Dupla Face

Começa meu dia, pra ser mais exata, esse é o dia 2190 desde meu nascimento. Hoje, dia 30/08, completo meus 6 anos. Aliás, me chamo Alice, moro numa cidade chamada Cidade das Esmeraldas. Até meus 3 anos, fui criado pela minha mãe Bruna, e meu pai Bruce, só que uma briga os separaram, e o que foi dito no altar se cumpriu, a morte os separou.

Desde a morte de minha mãe, fui adotada por uma família de imigrantes franceses, que buscavam no Brasil, belas moças e belos rapazes para participarem de suas lindas artes. Eram os chamados “À Bras Ouverts”. Desde então, venho sendo ensinada a ter boa postura, educação e o principal, disciplina. Atualmente, faço aulas de teatro, canto lírico, ballet, inglês, espanhol, francês e alemão. Minha conduta fez de mim, uma atriz inigualável, uma cantora singular, uma dançarina ímpar, porém, à mistérios que me assolam, e lembranças vêm à tona.

Quando minha mãe ainda era viva, meu pai tinha altas recaídas com sua compulsão alcoólica, havia dias em que ele chegava tão bêbado a ponto de espancar-me, e espancar minha mãe. Sofri calada, guardei minhas mágoas em um pequeno espaço de meu coração, via tudo como uma espectadora de teatro dramático, com um ardor no peito, olhos cheios de lágrimas. Perdia-me na imensidão de mim mesma, o sol não brilhava mais, minhas lágrimas tornavam-se cada vez mais pesadas, e o vazio, me preencheu.

Infelizmente, ele não era assim só quando estava bêbado. Todo instante ele estava enervado, sentia dentro de mim uma angústia profunda, tão profunda que sentia vontade de entrar dentro dela e ali me confundir com as sombras. Até que certo dia tudo mudou, ele chegou em casa quieto, incomum, lembro de estar em meu quarto sozinha com meus pensamentos, quando escutei dois disparos. Primeiramente, achei que minha mãe teria se vingado de todas as maldades que lhe foram cometidas, mas não, apenas outra maldade se concretizou.

-Olá Alice, vem pra sombra!

Este é Chuck, meu único amigo. Todos não o veem, dizem que sou louca, não acredito. Eu o vejo, mas não o toco. De uns dias pra cá, Chuck está estranho. Certo dia ele mandou pegar uma faca e esconder em minha mochila. Ele cochichava constantemente a frase :”vamos rever o papai”.

Quando minha mãe partiu-se, ainda morei com meu pai. Foram 2 meses murchando como uma orquídea que não fora regada. A cada dia que passava, uma parte de meu espírito ia sendo consumado. Diariamente era abusada, meu corpo tornou-se um objeto de diversão, onde ele dispersava-se e descarregava em mim, toda a sua insensatez e sadismo. Desde então, comecei a ter transtornos mentais, comecei a me afastar de tudo e todos, enquanto meu coração batia, eu chorava, enquanto a morte não me encontrasse, eu a procurava.

Médicos dizem que tenho dupla personalidade, não posso contraria-los, pois só conheço uma face, a outra, esconde-se nas mais profundas sombras. Há meses que a outra Alice não se manifesta, o que estaria tramando? Onde ela teria ido?

-Alice, precisamos conversar!

Chuck me chama novamente para sombra para conversarmos.

-O grande dia chegou! – diz friamente Chuck.

-A apresentação será somente dia 23/09.

-Não, hoje é o dia em que suas mãos se mancharão! Venha Alice, não diga nada, somente siga-me.

Sigo Chuck pelas ruas de Esmeralda, isso é muito perigoso, pois duas crianças não sabem se portar nas grandes ruas e vielas desta cidade. Chuck me leva para a casa de meu pai biológico. São 08:42 da noite, horário em que meu pai dorme para poder voltar ao trabalho noturno.

-Olhe Alice, a porta está aberta, com certeza ele estava nos esperando!

Nós entramos na ponta dos pés para não fazer barulho e acorda-lo. Por alguns segundos lembro das cenas que acontecera nesta casa, lembro dos abusos, das agressões, e do pior, de que nessa casa, ainda vive um monstro. Vamos até a velha cozinha, relembro dos raros momentos em que minha mãe estava fazendo a refeição.

-Alice, pegue a faca, porque hoje nosso jantar está garantido! - diz Chuck calmamente.

-Olhe Alice, ele está dormindo, será mais fácil! Agora é só abri-lo! – diz friamente e com um sorriso seguro.

Nesse momento, meus movimentos tornaram-se indômitos, banhei-me de seu sangue, talvez minha alma tenha se lavado e meu vazio preencheu-se.

Nunca me senti tão leve, aliás, todo mundo já pensou em matar alguém, de um jeito ou de outro. Pelas suas próprias mãos ou pelas mãos de Deus.

Meus olhos queimam, o que será? Chuck diz que se sente feliz, eu também me sinto. Porque agora sinto que estou livre de algo que me prendia. Essa morte foi apenas um novo começo, tudo será novo.

Posso alimentar a lagarta, posso sussurrar através do casulo, mas o que me encuba segue sua própria natureza e está além de mim.

-Alice! Alice! Você não vai acreditar!! – diz Chuck, nervoso.

-O que foi Chuck? Calma, estou aqui! Agora me diz o que aconteceu.

-Tive uma visão! Vi que Jean e Lorena descobriram o que fizemos! E eles nos expulsarão de casa e nos mandarão para a prisão! – diz Chuck, derramando-se em lágrimas.

-Mamãe?! Papai?! Ai! Tudo menos isso! O que faremos? – digo desesperada.

-Acho que tenho uma ideia! Não diga nada, somente siga-me!

São 9:36 da noite, eles dormem pois acabaram de chegar de viajem. Chuck me leva até a cozinha e diz:

-Já fizemos isso antes. Hoje iremos nos divertir novamente. – diz friamente.

Ciente do que iremos fazer, abro um leve sorriso e parto para a gaveta para pegar a faca. Dessa vez pegamos duas pois serão duas almas à partir. Creio que o que prestes a fazer será apenas um favor para eles. Os levarei para o céu de uma maneira mais rápida e indolor.

Estava escuro, meus olhos dilatavam-se ao máximo a procura de qualquer feixe de luz que pudera me orientar.

-Olhe Alice! Estão dormindo. Vamos? No três, um, dois, três...

Sentia eu uma satisfação ímpar em tirar desse mundo ruim essas pessoas, no que elas viriam a se transformar? Quanto tempo durariam? Melhor do que viver, é ser além. Enquanto você vive, você cria um castelo que será lembrado somente quando morrer, então morra, e seja lembrado do que fez, ou deixou de fazer.

Depois da execução, em atos pensados com muito esmero, rasgo a faca no peito de Jean, retiro deste corpo inútil o coração, que estará seguro em meus cuidados. Irei guarda-lo onde nem a imaginação poderá alcançar, onde olhos não verão, ouvidos não ouvirão, mãos não apalparão, o comerei. Existe alguma maneira mais justa de honrar a pessoa, fazendo dela, parte de mim? Nos tornaremos em um só. Te amo Jean.

O que há anos me prendia, desatou-se. Pois coisas presas há anos voam livres, prontas para explodir em dor e nos levar à um comportamento perigoso. As minhas marcas do passado servem para mostrar que o que passei, foi real. As dores dos abusos, as marcas da tristeza, as cicatrizes da vida perdem-se no tempo, o que virá, será uma história que por mim será roteirizada, escrita e contada.

Passa-se os anos, coisas novas vem. O passado foi levado pelo vento, mas voltou pelo tempo.

Teria eu me libertado?

De uns tempos pra cá, Chuck mudou. Não fala mais comigo, não o vejo como antes, sua face mudou, sua personalidade transformou. Assim me pergunto, quem é Chuck?

Depois de muito refletir percebo que Chuck é apenas um reflexo de um outro eu, a outra Alice, o meu lado mais obscuro que por um descuido, me consumou. Matei pessoas, me juntei a elas, elas ainda estão em mim, porém, suas almas não. Preciso urgentemente me desculpar, e isso, farei agora. Na mesma cozinha aonde de sangue me banhei, no meu próprio afogarei. Te encontrarei, mãezinha.

Fraco, a marca do passado, voltou ao meu lado. Sozinha, aqui nesta cozinha, onde tudo começou, assim me vou.

Forte, mais do que só uma morte. Deixo meu vestígio, onde confundem com suicídio. Para onde vou? Só lá descobrirei, verei o resultado, do caminho que tomei.

Desfaleço, e tive aqui o justo fim que eu mereço.

Lucas Gabriel Fernandes
Enviado por Lucas Gabriel Fernandes em 24/10/2016
Código do texto: T5802146
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