O espelho dos Monroe
A sabedoria popular não nos deixa esquecer que o pior cego é aquele que não deseja enxergar. O que talvez lhe escape é que há realidades as quais, se vistas, ofuscariam a razão, motivo por que deveriam permanecer nos recônditos das aparências.
Eis o que sucedeu à família Monroe, uma das mais abastadas do condado de Essex nos estertores da era vitoriana. Todos os dias, britanicamente às vinte horas, o patriarca se reunia à mesa com sua esposa, seu único filho e a sogra. O tradicional jantar à luz de velas era o momento em que o próspero industrial William M. fazia um balanço do trabalho e conversava sobre os afazeres dos familiares durante o dia.
– Qual lição o lente lhe passou hoje, Carlyle? – perguntava com frequência ao rebento. Nessas ocasiões, bendizia a bela família que formara: uma esposa dedicada e formosa; um filho estudioso e obediente, que certamente lhe sucederia nos negócios; e uma sogra amorosa, tal qual uma segunda mãe.
Naquela noite de inverno, chegara à mansão a mais nova aquisição da sogra, inveterada colecionadora de antiguidades. O espelho austríaco, da época das guerras napoleônicas, foi colocado em frente à mesa, para que William pudesse melhor apreciá-lo. Era uma peça magnífica, de três metros de comprimento por quase dois de altura, emoldurada por gárgulas esculpidas em ouro. Havia um pequeno defeito, uma fenda no canto inferior, que de maneira alguma diminuía a exuberância do conjunto.
Quando os convivas já terminavam a refeição, William fixou o olhar no espelho e observou, orgulhoso e feliz, o reflexo da família. Então, o vento vindo do Mar do Norte soprou mais forte e apagou as chamas que iluminavam o salão por um instante. Ao retornar, a luz revelou que o industrial agora estava só no recinto.
Desesperado e confuso, gritou pela família, sem obter resposta. Passou a vasculhar os cômodos da imensa casa. Ao entrar em seu quarto, no segundo piso, estancou de horror: sua admirada mulher, vestida como prostituta, se fartava em brincadeiras sexuais com três criados. Ensaiou avançar sobre o grupo, mas era como se houvesse um invisível campo de força entre ele e aqueles a que assistia, como se a sua presença fosse apenas um rastro fantasmagórico.
Enojado, tentou abrigar-se em seu escritório, um cômodo contíguo, onde guardava o cofre. Ali, apavorou-se quando viu a sogra, desgrenhada e desfigurada como uma bruxa, desvendar o segredo com o poder da mente e acessar suas valiosas letras de câmbio. Ela também parecia não o ter notado. Fugiu, desta vez com medo.
Desceu as escadas e prorrompeu porta afora para o jardim, onde se deparou com Carlyle a trucidar o professor particular. O jovem destroçava com os dentes o abdome do homem. Ao virar-se em direção ao pai, sem, no entanto, vê-lo, revelou-se um pequeno demônio, com dentes afiados e olhos vermelhos.
William soltou um urro pavoroso e retornou à sala de jantar. Mirou novamente o espelho. O que o reflexo mostrava eram os familiares reunidos, normalmente, com os elegantes trajes que usavam no jantar. Exceto ele. Ao lado da mimosa esposa, do filho promissor e da abnegada sogra, havia agora um homem nu, com uma corrente quebrada ao pescoço e uma gárgula funesta atrás de si, a lhe sussurrar ao ouvido: “Estás livre”. Uma vez mais, as velas piscaram.
Antes de ser tragada pelo buraco negro do esquecimento, a memória desse dia sobreviveu por décadas nos comentários dos habitantes do condado, que nunca entenderam como o eminente senhor William M., ao ser encontrado nu pelos policiais depois de ter estripado toda a família, e já ciente de que não escaparia à pena capital, pôde proferir naquele momento as enigmáticas palavras: “Estou livre! Livre!”.