

— Certamente vou te ligar, Clara. Primeiro vou ver do que se tratam todas contas bancárias e depois poderemos jantar juntos. — Falei despretensiosamente. Era impossível uma mulher como aquela querer alguma coisa comigo.

— Eu adoraria. Ficarei esperando sua ligação.

Clara levantou curvou o corpo para beijar meu rosto. O beijo atingiu o canto da minha boca me deixando excitado prontamente. O perfume daquela mulher me embriagou, porém, o cheiro me era familiar. Eu ainda não tinha esse conhecimento, mas era o cheiro da fumaça do inferno invadindo novamente meu corpo.

Em cada banco que entrava eu ficava mais perplexo. A conta mais humilde tinha trinta mil reais. Em uma delas encontrei o saldo positivo de mais de um milhão. Do dia para a noite eu era o mais novo milionário do estado e estava pronto para começar a gastar aquela grana. Retirei cinco mil reais de uma conta, foi o máximo que o banco me deixou sacar sem avisar previamente. Chamei um taxi em pleno centro do rio e disse a ele — Angra dos Reis! — O motorista titubeante olhou para o banco de trás incrédulo. — O senhor tem certeza? — Segurei um bolo de notas de cem e respondi: — Sim!

Chegamos em Angra dos Reis três horas depois. O endereço nos levou a um condomínio e lá encontrei minha primeira e mais nova casa de praia. O condomínio era tão luxuoso que as casas não tinham muros e a minha apresentava quatro palmeiras imponentes na frente com um jardim de dar inveja. Flores amarelas e vermelhas enfeitavam a entrada de carros e a grama era a mais verde que eu já havia visto.

Pedi para que o taxista esperasse alguns minutos enquanto eu analisava meu imóvel. Tudo parecia um sonho e o primeiro pavimento tinha uma ampla sala de estar com piso em porcelanato onde, no final do grande cômodo, a piscina dos fundos adentrava o ambiente criando um efeito perfeito com o teto alto cheio de luzes de Leds. Você poderia mergulhar no quintal e sair na sala de estar. Uma escada de madeira levava até as quatro suítes do segundo andar, uma delas com teto de vidro e hidromassagem bem ao lado da cama king Size. A parede junto a banheira, ladeada por um deck de madeira, também era de vidro me mostrando uma das mais belas vistas que eu já havia visto até então.

Não tive dúvidas em fazer o que eu deveria fazer a seguir. Saquei o telefone do bolso e disquei um número. A voz doce do outro lado da linha respondeu.

— Alô?

— Oi Clara. Estive pensando se você não gostaria de passar uns dias em minha nova casa em Angra.

— Claro que sim. Podemos marcar um final de semana...

— Eu sou um cara muito imediatista sabe. Estive pensando em adiantar essa sua visita.

— Nossa gatinho, que pressa é essa. Hoje é segunda. Posso te visitar na sexta pois saio mais cedo do serviço.

Eu mesmo não estava mais me reconhecendo. Nunca fui um homem atirado e minha timidez sempre me atrapalhou, mas havia algo no ar, um cheiro bom. O mesmo cheiro do perfume de Clara. Fui rápido e direto, não me interessava muito a resposta da bela morena.

— É o seguinte. Eu estou mandando o taxista ir te buscar agora. Até a noite você chega. Esquece essa porra desse seu emprego, você agora está de férias comigo. O que você precisar eu vou te dar.

— Que convite delicioso. Estarei esperando o taxi. Hoje a noite é nossa.

Desliguei o telefone ainda perplexo. Nunca foi tão fácil. E ficar com uma mulher como Clara era algo inédito, o perfume do inferno exalava cada vez mais intenso.

Não vou dar muitos detalhes de minha primeira noite com Clara. Esta é uma história para contar minha ascensão e queda e não um diário pornográfico. A única coisa que posso relatar sobre Clara é que ela chegou quando estava anoitecendo e depois deste dia só nos separamos cinco anos mais tarde após o trágico acidente de carro que ceifou sua vida, minha única condição era que ela não engravidasse, longe de mim querer ter um filho, ou melhor, uma filha. Nesta época eu havia investido uma grana em ações de uma empresa de tecnologia e tripliquei o investimento rapidamente por causa de um aplicativo de mensagens instantâneas. As coisas estavam indo cada vez melhor e tudo que eu tocava virava ouro. Das minhas cinco residências eu fiquei apenas com a casa de Angra dos Reis, as outas quatro eu vendi e com parte do dinheiro adquiri uma cobertura em Ipanema, para ficar mais perto dos negócios. Eu investia em ações e tinha participação em duas fazendas. Nos três anos seguintes me especializei em gado e milho. Os negócios cresceram ainda mais a minha vida deu um salto quando comecei a fabricar um ótimo uísque comparado aos melhores da Escócia. Nada dava errado e até os fiscais sanitários eram meus grandes amigos.

Parecia estranho, mas sempre que eu sentia o perfume de Clara, alguma coisa boa acontecia. E eu me entorpecia com aquele cheiro maravilhoso que me trazia fama e dinheiro. Fui capa da revista Forbes como um dos cinco brasileiros mais bem sucedidos do ano. Políticos famosos e personalidades da música frequentavam minha casa. Foram quatro anos curtindo minha viuvez onde vez ou outra pagava três ou quatro prostitutas de luxo para me fazer companhia nas viagens de barco ou simplesmente para passar a noite em minha banheira nas festinhas particulares.

(ÚLTIMA PARTE NA PRÓXIMA QUINTA-FEIRA, DIA 03/11/16)

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Paulo Costa Lima
Enviado por Paulo Costa Lima em 27/10/2016
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